Certas coisas não foram ditas. Por exemplo: com qual nome Pablo Javier Gaona Miranda viveu ao longo de seus 34 anos? Quem era o casal que se dizia seu pai, que se dizia sua mãe? Outras coisas, porém, foram ditas – e são coisas assombrosas.

De novo, e uma vez mais, a Argentina topa pela frente um caso de verdade restabelecida, de memória resgatada, de justiça feita. E assim, entre o dito e o não dito, o neto número 106 foi identificado pelo movimento Avós da Praça de Maio. Uma nova história de dor e brutalidade foi esclarecida. Uma identidade foi resgatada. Faltam 394.

Ao apresentar a história da Pablo Javier, a presidente da organização Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, disse que ele finalmente tinha sido libertado de uma mentira. Qual mentira? A vida que havia levado até aquele dia. A mentira que foi sua vida, a vida que ele achada que havia vivido.

Pablo, agora, sabe que seu pai foi um paraguaio chamado Ricardo Gaona Paiva, e sua mãe, uma argentina chamada María Rosa Miranda. Foram militantes políticos. Primeiro, Ricardo Gaona fez parte da Juventude Peronista, a ala esquerda desse movimento de mil faces chamada peronismo.

Depois, passou para o ERP, o Exército Revolucionário do Povo, onde conheceu María Rosa. Para seus companheiros de militância armada, ela era Silvia, ele era Jorge. Pelas próprias regras de segurança do ERP, era o que se sabia dos dois.

No dia 14 de maio de 1978, o casal saiu do apartamento onde morava, em Buenos Aires, e foi até a casa de parentes em Villa Martelli, um subúrbio da capital. Era dia de festa. Levavam o pequeno Pablo, nascido um mês antes, no dia 13 de março.

Depois da festa, voltaram para casa, onde não chegaram jamais. Nunca mais foram vistos, nunca mais se soube dos dois. Eram militantes periféricos. Não há notícia deles em nenhum campo de concentração clandestino, em nenhum centro de tortura. São dois dos 30 mil desaparecidos durante a ditadura militar que durou de 1976 a 1983.

O bebê não foi entregue nem à família da mãe, nem à do pai: foi entregue, por um coronel do Exército, a um primo, que fez uma falsa certidão de nascimento, dizendo que ele e a mulher eram os pais da criança. Agradecido, o primo convidou o coronel para ser padrinho de Pablo.

Em 2001, quando tinha 25 anos, Pablo ouviu dos pais que na verdade ele tinha sido adotado. Sete anos mais tarde, disse à mãe que desconfiava ser um dos bebês roubados durante a ditadura.

E agora, na sexta-feira 29 de junho, tomou a decisão de enfrentar a própria verdade: procurou a organização Avós da Praça de Maio, se submeteu aos exames de DNA, e dois dias depois finalmente soube quem era. Soube também que tem uma família de verdade, que sua avó paterna Justa Paiva de Gaona jamais deixou de procurá-lo, o neto mais velho que nunca foi esquecido, e de procurar o filho, a nora.

Para saber o que resta saber – o destino dos restos de seu pai e de sua mãe, como foram presos, como foram mortos, e por quem – ele tem a vida inteira pela frente.

Há 394 outros Pablos vivendo por aí. Nenhum deles sabe que sua verdade é outra. Que sua identidade é outra. Que sua vida é mentira.

Para as Avós da Praça de Maio, Pablo é muito mais do que o caso 106. É um sopro de esperança para a busca angustiada, desesperada, de seus netos.

Há uma dor a mais para elas: o tempo. O calendário e sua crueldade implacável que encolhe o tempo que lhes resta em sua busca incessante.

O mais cruel dessa história de brutal crueldade é a máscara feroz, de gelo, de quem implantou o plano sistemático de roubo de bebês na Argentina. Porque é claro que os que roubaram sabem que roubaram, e os que receberam sabem da origem dos bebês que cresceram e hoje vagam por aí sem saber que tiveram sonegado o direito mais elementar de qualquer ser humano: saber quem é.

Estela de Carlotto, a presidente da organização das Avós da Praça de Maio, não deixa passar um só dia de sua vida sem denunciar essa perversidade. Sem pedir que os sequestradores de filhos de militantes assinados pela ditadura contem o que sabem. Que digam para quem os bebês foram entregues.

Dona de uma valentia que só encontra semelhança nas outras avós em sua procura perseverante, Estela sabe que o tempo corre cada vez mais rápido. Sabe que muitas de suas companheiras de luta ficaram pelo caminho, com a alegria de terem dado a outras avós o que não conseguiram para si: encontrar um neto, uma neta, derradeiro legado, única continuação, de seus filhos assassinados.

Estela e as avós sabem disso. E sabem também do tamanho da indecente covardia de quem fez o que fez e agora se encolhe no mais infame dos silêncios: aquele silêncio que pretende se sobrepor sobre a verdade. O esquecimento que nega a memória. E que, negando a memória, nega a vida.

Fonte: Carta Maior