Amaro Lins
Um dos grandes destaques da caravana de familiares dos desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia de 1980 foi o “aparecimento” da figura emblemática de Amaro Lins.
Amaro Lins era operário no Rio de Janeiro e militava no PC do Brasil desde a sua reorganização em 1962. Foi um dos primeiros a chegar no Araguaia e teve papel destacado na preparação do movimento insurgente, a mais elevada manifestação oposicionista ao tirânico regime dos generais.
Como todos os que se deslocaram para a Amazônia teve de largar tudo, o emprego e a primeira familia, que só foi reencontrar na década de 1990 depois de quase trinta anos vivendo em terras paraenses.
O início de sua jornada, em 1967, seguiu a segura rota do Mato Grosso até aportar em Conceição do Araguaia, no Pará. A cidade situada na margem esquerda do rio dos Karajás e fundada pelo dominicano francês Frei Gil de Vilanova, ainda no século XIX, foi o local escolhido pelos dirigentes comunistas para ser o inicial ponto de entrada daqueles que, anos depois, se tornariam guerrilheiros quando as forças repressivas invadiram à região do Bico-do-Papagaio em 1972.
Sabe-se que além da Amaro Lins, outros militantes como Orlando Osvaldo da Costa, Daniel Callado e Paulo Rodrigues teriam passado certo tempo em Conceição do Araguaia estudando a geografia da região, percorrendo as grotas, os caminhos de mata fechada, sempre no sentido de criar bases profundas para o estabelecimento das melhores condições materiais e políticas para enfrentar a ditadura militar brasileira.
Em 1968 já morava em São Geraldo do Araguaia numa gleba na beira do Araguaia com Paulo Rodrigues. Logo se juntaram Daniel Callado e o médico João Carlos Haas, com a tarefa de montar uma farmácia. As tarefas para atender a saúde da população local se confundiam com outras, como as de regatão, no comércio, na agricultura e na pequena mineração.
Por esta época Dinalva Oliveira e o marido Antônio Teixeira já estavam nas imediações, tocavam um açougue e faziam levantamentos geológicos numa região farta em pedras preciosas, como diamantes e ametistas.
Ambos, com o endurecimento do regime de excessão largaram o confortáveis empregos de geólogos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), na Bahia.
O sucesso da luta no Araguaia dependia muito das condições materiais criadas na própria região, na atividade laboral. Não havia recursos de “fora” e o trabalho cotidiano foi um dos alicerces para – além de promover a economia da empreitada rebelde – a integração mais amiúde com os moradores araguaianos e a necessária compreensão das suas necessidades.
Tal economia foi que permitiu a abertura de vilarejos, como o “Patrimônio”, na região dos Caianos: Arildo e Áurea Valadão davam aulas na currutela iniciada por Paulo Rodrigues.
Amaro Lins ia sempre na frente, abrindo picadas para introduzir os “paulistas” que depois ficariam conhecidos pelos camponeses como “o povo da mata”.
Nas lonjuras daqueles sertões foi que conheceu e se apaixonou por Neuza e com ela resolveu casar, numa das várias histórias de amor geradas à esteira da preparação do movimento guerrilheiro. Tais histórias de amor precisam ser contadas porque assim falamos da humanidade que só a resistência e a luta pela liberdade podem produzir.
Acontece que a necessidade da preservação da empreitada, cuja a segurança era estratégica, fez com que Amaro Lins tivesse um papel de “elemento de massa” quando as tropas governamentais atacaram as bases da guerrilha em abril de 1972. O apoio material e de informações eram suas principais tarefas.
Na caravana de 1980 Amaro Lins foi apresentado pelo advogado-do-mato Paulo Fonteles aos viajantes e prestou o seguinte depoimento:
“(…) foi em 1972 quando estourou a guerrilha (…) eles passavam pela minha roça e eu já tinha uma criança, o Vladimir e o “Juca” (João Carlos Haas) cuidava amigavelmente. Minha vida era só trabalhar e nada mais.
Quando estourou eles entraram para dentro da mata, deixaram uma pessoa cuidando da fazendinha deles. Nessa época três elementos de metralhadora entraram na minha casa e eu não sabia de nada. Tinham prendido um bocado de gente e eu fui delatado (…) chegaram perguntando se eu era o Amaro e disseram-me: ‘a guerra estourou’ e eu respondi: ‘guerra, guerra de quê?’.
Um deles me disse: ‘o caso é o seguinte: eu já sei de toda tua vida e a finalidade de tu estares aqui, já me contaram tudinho, não adianta mentir’ (…) eu respondi: ‘se você já sabe não adianta nem eu falar!’.
Eles diziam que queriam que eu contasse minha história direito (…) fui levado para Xambioá onde passei nove dias, fui submetido a choques elétricos por três vezes e depois, no dia 22 de abril (de 1972) fui mandado para casa, no dia em que o Vladimir completava dois anos. Antes da sair eles disseram-me: ‘tu vai para lá e se aquele “povo da mata” aparecer tu já sabes o que vai fazer, nos comunicar’.
Uma semana depois que eu tinha chegado em casa apareceram vinte e dois soldados da Aeronáutica e queriam que eu acompanhasse a tropa até a casa do Pedro ‘Onça’ que ficava à sete léguas, mais ou menos vinte quilômetros. Naquele momento chegou um amigo da região, o seu Gilberto, com um animal.
Fizeram um campo de pouso e prenderam-me de novo. Nessa ocasião senti o medo da morte porque um sujeito disse que eu dava comida para os guerrilheiros. O tal sujeito se chamava Manoel Carneiro e me delatou para ganhar dinheiro.
Nos dois fomos humilhados, chegaram a botar aparelho de choque no saco do Manoel Carneiro que afirmava que eu sabia onde estava o pessoal e que fazia dois dias que chegara o pessoal: o ‘Juca’, Paulo Rodrigues e Daniel (Callado).
O comandante parece que percebeu a mentira e pararam com a tortura (…) naquela época vi a Áurea (Valadão) chegando presa em Marabá (…) quando eu voltei vi o Daniel e o piloto dizia que ele ia para o ‘Arexim’ que por nós é conhecida como ‘Marcilinense’ (base militar localizada na beira do Araguaia, na atual Piçarra do Pará).
A última vez que eu vi o Daniel ele ia sair com oito militares (…) Daniel e Áurea foram mortos covardemente, não foi em combate (…) quando estourou a guerrilha eu morava na ‘Água Saloba’ e o ‘Jorge’ (Bergson Gurgão) foi o primeiro a tombar na região.
Nessa ocasião o Paulo Rodrigues apareceu junto a minha casa e me disse que havia marcado um encontro com um tal de ‘Cearense’, que morava perto dele e que era muito amigo (…) o Paulo tinha pedido (…) para comprar pilha e algumas coisas. Eu disse ao Paulo: ‘companheiro você não devia ter se identificado’ (…) eu vinha de Araguanã e disse que o tal ‘Cearense’ não era de confiança. ‘Não vá!’, disse-lhe.
O Paulo Rodrigues me respondeu: ‘será? eu já marquei’. No dia seguinte escutei na beira dos Caianos uma rajada de metralhadora. Pensei: ‘acabou com o pessoal’. Uma parente da Neuza chorava e dizia: ‘acabaram com o Paulo Rodrigues e todo mundo’.
As tropas chegaram de noite, dormiram pela área (…) aquele infeliz do ‘Cearense’ é que foi o culpado (…) pude ver um helicóptero baixando e pegou o ‘Jorge’. Um praça foi baleado e outro morreu em Belém (…) no outro dia Paulo Rodrigues apareceu lá onde eu estava e me disse: ‘aquele informe que você deu foi certo mesmo, só não foi todo mundo porque nós fomos vivos mas o “Jorge” ficou’ (…) desse dia em diante, ele, Paulo Rodrigues não apareceu mais (…)”.
Amaro Lins, além de prestar preciosas informações, estimulou vários lavradores a falar sobre a repressão praticada pelas tropas governamentais. Em tais depoimentos atestou-se que vários dos desaparecidos na guerrilha foram presos e que, sob a custódia dos militares, foram assassinados e tiveram mãos e as cabeças cortadas. Tal barbarismo era para efeito de identificação, realizadas em Brasília ou em Belém do Pará.
Acerca de sua retomada na atividade política revelou:
“(…) fiquei todo esse período sendo vigiado, isolado. Depois de muito tempo apareceu uma missa diferente e eu estava sem documento e apareceu um padre por nome Aristide (Camió) por lá, celebrando missa com os lavradores, achei a missa diferente e fui conversar com o padre e me identifiquei para ele e contei a minha história (…) estou aqui até hoje e sou membro do Partido (…) o padre me disse: ‘hoje vai vir uma pessoa que quer conversar com você’.
É quando chega o Paulo Fonteles e desse dia para cá é o dia em que me liguei ao Partido até hoje (…) por intermédio do padre, me liguei ao Paulo Fonteles (…) fui até Belém (…) foi melhor eu não morrer para contar a história da nossa luta (…) estou firme para o que der e vier e caso amanhã precisar de um combatente contra a classe dominante o Amaro ainda tem força para fazer qualquer coisa em beneficío do nosso Partido (…)”.
Vai amanhecendo o dia e ao escrever este artigo vou lembrando-me da passagem de Amaro Lins com a família por Belém, no início de 1980. Com os tons rubros da alvorada recordo-me que a família ficou muito tempo em casa, hospedada, coisa muito comum na minha infância.
Por aqueles dias bem distantes tive o primeiro entendimento da luta que meu pai travava e isso aconteceu pelo fato de ter reclamado com “aqueles camponeses haviam ocupado o meu quarto”. Tal comentário fez com que rapidamente me respondesse “que não admitia que filho seu falasse assim dos camponeses, pois que eles me dão suas redes para dormir e me protegem a vida”.
Nunca mais dei um pio e na forma infantil de entender as coisas sabia que eles eram o sal da vida daquela generosa existência ceifada pela vileza do grande latifúndio, em junho de 1987.
Amaro Lins faleceu no início da década passada deixando-nos o precioso legado que só a luta do povo pode engendrar, de muitos combates, sempre por causas justas e civilizatórias.
Neuza Lins e os filhos Vladimir, Carlos, Maurício e Helenira continuam em São Geraldo do Araguaia e seguem o legado do patriarca “de viver a vida do Partido”.
São como irmãos que a vida nos dá, irmãos de classe, irmãos da igualdade, irmãos para que a vida prossiga como este sol que vai banhando-me o rosto na exata hora em que tudo amanhece.
Fonte: Blog do Paulo Fonteles Filho