Aquelas corajosas mulheres da Rosentrasse
Naquele 27 de fevereiro de 1943, ao amanhecer, os SS da Leibstandarte Hitler, encarregados da segurança pessoal do Führer, tomaram seus lugares nos caminhões cobertos de lona que partiam para os quatro cantos de Berlim1. Sua missão: prender, em casa ou no trabalho, com a ajuda da Gestapo e da polícia municipal, os últimos judeus da capital do III Reich.
Alguns trabalhavam em fábricas vitais para a Wermacht; outros, casados com uma cônjuge alemã, escapavam das leis de Nuremberg de 1935. Ministro da Propaganda e gauleiter (chefe regional) do Partido Nacional Socialista, Joseph Goebbels, que sonhava há dez anos em extirpar os judeus de sua cidade, pôde, afinal, acabar com essas exceções.
À noite, cerca de 5 mil pessoas já tinham sido capturadas, entre as quais 1 700 maridos de alemãs. Alguns já estão a caminho dos campos da morte. Outros esperam a deportação, amontoados em duas prisões improvisadas.
Uma delas se encontra nos números 2-4 da Rosenstrasse (Rua das Rosas, N.T.), onde funcionava um escritório de assistência social da comunidade judaica. Desde a tarde, dezenas de mulheres, preocupadas por não verem seus maridos voltarem para casa, apertam-se na rua: logo contam-se 200 delas. Algumas passam a noite ali…
No dia seguinte, são duas vezes mais… e mais decididas. O fato de que o serviço de assuntos judaicos da Gestapo tem sua sede a dois passos, na Burgstrasse, não as impede de gritar em coro: “Devolvam-nos nossos maridos!”. Nem a presença dos SS, nem o fechamento de Börse, estação de metrô vizinha, nem mesmo os terríveis bombardeios aéreos britânicos da noite as impedem de desafiar o regime.
O historiador David Bankier conta2, com a ajuda de testemunhas, como várias mulheres brigam com agentes da Gestapo e “ousam dizer-lhes que eles mesmos é que deveriam ir para a frente ocidental e deixar os velhos judeus em paz” – mas “a maior parte dos passantes”, acrescenta, “olha a cena com total indiferença”.
Esperança e coragem
Algumas mulheres, encorajadas pela força do seu movimento, atrevem-se até a pedir à Gestapo notícias de seus esposos
No seu diário, na data de 2 de março, Goebbels escreve: “Estamos expulsando definitivamente os judeus de Berlim. Apanhamos todos na rede domingo passado e vamos mandá-los para o Leste sem demora.”
Mas ele não contava com a multidão que aumentava na Rosenstrasse. Quando os SS ameaçam atirar, as mulheres refugiam-se debaixo das marquises ou de um viaduto próximo e depois voltam: “Queremos nossos maridos”, exigem, em uma só voz.
No dia 5 de março, o regime tenta manobras extremas de intimidação. A Gestapo desaloja à força dezenas de manifestantes. Depois um jipe ocupado por quatro SS uniformizados usando capacetes de aço, empunhando metralhadoras, parte para cima da multidão, atirando.
As mulheres se dispersam, correndo, antes de se reunirem diante da prisão. Algumas, encorajadas pela força do seu movimento, atrevem-se até a pedir à Gestapo notícias de seus esposos. Outras conseguem até entrar no prédio da Rosenstrasse. “Continuávamos com esperança de que nossos maridos voltassem para casa e não fossem deportados”, testemunha uma manifestante.
O mais incrível é que elas não estavam enganadas. No dia 6 de março, não somente a ditadura põe fim às prisões e deportações que continuavam até ali, mas ordena a libertação de todos os judeus casados com alemãs – irá até mesmo procurar em Auschwitz 25 deles, que poderão voltar para suas casas.
Quase todos, aliás, sobreviverão à guerra. Oficialmente, a Gestapo de Berlim simplesmente cometeu um abuso de poder prendendo e deportando judeus casados com alemãs – e o poder, naturalmente, colocou tudo em ordem.
Fábula do erro
O mesmo Goebbels que ordenou a prisão em massa, depois de um encontro com Hitler, no dia 3 de março, suspendeu-a
A realidade nada tem a ver com esta fábula do “erro” burocrático retificado. Foi o mesmo Goebbels que ordenou a prisão em massa e que, depois de um encontro com Adolf Hitler, no dia 3 de março, em seu Wolfschanze (covil do lobo), suspendeu-a. Por quê? A resposta está relacionada sem dúvida ao período durante o qual o caso se passou: logo depois da derrota de Stalingrado.
O moral dos alemães estava lá embaixo. Os dirigentes nazistas têm nesse momento uma única obsessão: temem que a “frente interior”, como em 1917, caia, sob o ataque do Exército Vermelho e os bombardeios anglo-americanos.
A resistência corajosa, mas relativamente apolítica, das mulheres da Rosenstrasse ameaça espalhar-se como uma mancha de óleo: e se outras manifestações vierem perturbar as deportações em massa de judeus, que ocorrem então em muitas cidades da Alemanha?
“Em Berlim”, interpreta o historiador Peter Longerich3, “internava-se temporariamente centenas de judeus casados com não-judias nos dois prédios da comunidade judaica para poder trocá-los por trabalhadores da comunidade que seriam deportados.
O protesto público espontâneo de membros desse grupo reunidos diante do prédio da Rosenstrasse, por mais notável que fosse essa ação, não foi entretanto a causa da libertação dos homens presos, pois uma deportação de judeus vivendo como ?casal misto? não era regulamentada na época.”
Leopold Gutterer, assessor do Ministro da Propaganda, contradiz essa apreciação: “Goebbels libertou os judeus para eliminar definitivamente os protestos.(…) Para evitar que outros aprendessem com essa manifestação e a tomassem como exemplo, era preciso eliminar qualquer motivo de protesto.” Em seu livro exemplar, Destruction des juifs d?Europe4, Raul Hilberg vai na mesma direção, escrevendo que os maridos judeus de mulheres alemãs “foram finalmente libertados, pois percebeu-se, em última análise, que sua deportação ameaçava comprometer todo o processo de destruição”.
Versões questionáveis
Essa vitória é antes de mais nada uma resposta a todos os que justificaram sua passividade assegurando que “nada se podia fazer” contra o regime nazista
Com o recuo histórico, a vitória das mulheres da Rosenstrasse questiona o historiador. Essa vitória é antes de mais nada uma resposta contundente a todos os que justificaram sua passividade assegurando que “nada se podia fazer” contra o regime nazista.
Mais: prova que a ação, longe de ser puramente simbólica, podia fazer o regime recuar. Para além do contexto muito particular do inverno de 1943, incita inclusive a reavaliar as relações que a ditadura mantinha com seu povo: a primeira não temeria as reações do segundo muito mais do que a historiografia tradicional afirma?
Eis o que explicaria, entre outras coisas, o segredo com o qual os dirigentes nazistas procuraram cercar o genocídio, mas também os esforços consideráveis que empregaram – como mostra no mesmo dossiê Götz Aly – para “comprar” os alemães. Pena que só houve uma Rosenstrasse…
(Trad.: Betty Almeida)
1 – Um único livro em francês trata exaustivamente desse caso: Nathan Stoltzfus, La résistance des coeurs. La révolte des femmes allemandes mariées à des juifs, Phébus, Paris, 2002. Este artigo apóia-se amplamente nas informações que o livro contém.
2 – Die Öf
Fonte: Le Monde Diplomatique