O jornalista Lira Neto publicou o primeiro volume dos três de sua biografia de Getúlio Vargas. “Getúlio – Dos Anos de Formação à Conquista do Poder” cobre o período de 1882 à Revolução de 1930 e traça um retrato excepcional do homem e de sua época, usando diários, cartas, livros de memórias e a imprensa da época. Esforço rico, análogo ao que Robert Caro faz por Lyndon Johnson nos Estados Unidos.

Acompanhamos a educação de Vargas no ambiente rústico e violento da fronteira gaúcha no início do século XX, entre lembranças das guerras platinas e a vivência de duas guerras civis, a influência intelectual do positivismo, sua breve passagem pelo Exército e sua ascensão na máquina política da República Velha.

Vargas nasceu numa família de militares e de criadores de gado. Seu pai foi à guerra do Paraguai como soldado voluntário e voltou capitão, sendo promovido a general honorário pelo marechal Floriano Peixoto por sua liderança na repressão à rebelião federalista, no início da República.

Vargas quis seguir seus passos, mas se entediou com a vida dos quartéis, que largou no fim da adolescência, quando ainda estava na escola preparatória para a academia de oficiais. Optou pela tradicional carreira do Direito, e já na faculdade se destacou como líder estudantil e jovem quadro da estrutura partidária comandada com mão de ferro pelo veterano Borges de Medeiros.

Lira Neto retrata um Vargas de muitas qualidades: inteligente (a abrangência de suas leituras e a solidez de seu preparo intelectual impressionam), sério, dedicado, mas ao mesmo tempo bonachão, simpático, habilidoso em dialogar e negociar.

Características raras em sua família: seus irmãos estavam constantemente em problemas com a lei, por brigas, violência e corrupção na pequena cidade de São Borja, que dominavam. Vargas usava sua influência junto a Borges de Medeiros para ajudá-los, mas foi construindo sua carreira por méritos próprios: promotor, advogado, deputado estadual e federal.

Ele participava dos jogos tradicionais de clientelismo, fraude e manipulação, mas não parece ter roubado para si mesmo, vivia frugalmente com a esposa e os filhos.

Vargas passou as décadas de 1900 e 1910 como uma personalidade local na política gaúcha, mas nos conturbados anos 1920 tornou-se alguém de projeção nacional, primeiro como o grande articulador dos interesses do Rio Grande do Sul junto ao governo federal, no momento de crise do pacto do café com leite (São Paulo e Minas Gerais) da República Velha, da eclosão das rebeliões tenentistas e do crescimento da inquietação social do país.

Ele chegou a ser ministro da Fazenda do presidente Washington Luís, mas por breve período – logo largou o cargo para assumir o governo do Rio Grande do Sul.

Vargas foi uma figura chave para pacificar o estado, negociando a trégua – e posteriormente aliança – entre a oligarquia liderada por Borges de Medeiros e os setores liberiais comandados por homens como Assis Brasil e Batista Luzardo. Vargas incorpou muitas de suas demandas de modernização econômica e promoção da indústria, primeiro no âmbito estadual, mais tarde no plano federal.

A segunda metade do livro é dedicada a narrar em detalhes as articulações políticas e militares que culminaram no desafio de Vargas ao pacto do café com leite, sua campanha eleitoral à presidência e a Revolução que o levou ao poder após sua derrota pelo voto – apesar das fraudes maciças, os dados que Lira Neto apresenta indicam que ele teria perdido mesmo numa disputa limpa.

O resumo da ópera: o sistema tradicional da República Velha estava em ruínas e Vargas triunfou porque construiu uma coalizão de apoio entre os descontentes com o regime: lideranças regionais excluídas (Rio Grande do Sul, parte do Nordeste), grupos de classe média, dissidentes em São Paulo e Minas Gerais, e os tenentes revoltosos da década de 1920. A crise de 1929 foi o último prego no caixão do governo.

Vargas hesitou para assumir o papel e fez jogo duplo ou triplo com todos os envolvidos, numa narrativa que se lê como um romance de espionagem. Os personagens são fascinantes e Lira Neto apresenta jovens impetuosos que virariam líderes importantes do Brasil, como João Neves da Fontoura, Oswaldo Aranha, Luís Carlos Prestes.

Do ponto de vista ideológico, o retrato é de um Vargas cético diante do liberalismo e defensor de práticas oriundas do positivismo: um Estado forte e centralizador, capaz de agir com destaque na economia.

Encampou as bandeiras de Assis Brasil e dos tenentes pelo voto secreto e por eleições limpas – mas deixou-as para trás quando tornou-se ditador. À espera dos próximos volumes, com a expectativa de que sejam tão bons quanto este.

Fonte: Blog Todos os Fogos o Fogo