Na caravana de familiares de 1980 o advogado-do-mato, Paulo Fonteles, forneceu aos viajantes informações de aspectos importantes que deveriam ser compreendidas naquela ousada expedição araguaiana:
“(…) bem, o coração de vocês deve ser bastante duro nessa viagem porque vocês irão ouvir coisas não muito boas de se ouvir: camponês que entregou guerrilheiro, que envenenou guerrilheiro, que levou para comer em casa e botou veneno (…).

“Paulo, se eles eram tão estimados como fizeram essas atrocidades com eles?”, perguntou Edgar Corrêa, pai da desaparecida Maria Célia Corrêa, a ‘Rosinha’.

“Seu Edgar – explica o advogado- têm, por exemplo, um camponês do qual não recordo o nome que entregou  parece que a “Sônia”(Lúcia Maria de Souza). E esse homem até hoje vive pelas matas se maldizendo ‘por que eu fiz isso? por que eu entreguei a “Sônia”? se ela era tão boa para mim! porque eu fiz isso?’ Inclusive a “Sônia”, na hora que foi presa, disse para ele o seguinte: ‘Eu não tenho pena de ti, eu tenho pena é de teus filhos’.

Então, na imagem dele, na cabeça dele, parece que ficou que a guerrilheira morreu e vai perseguir os filhos dele (…) o fato concreto é que o Exército conseguiu o apoio de uma boa parte da massa (…) mas uma outra parte da massa apoiou a guerrilha até o fim (…) teve camponês que foi torturado porque apoiava a guerrilha, camponês que foi assassinado, essa dupla realidade a gente encontra na região (…)”.

Paulo Fonteles interrompe a narrativa, acende um cigarro e prossegue:

“Talvez eu esteja sendo assistemático, mas gosto de falar de dados reais. Há um camponês na região do ‘Paradalama’ chamado Manoel ‘Gago’. O primeiro contato que eu tive com ele está fazendo um ano e meio.

Era um contato para prestar assistência jurídica a uma luta que ele vinha desenvolvendo contra uma turma de grileiros. Manoel ‘Gago’ começou a me contar que havia entregue um guerrilheiro; amarrou-o na casa dele e foi chamar o Exército para buscá-lo (…) contava festejadamente.

Fui para minha cama, fumei uns dois cigarros, me refiz da coisa toda e comecei a pensar ‘o que eu vou fazer com esse filho da puta?, servir de advogado dele, esse bandido que entregou um companheiro?’.

Mas, finalmente, eu percebi que o camponês não tinha culpa no cartório, foi usado como instrumento da reação (…) voltei para conversar e a gente criou uma amizade”.

O advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) procura dar régua-e-compasso para os mais de vinte caravaneiros, precisamente sobre como tratar e compreender os lavradores:

“O Manoel ‘Gago’ já era uma liderança de luta de massas da região dele quando começou a se desenvolver politicamente e a gente sempre conversava sobre a guerrilha quando discutia. O movimento de massas foi crescendo na região (…) até que chegou um momento em que o Manoel ‘Gago’ tomou consciência do que fora a guerrilha.

Eu me lembro bem que eram umas cinco e meia da tarde quando eu bati no ombro do Manoel depois de um encontro pastoral: ‘pois é Manoel, tu já sabes o que aquele pessoal estava fazendo aqui?’, aí ele me disse: ‘agora eu sei!’.

Quando foi na hora da missa, têm a hora da remissão dos pecados em que o pessoal começa a pedir perdão (…) então o Manoel começou muito emocionado a pedir perdão à Deus: ‘meu Deus, meu Deus, eu peço perdão pelo mal feito com gente que gostava de nós, que eu não sabia e que eu fiz muito mal’.

Pois bem – prossegue Fonteles-  eu contei essa história do Manoel para explicar a conduta que uma parte da massa teve diante da guerrilha. Então, isso é para que a gente tenha consciência para que, se a gente encontrar um camponês que deseje falar e que tenha participado como guia ou como agente da repressão, ou que tenha entregue algum companheiro; a gente saiba ter uma conduta política diante desse camponês, perceber que, na verdade, ele mais do que culpado foi vítima daquela situação.

Não é que a história vá se repetir (…) teve outro camponês que me contou a seguinte história: ‘olha – o advogado comunista relata a advertência do lavrador para com os guerrilheiros – vocês vêm na minha casa e o dia que vocês vierem têm almoço, comida, têm tudo. Agora vocês não me digam o dia que vocês vem’.

A explicação para aquela atitude veio em seguida:

“Porque se eles, os guerrilheiros, dissessem e o Exército chegasse lá, ele, o camponês, submetido à tortura talvez dissesse o dia. E tem exemplos desse tipo, de fato. Um conjunto expressivo esteve até o fim do lado dos guerrilheiros.

Bem, acho que esta história (…) é bom não entrar em digressão teórica, mas o exemplo vivo ensina muito mais coisas. Há hoje (1980) este movimento camponês na região. Será que têm alguma coisa haver com a guerrilha (…) e o movimento camponês hoje na região? (…) bem, alguns acham que não há (…) eu provo que há!”.

A preocupação permanente  do advogado-do-mato, Paulo Fonteles, era o retraimento da população diante da caravana. A justeza da inquietação correspondia ao fato de que toda a área deflagrada pelo movimento guerrilheiro era um campo sensível para a aplicação da ideologia da segurança nacional, própria daqueles tempos.

Entre os aspectos destacados está o fato de que “(…) Marabá, por exemplo, seria a última cidade onde a abertura política iria chegar”.

O trabalho da CPT na região, tendo por base o serviço ao povo e a politização já estabelecia um contato mais aprofundado com os trabalhadores rurais araguaianos. Nos mais remotos dos sertões, naquilo que chamamos de país profundo, a equipe da pastoral preparava a população para o enfrentamento ao latifúndio e, via de regra, utilizava a questão da luta guerrilheira.

Muitos lavradores abandonavam o termo pejorativo “terrorista” pelo justo “guerrilheiro” e estes passavam a entender os motivos da luta das Forças Guerrilheiras do Araguaia.

Na prática o entendimento se manifestou quando, em 1976, os camponeses organizaram em São Geraldo do Araguaia a “Guerra dos Perdidos” ou a “Segunda Guerra”, segundo a memória dos que, com armas nas mãos enfrentaram o Exército e a Polícia Militar do Pará. Tal enfrentamento ocorreu por conta da ação do Incra que, atuava favoravelmente à grande empresa rural ensejando a expulsão de numerosas famílias de suas terras.

A “Guerra dos Perdidos” foi relatada há poucos anos pelo jornalista Leonencio Nossa, de “O Estado de São Paulo”, num conjunto artigos sobre eventos de lutas sociais – “As guerras desconhecidas do Brasil” – ocorridas no século XX, sempre nos áridos sertões brasileiros.

Para ilustrar aquele ambiente de luta campesina, Paulo Fonteles, que desde 1978 atuava na região exemplificava:

“(…) não sou, companheiros, apologista da guerrilha (…) a caravana pode contribuir muito para o avanço das informações sobre a guerrilha. O fato é que estende-se por toda a região um movimento camponês muito forte a ponto de lavradores, às vezes analfabetos, discutirem ‘testa a testa’ com coronel e firmarem posição. Há quinze dias atrás, na região dos ‘Claros’ (São Geraldo do Araguaia) um grupo de lavradores impediu que os agrimensores do Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins (Getat) – orgão militarizado de política fundiária- de cortar uma área (…) foram lá e disseram: ‘vocês não vão cortar a área porque a área já está cortada (…) o Getat não vai mexer em terra de ninguém (…) “lei nós já têm”, vocês tem que medir (…)’. Os lavradores estão contrariando toda a política do Getat e foram fazer discussão na sede do Getat em São Geraldo do Araguaia com coronel e representantes de Brasília dizendo que lá ‘ninguém vai mexer na terra’ (…) e o Getat respeitou, até porque por trás da ação de um grupo de lavradores têm toda uma massa relativamente organizada”.

O advogado aborda uma questão absolutamente delicada:

“(…) o problema central do movimento camponês na região é a crença no papel das forças armadas, que estas respeitam o povo – e cita exemplos- antes de estourar a guerrilha o Exército demagogicamente impediu que a terra de um lavrador fosse grilada. Foram lá, prenderam os jagunços (…) problema de terra, vai no oito (52 Bis), lá se encaminha para o juiz, para o delegado (…). Fato novo, dia 13 de setembro último ocorreu no caso da Fazenda Bamerindus quando um lavrador fora sequestrado por pistoleiros e setenta e sete homens armados cercaram a fazenda. O Exército baixou lá um capitão que, desastradamente, afirmou no final de contas que não havia pistoleiro nenhum e que se os lavradores não fizessem acordo iam entrar no pau com o Exército.
Foi a primeira vez que um oficial comete um erro dessa natureza (…)”.

Paulo Fonteles explica:

“Porque eu coloco isso? (…) o Exército não participa da luta direta do grileiro com posseiro, encaminha para o juiz, para o delegado e o pau corre solto”.

Reportando-se a um dos mais famigerados agentes da repressão, destacou:

“O Curió é um quadro do mais alto calibre das forças armadas, inteligentissímo, habilissímo, bom de conversa. O nome dele é Curió mesmo porque é um cantador. Gentil, educado, dá tapinhas nas costas, bate-papo, conversa, conta piada, vai na casa do lavrador, toma café, dorme na rede, se junta com a massa. Têm o papel de botar sempre ‘panos quentes'”.

Sobre o barril de pólvora no araguaia, testemunhou:

“Agora, independente disso, os grupos econômicos atuam para tirar o lavrador da terra e a coisa chegou a tal ponto que o Exército começa objetivamente a intervir na área (…) já existe uma companhia acantonada com cento e cinquenta homens em São Geraldo para construir um quartel (…) uma estrada será aberta que ligará São Geraldo à Itaipavas (atual município de Piçarra do Pará), atravessando toda a região (…) mais ou menos uns 60 Km (…) essa estrada é uma operacional militar já preparando uma intervenção direta na área. Quando Dom Alano Penna (então Bispo de Marabá) disse que eles estão preparando uma nova guerra é porque nos últimos meses têm se desenvolvido muita luta e os lavradores estão numa ofensiva geral, estão ocupando as terras, botando pra fora o gerente, o jagunço, o fazendeirão e ficando nelas (…) só falo isso porque o Exército sabe e é por isso que manobra e faz concessão (…) porque o Exército sabe que se intervir desastradamente pode criar uma rebelião camponesa que talvez não teria condições de debelar e é por isso que eles manobram (…)”.

Uma voz interrompeu-lhe a fala, perguntando:

“O povo não vincula a morte dos guerrilheiros ao Exército?”

“Claro que vincula – respondeu o advogado – eles eram amados, todo o povo gostava do pessoal, gostava pela prática correta, justa. No que toca a população, eram amigos do povo, ajudavam, socorriam. E de um modo geral, jamais encontrei um lavrador que se queixasse deles, todos só falam bem.

Agora, mediante a propaganda que realizou o Exército de que eram terroristas, assaltantes de bancos, que queriam entregar o Brasil para Cuba, Rússia e China, mediante uma intensa campanha de assistência (as Operações Aciso) à população (…) e depois mediante à tortura, a violência desencadeada contra a população, eles conseguiram, na verdade, o apoio de uma parte da massa contra os guerrilheiros (…)”.

É sabido que uma terrível repressão se abateu sobre toda área conflagrada da guerrilha.
Angelo Arroyo, em seu histórico relatório, afirmara que mais de mil moradores foram presos e torturados pelas forças armadas. A caravana de familiares de 1980 constatou esse fato de que centenas de lavradores pobres, castanheiros, pequenos comerciantes, barqueiros e artezãos foram atingidos pela brutal repressão.

Em currutelas, como São Domingos das Latas e Palestina do Pará,  quase toda a população fora presa. Muitos foram trancafiados por meses e bestializados até a náusea o que revela que muitos dos camponeses haviam se ligado à guerrilha em alto nível.

Muitos, lavradores anônimos, jamais voltaram para suas casas e suas vidas modestas de trabalho duro de roça.

A força da ditadura militar, apenas no período de 1972 até 1975, tempo da existência do movimento insurgente pode ter produzido mais de trezentos assassinatos. A Comissão Nacional da Verdade têm, também, a tarefa de tirar da escuridão tais acontecimentos da vida brasileira.

Fonte: Blog do Paulo Fonteles Filho