Em 1974, Portugal estava sob o peso asfixiante de uma ditadura com quase cinco décadas de existência. Vivia-se num país sem horizontes: de um lado as Forças Armadas suportavam desde 1961 uma guerra colonial que envolvia extensas frentes de combate; por outro, a nação enleava-se num penalizador isolamento diplomático contrário à sua história.

Este era o panorama político de uma sociedade bloqueada. Valerá a pena sublinhar alguns aspectos que a caracterizavam. A partir do início dos anos 60, o volume da emigração portuguesa sofreu uma notável intensificação, passando a dirigir-se sobretudo para os países da Europa desenvolvida, principalmente França e Alemanha.

Calcula-se que, só no período que vai de 1960 até ao limiar da Revolução de Abril, tenham emigrado cerca de dois milhões de indivíduos potencialmente activos. Outro aspecto que importa assinalar é o dos padrões de distribuição de riqueza. Por volta de 1974 a proporção de famílias portuguesas vivendo abaixo de um limiar de pobreza rondava os 43%.

Um último traço de caracterização do Portugal em meados dos anos 70 diz respeito à relação da população com a instrução. Um em cada quatro portugueses com idade igual ou superior a 10 anos era analfabeto literal. A proporção de indivíduos com diploma ou frequência de instrução superior ficava-se apenas por 1,5%.

Este era o país que despertou incrédulo na madrugada libertadora do 25 de Abril. Não é exagerado dizer que se verificou, em Portugal, no curto período de quase quatro décadas, uma verdadeira mutação do País em que tudo se transformou – o regime político mas também a demografia, os padrões migratórios, as estruturas económico-produtivas e de emprego do País, os moldes de ocupação do território nacional.

Deu-se ainda uma mudança decisiva na qualificação pessoal dos portugueses. A população jovem feminina foi a grande protagonista e beneficiária do investimento educativo. Estamos, neste aspecto, diante de uma autêntica “revolução”.

Que é, sem dúvida, juntamente com o alargamento do acesso à escolarização, um dos mais belos cravos que os Capitães de Abril nos puseram na mão. O 25 de Abril permitiu-nos ainda entrar na modernidade e terminar o século XX plenamente integrados na família europeia.

Ao optar pela Europa, Portugal perfilhou um novo paradigma político, económico e social, tendo-lhe tal decisão permitido substituir linhas de força tradicionais da sua política externa e recolher dessa escolha uma projecção externa acrescida. O País abriu-se e modernizou-se, os portugueses recuperaram a sua auto-estima, aprenderam a olhar de outra forma a sua história e cultura.

Hoje, ao celebrarmos o 38.º aniversário do 25 de Abril, importa que enfrentemos com a mesma esperança colectiva, idêntica confiança e a igual ambição os desafios que temos pela frente para dobrarmos o cabo do século XXI. São as reformas encetadas em 1974 que temos de completar ou adaptar, para responder aos novos desafios do nosso tempo.

A resposta à crise portuguesa só será completa quando houver uma resposta comum à crise europeia. É certo que a intervenção externa e a necessidade de sanear as contas públicas, por um lado, e a recessão económica, por outro, limitam a nossa capacidade de actuação.

Mas precisamos de continuar a apostar naquilo de onde podem nascer atitudes de inovação, de abertura, de dinamismo, de descoberta e, sobretudo, de crescimento económico, sem o qual não há emprego durável. Sem perspectivas de emprego, não é possível fixar os jovens, hoje bem mais apetrechados, de que tanto precisamos para criar condições de desenvolvimento sustentável. A crise tornou imperativo um melhor aproveitamento dos escassos recursos de que dispomos e uma redobrada atenção às nossas profundas desigualdades económico-sociais.

O rigor acrescido imposto aos critérios de intervenção pública e a nova sobriedade imposta ao Estado não têm de significar nem a negação dos seus deveres imperativos na defesa e na segurança de Portugal nem a rejeição das suas obrigações como garante da solidariedade e da coesão. Também não pode nunca significar a secundarização das actividades do conhecimento e da criação, que são, no século XXI, aquilo que, antes de tudo, torna aptos os países a vencerem.

Pensar que a crise se combate com uma atitude passadista, restritiva, passiva e resignada seria um erro que nos comprometeria o futuro. A situação em que estamos – em que toda a Europa está – foi também causada por falta de iniciativa e de coesão nestes domínios.

Fez-se alguma coisa, mas não se fez aquilo que era preciso fazer (basta pensarmos no que sucedeu com a Estratégia de Lisboa). A visão que tem dominado o mundo, financista e especuladora, fundada na desigualdade estrutural, só visa o imediatamente rentável. Precisamos de uma outra visão, humanista e geradora de futuro para todos. Os projectos de cultura, de ciência, de conhecimento e de criatividade têm de saber atrair os melhores.

É preciso repetir: há futuro para além do deprimente presente, há mais vida para além da crise. A recessão cultural e social é tão ou mais danosa do que a recessão económica.

A vida tem de prosseguir. Temos a responsabilidade de escolher e de definir prioridades. Tal como em Abril de 74, nada nos dispensa de uma agenda nacional que mobilize com confiança as experiências e a energia dos portugueses.

* Ex-Presidente da República

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“Qualquer comparação não faz sequer sentido”

por MÁRIO SOARES Hoje

Mudou tudo. Não há comparação nenhuma com um passado de miséria, de guerra e de ditadura, em que Portugal viveu “orgulhosamente só”, durante quarenta e oito anos de cruel ditadura.

Passámos a ser um país do primeiro mundo, com um serviço de saúde exemplar, com respeito pela dignidade do trabalho e pelos sindicatos e uma democracia pluralista que fez inveja e foi modelo para muitas democracias, sobretudo da América Latina, sem excluir o nosso querido Brasil (nesse tempo também em ditadura).

Agora estamos a viver uma crise que veio de fora – da América e da Europa – e que tem muito a ver com a incapacidade de muitos atuais dirigentes europeus, que acreditam na austeridade cega e não se importam com o crescimento exponencial do desemprego e com a paralisia das economias europeias, em recessão.

Portanto, qualquer comparação não faz sequer sentido.

       Fonte: Blog do Nassif