A Funai na Amazônia durante a ditadura
Na década de 1970, os índios da tribo Parkatêjè, localizados hoje na Terra Indígena Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins, sudeste do estado do Pará, eram explorados como escravos na coleta de castanha-do-pará. A comercialização do produto era feita pelo então diretor da Delegacia Regional da Funai, em Belém, coronel Amaury.
“Morriam de dez a vinte índios por dia”, conta o escritor José Humberto do Nascimento, 63, também conhecido como Tiuré, que contribuiu com o processo de revolta do povo Parketêjè contra a Funai e agentes da ditadura militar.
Tiuré não é um Parketêjè de sangue, é descendente indígena da tribo dos Potiguara, da costa nordestina do país. Nasceu em 1949 na região entre a fronteira da Paraíba com o Rio Grande do Norte.
Ainda muito pequeno, sua família se mudou para Brasília, onde seu pai, de 1961 a 1964, trabalhou como motorista do presidente João Goulart, até sofrer um acidente de carro e perder a vida deixando a mulher e os sete filhos, entre eles Tiuré, com 15 anos, na época.
Em 1973, inspirado na vida do geógrafo e indigenista Marechal Rondon, primeiro dirigente do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), Tiuré presta concurso para trabalhar na Fundação Nacional do Índio. Ao passar é direcionado para estagiar no departamento que cuida dos recursos naturais das terras indígenas.
Lá descobre que o lema da Funai, a célebre frase de Rondon “morrer, se preciso for; matar, nunca”, foi alterado para “primeiro mate o índio”. Acompanhou de perto a transformação da Ilha do Bananal – a maior ilha fluvial do mundo localizada no Tocantins – em um grande pasto. “Os militares alugavam o território que era indígena para a criação de gado”.
Nos seis meses em que trabalhou na Funai sua curiosidade o levou a ficar após o horário do expediente, com a desculpa de que precisava fazer hora extra, quando na verdade queria saber o que tinham nos documentos que vinham com o selo de ‘confidencial’.
“Fiquei completamente alarmado com tudo que vi. Eram documentos timbrados da embaixada dos EUA, onde se via uma comunicação com os órgãos de segurança e a Funai, com relação à Amazônia”, contou.
Era final de 1973 quando, nos corredores da Funai, Tiuré conhece os Gavião Parkatêjè. O líder da tribo, Kokrenum, viera acompanhado de um grupo até Brasília com o objetivo de tentar conversar com a direção da Funai sobre a exploração que sofriam de funcionários da própria fundação, no sudeste do Pará.
Os Parkatêjè trabalhavam desde 1966 praticamente como escravos coletando castanha-do-pará na floresta nativa, que era entregue ao coronel Amaury, responsável pela Delegacia Regional da Funai, e o único com poder de comercializar a castanha dos índios diretamente com os exportadores.
Para poder fazer a colheita, no período de safra que costuma ir de outubro a abril, eles precisavam de botas, facões, lanternas e alimentos para passar o dia na floresta. Todo esse material era retirado de uma espécie de loja da Funai antes do pagamento dos índios, feito após o retorno financeiro das castanhas comercializadas por Amaury. No final das contas, a maior parte deles terminava devendo mais ao “barracão” do que recebendo pelos serviços.
Muitos índios, para conseguir pagar suas dívidas sem deixar de obter algum lucro, trabalhavam até a exaustão. Era comum, segundo relatos de Kokrenum escutados por Tiuré, a morte de dez a vinte pessoas por dia.
Algumas mulheres da tribo que engravidavam preferiam fazer aborto a terem filhos escravizados. Ainda, segundo Kokrenum, cerca de 13 anos antes de 1973, quando tiveram o primeiro contato com o homem branco, a tribo era formada por 2 mil pessoas. No ano em que Tiuré os conheceu, a comunidade tinha um pouco mais de 200 pessoas.
Após escutar o relato de Kokrenum, Tiuré decidiu contar o que sabia sobre os projetos da Funai para com a Amazônia.
Os Parkatêjè viviam justamente sobre o maior depósito de minério de ferro do mundo, calculado em 18 milhões de toneladas, onde, anos mais tarde seriam iniciadas as obras do Projeto Grande Carajás.
Kokrenum convidou, então, Tiuré a deixar Brasília para morar com eles no Pará. “Nós precisamos de um índio como você que entende os negócios dos brancos”. Tiuré aceitou o pedido e pedindo demissão da Funai.
Chegando à tribo, no início de 1974, Tiuré participou da destruição da casa dos missionários norte-americanos da New Tribes of Brazil, uma ONG que se instalou dentro do território indígena com o objetivo de evangelizá-los.
A comunidade aproveitou um dia em que a família inteira havia saído da casa para invadi-la. “Quando entramos ficamos impressionados com as coisas que eles tinham em termos de tecnologia”.
Não era uma simples família norte-americana que vivia ali, traduzindo cânticos evangélicos e versos bíblicos para a língua Jê. Eles encontraram tonéis lacrados a cadeados onde guardavam armamentos pesados, lunetas, rádios com micro-ondas.
“Hoje já se sabe que a New Tribes of Brasil é financiada pela CIA”, a polícia de inteligência norte-americana, destacou.
A ONG não voltou mais a se instalar na região. E naquele mesmo ano a comunidade decidiu não coletar mais castanha-do-pará à Funai. O grupo entrou em contato direto com o maior exportador, na época, Jorge Mutran.
Ele os recebeu e se mostrou disposto a fazer o adiantamento de dinheiro para a colheita, mas a Funai já havia entrado em contato e informado que era proibida qualquer negociação direta com os índios sem intermédio da fundação.
A notícia sobre a tentativa de independência financeira dos Parkatêjè chegou até São Paulo e sensibilizou jovens recém-formados da USP, médicos, advogados e antropólogos.
Eles construiram uma ponte até a pessoa que financiou a primeira safra, o banqueiro Frances, na época residente em São Paulo, Alain Moreau.
Com a colheita garantida os Parkatêjè precisavam apenas chegar até o exportador. Jorge Mutran lhes passau o contato de outro comprador que retirava a castanha da comunidade de noite, em barcos, sem levantar suspeitas, para vender como se fosse produção própria.
A comunidade viveu um período de paz e independência financeira que duraram apenas três safras, ou cerca de três anos. Em 1977, eles abordam um grupo de três técnicos de topografia dentro da área.
É quando se dão conta de que estava em andamento o Projeto Grande Carajás, que incluia a construção de uma ferrovia e de linhas de transmissão de energia que atravessariam o território.
Por impedirem os técnicos de continuarem o reconhecimento da área, os Parkatêjè ganharam notoriedade nos grandes meios de comunicação, como “opositores do progresso do Brasil”. Com esse argumento, o governo passou a fazer uso da Lei de Segurança Nacional contra eles.
O exército ocupou as duas saídas do território Parkatêjè e passou a perseguir Tiuré e outras lideranças. “Para sair da comunidade sem ser visto por algum soldado, eu precisava andar três dias”, lembrou. Nessa época, final dos anos 1970, a região de Marabá, próxima, já estava fervilhando, por conta da guerrilha do Araguaia.
As violações aos direitos humanos e o enfrentamento entre índios e soldados passou a ser mais frequente. Segundo Tiuré o conflito nunca se deflagrou a ponto de exterminar a tribo inteira, mas ocorreram perdas nos dois lados.
Foi nessa época que eles conheceram o professor Dalmo de Abreu Dallari, que tentou, junto ao governo militar, intermediar acordos para alterar as obras. Entretanto, o máximo que conseguiram foi uma indenização para o povo Parkatêjè.
“Hoje, visto de cima, o território é um bolo entrecortado”, comenta Tiuré. Calcula-se que, as obras resultaram na destruição de mais de 1.200 castanheiras-do-pará.
Elas demoram cerca de 100 anos para alcançar a produção plena. O projeto também não considerou uma área tida como sagrada pelos índios, por ser o reduto de reprodução animal.
“Kokrenum ainda está vivo. Não tem problemas financeiros porque continuam a luta. De vez em quando, fecham a ferrovia, ameaçam parar a estrada (…) e a Vale e a Eletronorte, para evitar, pagam o dinheiro que eles querem”.
No final dos anos 1970, Tiuré foge do Pará. De lá vai em direção ao nordeste do país, divisa entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte, à procura de suas raízes na tribo dos Potiguara, de onde saiu com a sua família quando tinha apenas três anos de idade.
Na volta à aldeia natal escutou do cacique que precisavam de mais potiguaras para lutar. A região, com uma das últimas coberturas de Mata Atlântica do Nordeste, estava sendo ameaçada pelo Pró-Álcool ou Programa Nacional do Álcool. Além disso, a comunidade vivia sobre um dos poucos reservatórios de Titânio do país.
Eles tentaram o reconhecimento do território junto a Funai, que lhes exigiu documentação comprobatória. Mais uma vez com a ajuda de amigos de São Paulo, descobriram uma pesquisadora do Rio de Janeiro, chamada Terezinha Baumann, que há anos reunia documentos sobre a história dos Potiguara, tendo inclusive se deslocado até Portugal para colher materiais.
“Ela nos entregou toda a documentação que levantou e nós a apresentamos no Supremo Tribunal Federal para tentar a demarcação”.
Não obtiveram o resposta esperada, nem ao menos da Funai. Então, decidiram por conta própria abrir uma picada em tordo de todo o perímetro do território Potiguara, resultando numa área de 47 mil hectares de terra.
“A picada foi de encontro aos grandes interesses”. O exército ocupou a área com tanques e iniciou a perseguição. Nessa época Tiuré foi capturado, torturado e teve sua casa queimada. Depois de solto, com a ajuda de amigos, fugio para o Canadá onde pediu áxilo político.
O processo durou anos, o julgamente foi concluído em 1989, já no período de redemocratização do Brasil. Com o argumento de que o período da ditadura militar no país tinha findado, o governo brasileiro e a Funai entraram com pedido para arquivarem o julgamento.
Mas a Anistia Internacional concede parecer favorável e, naquele ano, Tiuré, ou José Humberto do Nascimento, é reconhecido pelo Alto Comissariado da ONU como o primeiro índio brasileiro a obter o status de refugiado político.
Tiuré viveu por 27 anos no Canadá. Voltou para o Brasil em 2011, e desde então reside na aldeia Potiguara Lagoa do Mato, na Paraíba, disposto a rediscutir a demarcação da terra indígena, isso porque com o mapeamento feito pelo o exército, e aceito pela Funai, nos anos 1980, eles perderam 14 mil hectares.
Fonte: O Brasilianas.org