O algoz quer equivalência com as vítimas
Nesta terça-feira, dia 22, a Comissão da Anistia julgará um dos casos mais desconcertantes do ciclo da ditadura militar brasileira: o caso do Cabo Anselmo. José Anselmo dos Santos foi um dos líderes da mobilização dos marinheiros nos anos 60. Em 25 de março de 1964 emprestou sua voz a um dos discursos mais inflamados da crise que levaria ao golpe de 64.
Depois tornou-se um traidor convicto;um membro do aparato repressivo que admite ter sido responsável pela prisão ou morte de cerca de 200 militantes políticos, inclusive a morte da própria companheira, Soledad Barrett Viedma –que denunciou ao delegado torturador Sergio Fleury, grávida de sete meses. Soledad seria executada então com mais cinco militantes em Pernambuco, em janeiro de 1973. O braço-auxiliar de Fleury quer agora uma reparação do Estado brasileiro.
Anselmo reivindica o direito à aposentadoria militar pela Marinha. No momento em que o governo instala uma Comissão da Verdade e algumas vozes na mídia – e na própria comissão – tentam vaporizar a história brasileira, dissolvendo-a em uma fornalha de suposta equivalência entre opressão e resistência nos marcos de uma ditadura militar, esse pode ser um julgamento referencial.
A Comissão de Anistia tem a responsabilidade de delimitar claramente o campo histórico e dentro dele distinguir as forças que perfilaram como algozes, daquelas que tombaram como vítimas, na resistência à opressão e à injustiça.
Órgãos de imprensa que cederam viaturas à repressão nos anos de chumbo ecoam a tese da diluição em causa própria. Infelizmente, não foram os únicos a acolchoar a infra-estrutura dentro da qual gritos foram sufocados, corpos foram moídos e a democracia asfixiada.
Em entrevista ao programa Roda-Viva, da TV Cultura, em outubro de 2011, Anselmo afirmou que não se arrepende de nada. Mas reclamou da situação financeira, só mitigada, disse, pela ajuda que recebe até hoje de um grupo de empresários –solidariedade espontânea ou compra de silêncio de outros elos da mesma engrenagem?
A entrevista ao Roda-Viva
Abaixo, o discurso de Cabo Anselmo, proferido em 25 de março de 1964, como presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. A fala contundente –e o motim que a seguiu– teria sido um dos pretextos para unir os militares no golpe contra Jango, seis dias depois.
“Aceite, Senhor Presidente, a saudação dos marinheiros e fuzileiros navais do Brasil, que são filhos e irmãos dos operários, dos camponeses, dos estudantes, das donas de casa, dos intelectuais e dos oficiais progressistas das nossas Forças Armadas;
Aceite, Senhor Presidente, a saudação daqueles que juraram defender a Pátria, e a defenderão se preciso for com o próprio sangue dos inimigos do povo: latifúndio e imperialismo;
Aceite, Senhor Presidente, a saudação do povo fardado que, com ansiedade, espera a realização efetiva das reformas de base, que libertarão da miséria os explorados do campo e da cidade, dos navios e dos quartéis.
Brasileiros civis e militares! Meus companheiros!
A Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil completa, neste mês de março, o seu segundo aniversário.
E foram as condições históricas, a fome, as discriminações, os anseios de liberdade, as perseguições e as injustiças sofridas, que determinaram a criação de uma sociedade civil, realmente independente, com a finalidade de unir, através da educação, da cultura e da recreação, os marinheiros e fuzileiros navais do Brasil.
Autoridades reacionárias, aliadas ao antipovo, escudadas nos regulamentos arcaicos e em decretos inconstitucionais, a qualificam de entidade subversiva.
Será subversivo manter cursos para marinheiros e fuzileiros? Será subversivo dar assistência médica e jurídica? Será subversivo visitar a Petrobrás? Será subversivo convidar o Presidente da República para dialogar com o povo fardado?
Quem tenta subverter a ordem não são os marinheiros, os soldados, os fuzileiros, os sargentos e os oficiais nacionalistas, como também não são os operários, os camponeses e os estudantes.
A verdade deve ser dita.
Quem, neste País, tenta subverter a ordem são os aliados das forças ocultas, que levaram um Presidente ao suicídio, outro à renúncia, e tentaram impedir a posse de Jango e agora impedem a realização das reformas de base; quem tenta subverter são aqueles que expulsaram da gloriosa Marinha o nosso diretor, em Ladário, por ter colocado na sala de reuniões um cartaz defendendo o monopólio integral do petróleo; quem tenta subverter a ordem são aqueles que proibiram os marujos do Brasil, nos navios, de ouvir a transmissão radiofônica do comício das reformas.
Somos homens fardados. Não somos políticos. Não temos compromissos com líderes ou facções partidárias. Entretanto, neste momento histórico, afirmamos o nosso entusiástico apoio ao decreto da Supra, ao da encampação da Capuava e demais refinarias particulares, e ao do tabelamento dos aluguéis.
Aguardamos, aliados ao povo, que o Governo Federal continue a tomar posições em defesa da bolsa dos trabalhadores e da emancipação econômica do Brasil. Na data de hoje comemoramos o nosso segundo aniversário, isto é, o aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil.
Ao nosso lado estão os irmãos das outras armas: sargentos do Exército e da Aeronáutica, soldados, cabos e sargentos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. Estão, também, companheiros da mesma luta, os sargentos da nossa querida Marinha de Guerra do Brasil. Aqui, sob o teto libertário do Palácio do Metalúrgico, sede do glorioso e combativo Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Estado da Guanabara, que é como o porto em que vem ancorar o encouraçado de nossa Associação, selamos a unidade dos marinheiros, fuzileiros, cabos e sargentos da Marinha com os nossos irmãos militares do Exército e da Aeronáutica, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, e com os nossos irmãos operários. Esta unidade entre militares e operários completa-se com a participação dos oficiais nacionalistas e progressistas das três armas na comemoração da data aniversária de nossa Associação.
Nós, marinheiros e fuzileiros, que almejamos a libertação de nosso povo, assinalamos que não estamos sozinhos. Ao nosso lado, lutam, também, operários, camponeses, estudantes, mulheres, funcionários públicos e a burguesia progressista; enfim, todo o povo brasileiro.
Nosso empenho é para que sejam efetivadas as reformas de base, Reformas que abrirão largos caminhos na redenção do povo brasileiro. Eis por que, do alto desta tribuna do Palácio do Metalúrgico, afirmamos à Nação que apoiamos a luta do Presidente da República em favor das reformas de base. Aplaudimos com veemência a Mensagem Presidencial enviada ao Congresso de nossa Pátria.
Clamamos aos deputados e senadores que ouçam o clamor do povo, exigindo as reformas de base. Ainda esperamos que o Congresso Nacional não fique alheio aos anseios populares.
E com urgência reforme a Constituição de 1946, ultrapassada no tempo, a fim de que, extinguindo o § 16 do art. 141, possa realmente, no Brasil, se fazer uma reforma agrária. Dizemos que somos contrários à indenização prévia em dinheiro para desapropriações.
O bem-estar social não pode estar condicionado aos interesses do Clube dos Contemplados. É necessário que se reforme a Constituição para estender o direito de voto aos soldados, cabos, marinheiros e aos analfabetos. Todos os alistáveis deverão ser elegíveis, para que novamente não ocorra a injustiça como a cometida contra o sargento Aimoré Zoch Cavalheiro.
Em nossos corações de jovens marujos palpita o mesmo sangue que corre nas veias do bravo marinheiro João Cândido, o grande Almirante Negro, e seus companheiros de luta que extinguiram a chibata na Marinha. Nós extinguiremos a chibata moral, que é a negação do nosso direito de voto e de nossos direitos democráticos.
Queremos ver assegurado o livre direito de organização, de manifestar o pensamento, de ir e vir. Defendemos intransigentemente os direitos democráticos e lutamos pelo direito de viver como seres humanos.
Queremos, na prática, a aplicação do princípio constitucional: “Todos são iguais perante a lei”. Nós, marinheiros e fuzileiros navais, reivindicamos: reforma do Regulamento Disciplinar da Marinha, regulamento anacrônico que impede até o casamento; não interferência do Conselho de Almirantado nos negócios internos da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil; reconhecimento pelas autoridades navais da AMFNB; anulação das faltas disciplinares que visam apenas a intimidar os associados e dirigentes da AMFNB; estabilidade para os cabos, marinheiros e fuzileiros; ampla e irrestrita anistia aos implicados no movimento de protesto de Brasília.
Iniciamos esta luta sem ilusões.
Sabemos que muitos tombarão para que cada camponês tenha direito ao seu pedaço de terra, para que se construam escolas, onde os nossos filhos possam aprender com orgulho a História de uma Pátria nova que começamos a construir, para que se construam fábricas e estradas por onde possam transitar nossas riquezas.
Para que o nosso povo encontre trabalho digno, tendo fim a horda de famintos que morrem dia a dia sem ter onde trabalhar nem o que comer. E sobretudo para que a nossa Bandeira verde e amarela possa cobrir uma terra livre onde impere a paz, a igualdade e a justiça social.”
Fonte: Carta Maior