Um operário morreu, e agora?

A situação era tensa. Um grupo de operários chegou à porta do cotonifício Crespi e conclamou os trabalhadores a aderirem ao movimento grevista, que havia se iniciado havia dias. A polícia, decidida a não permitir piquetes, interveio violentamente. O saldo do conflito: um morto. A vítima chamava-se José Martinez, era sapateiro e tinha apenas 21 anos. Depois deste dia São Paulo não seria mais a mesma.

Numa fria manhã de julho, dia 11, uma multidão de cerca de 10 mil pessoas caminhou lentamente pelas principais ruas da cidade paralisada, numa última homenagem ao operário assassinado. As bandeiras vermelhas e negras tremulavam entre choros e sentimentos de vingança. A São Paulo proletária estava nas ruas, nunca se tinha visto aquilo antes.

O cortejo fúnebre seguiu lento pelo aterro do Carmo, hoje continuação da avenida Rangel Pestana, tentando se dirigir ao palácio do governo, mas foi impedida pela polícia. Seguiu, então, pela rua Floriano Peixoto até a praça XV de Novembro. De repente, a multidão parou e só se ouviu um grito: “Libertem Nalepinsk! Libertem Nalepinsk!”.

Nalepinsk, outro sapateiro, preso por ter denunciado o assassinato de Martinez. Uma comissão se deslocou até a Secretaria da Justiça para exigir sua libertação. O delegado-geral, acuado, prometeu soltá-lo logo após o cortejo. Uma vitória, a primeira. A multidão avançou, chegou à Praça da Sé. Agora era a vez dos discursos. O cortejo então partiu para o cemitério do Araçá, sua última parada.

Ali, diante do túmulo de Martinez, os oradores se revezavam. Eram homens e mulheres do povo. Na voz traziam a indignação e a revolta. “Soldados, não deveis perseguir os vossos irmãos de miséria. A fome reina em nossos lares, e os nossos filhos nos pedem pão. Os perniciosos patrões contam, para sufocar as nossas reclamações, com as armas de que vos armaram (…). Soldados! Recusai-vos ao papel de carrascos”. A multidão chorava. Nem mesmo os soldados, escalados para vigiar o movimento, se contiveram, e enxugavam os olhos com as mangas de suas fardas. Um operário morreu, e agora?

Produzir, produzir deve ser o lema dos paulistas

Ser operário naqueles dias não era nada fácil, nunca foi. Trabalhava-se em média 14 horas diárias, sem férias, sem descanso semanal remunerado e sem nenhum tipo de assistência. Para eles, apenas o trabalho. “Produzir, produzir deve ser o lema dos paulistas”, afirmava a imprensa burguesa. Mas, produzir para quem? Começavam a se perguntar os operários.

Por todo este trabalho, recebiam parcos salários que não eram o suficiente para o sustento de suas famílias, o que levava mulheres e crianças a se empregarem nas fábricas, submetendo-se às mesmas condições de trabalho dos homens e recebendo menores salários. Os serviços eram insalubres, as jornadas de trabalho longas, sem horário para as refeições, que eram feitas ao lado das máquinas. Afinal, São Paulo não podia parar. “Oh! Pobre dos proletários!”, dizia uma canção anarquista.

Em 1912, 67% dos trabalhadores têxteis eram mulheres. Em 1918, mais de 50% do operariado fabril eram constituídos de menores, como podemos constatar neste trecho de artigo publicado em um jornal da época: “Assistimos a entrada de cerca de 60 menores, às 7 horas da noite (…). Essas crianças saem às 6 horas da manhã. Trabalham, pois, 11 horas a fio em serviço noturno, apenas com um descanso de 20 minutos (…). O pior é que elas se queixam de serem espancadas pelo mestre de fiação (…). Alguns apresentam mesmo ferimentos produzidos por uma manivela. Trata-se de crianças de 12, 13 e 14 anos”.

O custo de vida aumentava dia a dia. Em 1916, os gêneros alimentícios subiram mais de 60%, sem que houvesse qualquer reajuste salarial. Começava a faltar alimentos e toda nossa produção era vendida para a Europa, que estava em guerra. A fome batia às portas das famílias dos trabalhadores. É neste contexto que teve início a onda da greve que abalou o país.

Em julho de 1917, o que parecia mais uma simples greve como outras tantas que já haviam ocorrido desde o começo do século, acabou por desembocar no maior movimento de contestação operária já visto na história do Brasil até então.

E os operários disseram não!

Uma comissão de operários do Cotonifício Crespi se dirigiu à direção da empresa exigindo um aumento salarial de 20%, baseado na elevação do custo de vida. O dono da empresa não aceitou o pedido. Os operários o ameaçaram com uma greve. A resposta patronal foi fechar a fábrica. A greve então se ampliou estendendo-se a outras categorias.

Em 8 de julho ocorreu o primeiro incidente na porta da fabrica. Um choque entre operários e policias deixou inúmeros feridos, e os ânimos se acirraram. Na manhã do dia seguinte, novo incidente, agora na porta da Companhia Antártica.

Trabalhadores enfurecidos tomaram um caminhão da companhia e destruíram as garrafas por ele transportadas. Seguiram, então, em passeata pelo Brás até a fábrica de tecelagem Mariângela. Ali ocorreu um novo e mais grave confronto com a polícia. Martinez caiu mortalmente ferido. Um operário morreu, e agora?

Saindo do enterro do jovem sapateiro a multidão dirigiu-se à Praça da Sé para um grande comício de protesto. Ali, exigiu-se a reabertura das ligas operárias, proibidas de funcionar no dia anterior à libertação dos grevistas presos e à punição dos assassinos de Martinez.

O Comitê de Defesa Proletária, formado no dia anterior, assumiu a direção do movimento e apresentou sua pauta de reivindicações: aumento de 35% dos salários, proibição do trabalho a menores de 14 anos, abolição do trabalho noturno para menores de 14 anos e mulheres, jornada de trabalho de 8 horas, respeito ao direito de associação, congelamento de preços dos alimentos e redução dos aluguéis.

Nos bairros operários explodiu o descontentamento. Milhares de populares saquearam lojas e armazéns. O numero de grevistas cresceu dia a dia. De 10 mil, o número de grevistas subiu para 20 mil – mais de quarenta mil trabalhadores entrariam em greve durante o movimento. Eram sapateiros, eletricitários, trabalhadores das companhias de gás, mecânicos e a quase totalidade dos trabalhadores de pequenas oficinas, que compunham o grosso da classe operária do período.

Aumentou a greve, recrudesceu a repressão e a resposta dos operários foi imediata: ergueram-se barricadas. Os grevistas tomaram os bondes da cidade. Alguns foram destruídos pela fúria popular. “Uma multidão de garotos, afirmou o jornal O Estado de São Paulo, se entregou a todos os excessos, escolhendo para alvo de suas loucuras os carros elétricos (…).

E o que é mais deplorável, é que um bando de mocinhas, infelizes operárias de fabricas, imitou os gestos da garotada, tomando conta de três elétricos no Largo da Sé”. Os grevistas tentaram ocupar a 5ª delegacia do Brás e não conseguiram. O posto policial passou a ser defendido pelas tropas de infantaria e a cavalaria.

No largo da Estação Norte, os policiais tentaram invadir um Café, onde se reuniam alguns líderes grevistas, mas foram recebidos à bala. No tiroteio que se seguiu, vários caíram feridos. Novamente, ergueram-se barricadas com sacos de mantimentos e veículos tombados. As ruas do Brás e da Mooca transformaram-se, instantaneamente, num labirinto de barricadas, que ninguém ousava percorrer. No dia 13 de Julho os jornais publicaram uma nota da Delegacia Geral: “pedimos ao povo pacífico que se recolha às suas casas para não ser recolhido no meio dos desordeiros (…), pois a polícia (…) vai manter a ordem, para isso empregando os meios mais energéticos”.

Frente aos constantes casos de insubordinação da Força Pública e da guarda cívica, que se recusavam a reprimir os grevistas, foram solicitadas tropas do interior. Navios de guerra aportaram na cidade de Santos. Marinheiros foram destacados para reprimir populares que saqueavam os armazéns do porto. “A polícia não permitirá reuniões nas praças e ruas públicas, dissolverá pela força os que pretendiam ir contra a esta resolução”, afirmava um novo comunicado governamental. Tropas de Infantaria e a Cavalaria percorriam as ruas dispersando aglomerações.

Na sexta-feira, faltava pão, gás, transporte e um grupo de operários tentou parar um dos poucos bondes que ainda teimava em circular, escoltado por policiais fortemente armados. Novo tiroteio, outra vítima fatal: uma menina de 12 anos. Os tiroteios se sucediam. Outro morto, o pedreiro Nicola Salermo. O que era uma simples greve por aumento salarial e melhoria de condições de trabalho estava se transformando numa verdadeira insurreição operária.

Diante do impasse nas negociações entre operários e patrões, uma comissão de jornalistas de diversas publicações da capital paulista foi formada para mediar o conflito. O resultado dessas negociações foi uma proposta de aumento geral de salários em 20%, respeito ao direito de associação, não dispensa dos grevistas.

O governo, por sua vez, se comprometeu a libertar os presos e a reconhecer o direito de reunião e eu “o poder publico intercederá (…) para que sejam estudadas e votadas medidas que protejam os trabalhadores menores de 18 anos e as mulheres no trabalho noturno”. Propostas que foram aceitas prontamente pelo Comitê de Defesa Proletária.

O Comitê decidiu, então, comunicar a proposta em três grandes comícios no Largo da Concórdia, na Lapa e no Ipiranga. Neles foi aceita a contraproposta patronal e decidida à volta ao trabalho, sob a condição de retornar à greve caso os patrões descumprissem o acordo.

“Com a volta de alguns milhares de operários ao trabalho, a cidade retomou ontem o aspecto que tinha antes de se iniciar o movimento grevista”, noticiou aliviado O Estado de São Paulo. Mas, a calma era apenas aparente. Depois destes dias, São Paulo não seria mais a mesma. A paisagem urbana havia mudado com a entrada em cena de um novo personagem – o proletariado.

As lições da greve (ou um novo ator à procura de um novo roteiro)

Embora os acontecimentos de julho de 1917 tenham representado uma das mais belas páginas da luta do proletariado brasileiro, apresentaram também as suas limitações. Pouco a pouco todas as conquistas da greve foram sendo retiradas. As perseguições e prisões dos principais líderes não só continuaram como aumentaram. As promessas da burguesia, pouco a pouco, transformaram-se em pó. Por que isso ocorreu?

Primeiro: porque, apesar de combativos, os operários constituíam-se em minoria da população e se encontravam dispersos em pequenas oficinas, existindo, assim, uma fragilidade nas suas organizações de classe. Segundo: esta fragilidade deu lugar à proliferação de ideias anarquistas, típicas dos pequenos artesãos.

O anarquismo era a força hegemônica no setor combativo do movimento sindical brasileiro. Eles se recusavam a organizar os operários de forma mais centralizada, negavam a necessidade do proletariado se organizar enquanto partido, única maneira de travar a luta política contra a burguesia e o seu Estado.

Esta concepção da luta operária os prendia, fundamentalmente, aos marcos da luta estritamente econômico-corporativa. Questões-chave, como ampliação da democracia (eleições livres, voto secreto, direito de voto aos analfabetos, mulheres e estrangeiros residentes no país, legalização dos partidos de esquerda), reforma agrária – ou mesmo a luta contra o imperialismo –, passavam ao largo das reivindicações anarquistas.

Num país dependente, composto por uma população majoritariamente camponesa, dirigido por uma oligarquia agrária, que excluía grande parte da população da efetiva participação política, estas seriam bandeiras que poderiam trazer aliados aos operários em luta.

Esta seria a única maneira de estes se constituírem como força política e social autônoma na sociedade de classes brasileira e disputarem, efetivamente, a hegemonia da sociedade com as classes proprietárias. Estas eram condições indispensáveis para a consolidação e a ampliação das conquistas dos trabalhadores.

Se, por um lado, a greve de 1917 representou o ápice do anarquismo no movimento operário brasileiro; por outro, mostrou todas as suas limitações, que em pouco tempo acabariam por reduzir e mesmo eliminar sua influência.

A Revolução Russa de outubro de 1917 mostrou outro caminho: o da organização do proletariado enquanto partido político independente. Mostrou a necessidade da revolução socialista e da construção de um Estado de caráter proletário. Coisas incompreensíveis para os anarquistas.

A consequência necessária da greve geral de 1917 – e de outros embates que se seguiram naqueles anos no Brasil e no mundo – foi a fundação do Partido Comunista do Brasil, ocorrida em março de 1922. Este foi o marco da crise geral do anarquismo no país e início de uma nova fase na história da luta dos trabalhadores brasileiros rumo à sua libertação.

* Artigo publicado originalmente na revista Debate Sindical, n. 12, set/out de 1992.

** Augusto Buonicore é historiador e secretário-geral da Fundação Maurício Grabois, autor do livro Marxismo, história e revolução burguesa: encontros e desencontros.

Bibliografia

BANDEIRA, M., MELO, C. e ANDRADE, A. T. O ano vermelho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967 (existe uma edição atual pela Expressão Popular).

BEIGUELMAN, Paula. Os companheiros de São Paulo: Ontem e hoje, São Paulo: Cortez, 2002.

KHOURY, Yara Aun. As greves em São Paulo, São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1981.