Eu desconfiava: […]

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

(Carlos Drummond de Andrade, Igual-desigual, A Paixão Medida)

Essa semana, assisti ao filme “Marighella”, um documentário cuidadoso com os dados históricos e plasticamente belo, produzido e dirigido por Isa Grinspun Ferraz, sobrinha daquele que é o personagem central da trama, Carlos Marighella. O filme é instigante, faz pensar no passado, no presente, em ideais, sonhos de um país (de um mundo) diferente, em pessoas ímpares, tantas coisas que um texto só é insuficiente para esgotar tudo, por isso, vou tentar me concentrar no tema do herói.

Sendo filha de combatentes da ALN (Ação Libertadora Nacional), cresci ouvindo falar de Marighella, de como enfrentou duas ditaduras; de como queria acabar com as desigualdades sociais; de como sabia liderar outros que tinham o mesmo desejo que o seu; de como era corajoso, forte, envolvente e poeta. Não por acaso tenho um irmão que se chama Carlos, em sua homenagem.

Ele sempre fez parte do panteão de heróis da minha família, que inclui, na ordem de primeira grandeza: Che Guevara e Camilo Cienfuegos, este também homenageado como segundo nome do meu irmão Carlos. Marighella é para nós uma espécie de herói particular.

Fui ao cinema acompanhada de uma amiga, Carmen, para quem Carlos Marighella era pouco conhecido, tendo-lhe sido apresentado apenas na graduação em ciências sociais. A conversa depois do filme, deixou claro que meu herói só era de foro privado por falta de espaço público. Carmen me disse, pegando o gancho nas falas da película: “ele é como Tiradentes, é um mártir, dos tempos recentes, mas ainda desconhecido”.

Fiquei pensando no ainda, em quanto tempo AINDA levaria para que ele fosse estudado nas escolas como um herói nacional, desconfio (ou espero) que a mobilização em torno da Comissão da Verdade e da abertura dos arquivos da ditadura possa acelerar este processo, revelando também os vilões da história.

Mas aqui quero introduzir a questão que dá título a este texto: o que é um herói? Há várias definições no dicionário Houaiss nas quais nosso personagem se encaixaria.

Mas arrisco minha própria definição: herói é alguém que está fora da curva; “feito de outro barro”, como disse um dia um índio do Oiapoque; capaz de inspirar os outros e de ouvi-los; corajoso, altruísta; que consegue enxergar à frente de seu tempo; alguém que não nega as contradições próprias do ser humano (inclusive as suas).

Mais ainda, um herói não é um santo. E Marighella não o era, mantendo-se sempre radical em sua forma de pensar e agir. Isso aparece no filme em diferentes situações, como na fala de Antônio Cândido contando como fora atacado pela revista Fundamentos, dirigida por Marighella, com o epiteto “Trotskista” que, como ele explica, na época era usado como um terrível xingamento e não como uma vertente do comunismo oposta ao stalinismo.

E, sobretudo na atuação direta do líder como guerrilheiro, seja assumindo a ação do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, mesmo discordando de sua função estratégica, ou nas chamadas “expropriações das riquezas dos grandes capitalistas” (como assaltos a bancos e ao trem pagador).

Seu radicalismo não era, contudo, de um dogmatismo empedernido, pois, se assim não fosse, ele não teria abandonado o stalinismo após saber dos crimes de Stálin. Manteve-se sempre comunista, mas a revolução que aspirava era construída a partir da realidade brasileira e não da importação de modelos outros.

Parafraseando Cazuza, eu diria que meus heróis não “morreram de overdose”, morreram torturados, exterminados, aniquilados pelas forças do Estado e “meus inimigos [ainda] estão no poder”. Fato incrível, porque hoje no poder está sentada uma ex-guerrilheira.

No entanto, ela está cercada pelas mesmas figuras retrógradas de antanho e fazendo um governo que permite o massacre de lideranças populares e indígenas, que, em nome de um duvidoso e antiquado modelo de desenvolvimento, sacrifica o meio ambiente e, com isso, o presente das populações locais e o futuro das novas gerações.

O que entristece e decepciona é ver que este governo não incomoda a quem deveria incomodar, é apenas uma reedição moderna do que vem sendo feito há séculos no país, a diferença é que agora sobram algumas migalhas a mais aos mais pobres. Definitivamente, a presidenta não se enquadra na minha definição de herói.

Contudo, da geração que sonhou e lutou junto com Marighella há ainda muitos vivos, alguns deles presentes no filme e tão personagens deste quanto Marighella.

Estes homens e mulheres continuam agindo para mudar o mundo tão injusto em que vivemos, atuando em várias frentes, como: no apoio às mães dos mortos injustamente nas periferias das metrópoles brasileiras; denunciando uma polícia militar sangrenta; brigando pela abertura dos arquivos da ditadura, a apuração da verdade dos crimes cometidos por esta, o resgate da memória daqueles que foram subjugados pelo Estado e a punição dos torturadores; advogando para movimentos sociais, movimentos estudantis e sindicatos; buscando fazer da educação um instrumento de criatividade e transformação; lutando por um desenvolvimento socioambiental e econômico sustentável; pelas chamadas minorias que vivem nos interiores e sertões do país e na Amazônia (ribeirinhos, parteiras tradicionais, índios, quilombolas); e por um Estado mais transparente e menos corrupto.

Estes são meus heróis, pois acredito que todos precisamos de heróis (até mesmo os mais céticos). A eles dedico este texto.

Artionka Capiberibe é antropóloga, professora da EFLCH-Unifesp, é autora de Batismo de fogo: os Palikur e o Cristianismo (Ed. Annablume).

Fonte: Revista Forum