No dia 3 de junho de 2012 a Globo News, através de seu programa “GloboNews Dossiê”, dirigido pelo veterano jornalista e escritor Geneton Moraes Netto entrevistou o ex-governador do Estado de São Paulo, Paulo Egydio Martins.

Este exerceu seu mandato após uma longa história de colaboração com regime civil-militar – incluindo aí sua estratégica passagem, nos primeiros anos da ditadura, pelo Ministério da Indústria e Comércio e pelo Ministério do Trabalho, entre 1966 e 1967- a época da imposição do chamado “arrocho salarial”.

Na entrevista, tratada de forma bombástica pelo próprio entrevistado, Paulo Egydio acusou os militares de terem “traído os civis”, impondo uma ditadura ao país. Ao mesmo tempo ofereceu-se, mais uma vez na expectativa de surfar na onda, para depor perante a Comissão da Verdade como testemunha.

Seria este o caso?

Eis aí uma boa versão da história – “empresários beneméritos traídos pelos militares”. Pena, muita pena – para todos os democratas do Brasil – que o ex-governador não tenha bem entendido o sentido histórico de suas ações, e de sua responsabilidade, nos anos iniciais de 1960 ao conspirar contra um regime constitucional e a sua colaboração nos piores anos do regime.

A ditadura que reprimiu, cassou, torturou e fez o controle sindical e o arrocho do mundo do trabalho foi um produto indesejado da conspiração de empresários e militares! Tal qual se diria na Alemanha no pós-Guerra: “…nós não sabíamos, nós não queríamos. Foram eles (os nazistas)!” Sem dúvida, aí começam as questões que enlaçam memória, história e responsabilidade.

O governador e os militares

Paulo Egydio Martins, nascido em São Paulo em 1928, é formado em engenharia pela antiga Universidade do Brasil e dedicou-se, de forma profissional, à gestão e direção de grandes empresas. Com o tempo aprofundou sua atuação no grande mercado de capitais, tornando-se banqueiro e gestor de empresas financeiras.

Foi diretor-gerente da Firma Byngton, depois acionista-controlador do Banco Comind e um dos diretores, hoje, do Itaucorp. Mas, isso, o que já é muito e bastante significativo, não resume o currículo de Paulo Egydio.

Foi também – e aqui começa sua entrada, enquanto personagem, na história do tempo presente do Brasil – Ministro da Indústria e Comércio no Governo Castelo Branco, no momento mesmo do golpe de Estado contra o governo constitucional de Jango. Foi o tempo da repressão ao sindicalismo, intervenções e prisões de líderes sindicais.

Para a grande massa de trabalhadores impunha-se, então, o arrocho salarial. Mais tarde, próximo do grupo “intelectual” dos militares (os “castelistas”), aproximou-se do General Golbery do Couto e Silva, valendo a indicação (biônica) para governador do Estado de São Paulo, no período entre 1975 e 1979.

Nestes anos, em especial em 1976 e 1977, travou-se uma luta dura e sem piedade entre os setores militares no poder acerca dos métodos e caminhos da chamada “abertura” proclamada por Ernesto Geisel.

Os militares contrários à pretendida abertura – planejada por Petrônio Portella, Tancredo Neves e pelo próprio Golbery – e que temiam os resultados de uma possível volta à democracia (sem uma tutela de militares e de notáveis do regime), usaram de todos os meios para impedir a democratização do regime. Entre estes meios estava acirrar a tortura e as mortes em dependências federais, como nos DOI-CODI, visando criar uma situação de crise que garantisse a manutenção da “fechadura”.

O trágico é que grande parte de tais atos se inseria na luta interna pelo poder e não em reais (para eles!) ameaças à ordem. A maioria dos atingidos pelos brutais atos de repressão era constituída de democratas lutando pela restauração das liberdades cívicas.

No Rio tais setores radicais passaram para atos terroristas, com atentados como os do Rio Centro, da OAB e da Câmara dos Vereadores e bancas de jornais (que vendiam a chamada “imprensa nanica”), causando mortes e mutilações.

Nestas condições deram-se os enfrentamentos entre os generais Geisel e Golbery, de um lado, e de seus camaradas de farda Sílvio Frota e de Ednardo D´Ávila Mello, comandante do II Exército, em cujas dependências morreram, entre outros, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.

O General Geisel, opunha-se a candidatura de seu ministro do Exercito, Silvio Frota, que pavimentava sua trajetória ao Palácio do Planalto com a mítica de ser o único guardião dos ideais de 1964. Para confirmar esta vocação apontava comunistas em todos os armários da República!

Os democratas eram vítimas de uma luta surda pelo poder.

O governador acusa militares de traição

Paulo Egydio narra ainda, na entrevista, sua perplexidade, e oposição, aos métodos utilizados no DOI-CODI da Rua Tutóia, acusando, sem restrições, os militares como os responsáveis de terem “maquiado” a morte de Herzog como pretenso suicídio e, mais tarde, de Fiel Filho.

Chega a declarar que intercedeu por um preso, casado com “uma pessoa querida sua”. Pena que todos os democratas não fossem “queridos seus”!

Ora, isso nós também já sabíamos! O que não sabíamos e o governador nos disse de novo? Que houve um a reunião prévia, pedida pelo empresário José Mindlin, então secretário de cultura do Estado de São Paulo, com os órgãos de informação e repressão do regime, pedindo informações e investigações sobre Vlado acusado de ser comunista pela “mídia” – e que teriam concluído a investigação com um simples “Nada consta”!

Os rumores tinham sua origem na mídia paulista – quais os jornais que queriam atingir Vlado? Quem eram os redatores? – Só então Vlado passou a ser alvo de uma “atenção especial” dos órgãos de repressão política, em especial do DOI-CODI. Muito possivelmente aí, em decorrência desta reunião, Vlado tornou-se um alvo especial.

Mais ainda: Paulo Egydio mostra-se revoltado com a “traição” dos militares: ”… nós, civis, na realidade, fomos traídos pelos militares”. Como assim “traição”? Neste momento o governador narra como, na qualidade de empresário, no seu escritório da Rua Boa Vista (e depois na casa “de duas saídas” da Rua Minas Gerais) organizou um grupo de empresários e de militares para derrubar o governo constitucional e eleito de Jango. Sem dúvida o governador entende o que é conspiração… Reuniões secretas, financiadas por empresários – no mínimo o aluguel da casa “de duas saídas” da Rua Minas Gerais – para derrubar, pela força um regime constitucional deve ser denominado de que?

Isso foi perguntando, com ênfase, por Geneton Moraes Netto e a resposta foi clara: “… conspiramos e tivemos ampla adesão!” Sim, parece cada vez mais claro que o governador deve ser convocado pela Comissão da Verdade.

Além disso, a entrevista da Globo News apresenta algumas evidências estarrecedoras e que passam impunemente, como detalhes descartáveis, na história do regime civil-militar de 1964. Nesta direção poderíamos citar:

1. As íntimas e complementares relações entre empresários e militares na conspiração contra o regime constitucional no Brasil, evidenciando o caráter simultaneamente “civil” e “militar” da ditadura brasileira entre 1964 e 1984;

2. a colaboração e a participação ativa de empresários como ministros, secretários de estado, dirigentes de estatais e contribuintes na preparação do golpe e na implantação e funcionamento do regime de 1964, em especial na formulação de políticas repressivas (de caráter sindical e trabalhista) e que explicitam o caráter classista do regime;

3. A existência de uma imprensa – jornais e televisão – que tomava à frente nos processos de calúnia, difamação e delação de cidadãos, criando uma agenda para a repressão.

A evidenciação dos nomes destes empresários , de suas firmas e dos jornais e seus redatores que participaram, incentivaram e, mesmo se adiantaram, na denúncia de resistentes e, em alguns casos, de simples cidadãos é um passo fundamental para entender e a aclarar o funcionamento e a natureza da ditadura.

É istlo que denominamos, com outros historiadores, de “enraizamento social da ditadura”. A rápida e fácil transferência de toda a culpa para os militares – “eles nos traíram” – é um procedimento de banal de passar “o currículo a limpo”.

É nesta direção que insistimos em trabalhos e pesquisas, sobre a “ampliação das responsabilidades” nos regimes ditatoriais – processo em curso em diversas historiografias, por exemplo, na Alemanha, Itália e Argentina em relação as suas respectivas ditaduras – e na rejeição da versão maniqueísta de militares contra a sociedade.

Como havia resistentes, havia também colaboradores e delatores no cotidiano da vida social. Não aceitar a sua existência, lançar toda a culpa sobre um único corpo social, é recusar a responsabilidade de centenas de delatores e colaboradores no interior das universidades, escolas, empresas, hospitais e, desta forma, diminuir todos aqueles que, por coragem cívica, tomaram a si a responsabilidade de resistir. Muitas vezes trabalhando e resistindo lado a lado com seus delatores.

O que o governador não falou

Entre os que resistiram, desde a primeira hora e na linha de frente estava o cardeal de São Paulo. Ao narrar seu “desentendimento” com o cardeal Paulo Evaristo Arns, que havia transformado a cúria paulista num núcleo ativo de defesa dos direitos humanos, o governador Paulo Egydio acusa, docemente é verdade, o cardeal de não entender sua “posição”.

Era o “governador de São Paulo”, não podia tomar posição, não podia se expor, não podia prejudicar o general Geisel (sic!). O que será que podia fazer o empresário, conspirador, ministro e então governador de São Paulo em face do pleno conhecimento – confessado por ele – da existência de execuções e torturas no seu estado?

O governador nada disse… Mas, um personagem que ele cita, em detalhes, durante sua entrevista – e sobre o qual nada se perguntou – sabia o que fazer: o coronel Erasmo Dias, por ele nomeado secretário de segurança do Estado de São Paulo.

Foi sob o governo de Paulo Egydio Martins que o Coronel Erasmo Dias – que prestara bons serviços ao regime na repressão da Guerrilha do Vale da Ribeira – ordenou e dirigiu a invasão violenta da PUC de São Paulo em 22 de setembro de 1977, resultando na prisão e espancamento de dezenas de estudantes.

Sem dúvida o governador Paulo Egydio deveria ser chamado a depor na Comissão da Verdade.

(*) Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 

Fonte: Carta Maior