Miguel Aldeco abre a porta da sua casa e logo se acomoda em uma poltrona branca. Na sala, diversos objetos – quadros, esculturas, broches – remetem às ilhas Malvinas. Em poucos minutos, estará falando energicamente sobre como foi “sobreviver”, como soldado, aos 19 anos de idade, à guerra que participou em 1982. Mas nem sempre foi assim. Por longos anos, Miguel, hoje casado e pais de quatro filhos, funcionário administrativo de uma escola na Grande Buenos Aires, simplesmente não tocou no assunto com ninguém.

Para além da dificuldade de falar sobre os horrores da Guerra, havia uma proibição clara da ditadura civil-militar argentina que, nesse momento, já apontava para seu fim. Com início em 24 de março de 1976, duraria até 10 de dezembro de 1983.

Além dos 30 mil mortos e desaparecidos na repressão, para muitos, as perdas humanas geradas na Guerra das Malvinas também entram na conta de vítimas do regime civil-militar. De combatentes, os soldados se coverteram em testemunhas do que muitos classificam como uma “aventura militar” irresponsável por parte do regime, nesse momento, totalmente desgastado.

País com índices sociais bastante altos para o padrão latino-americano, em parte devido às conquistas iniciadas com o chamado primeiro peronismo (1946-1955), a Argentina viu, a parir de década de 1970 uma deterioração progressiva de sua economia devido ao projeto econômico levado a cabo pelos militares, o que levou o país, na entrada da década seguinte a uma profunda crise econômica e social.

Para muitos especialistas, a Guerra das Malvinas é apontada como uma “jogada” do governo justamente para garantir uma sobrevida ao regime, debilitado pelas denúncias de organizações de direitos humanos, mas principalmente pela piora das condições de vida da população.

Consciência da derrota

Para o historiador Federico Lorenz, de fato pesou a necessidade de tirar o foco da crise. “Mas gerou um forte respaldo popular que os militares não esperavam; isso, somado à resposta britânica os obrigou a ir adiante”, analisa.

Para Lorenz, o plano inicial da Junta, baseado em conjecturas que depois se mostraram equivocadas e frágeis, era fundamentalmente retomar as ilhas transitoriamente para que diante da situação real a Grã-Bretanha se visse forçada a negociar.

“A realidade é que um dia depois os britânicos enviam a maior frota que tinham armado desde a II Guerra. Ao mesmo tempo, a mobilização aqui era tão forte que se a questão era legitimar-se no poder a Junta não poderia voltar atrás”.

Entretanto, Lorenz ressalta que a ditadura nunca pensou que haveria uma guerra de fato. “Isso está no informe Rattenbach. Não esperavam uma resposta militar britânica. Produzida a resposta, tinha plena consciência de que não poderiam ganhar, por isso a responsabilidade é muito maior”, comenta.

O relatório Rattenbach foi produzido pelo tenente coronel Benjamin Rattenbach, em 1983, a pedido do então ditador Reynaldo Bignone. Foi divulgado logo depois do fim da ditadura, mas recentemente foi disponibilizado pelo governo argentino e pode ser facilmente encontrado na internet.

O documento aponta diversos erros de avaliação cometidos pela Junta, além de deixar claro que tinham plena consciência da impossibilidade de ganhar uma guerra contra a Grã-Bretanha.

Omar Acha, historiador e docente da Universidade de Buenos Aires, também ressalta esse aspecto. “Os militares estavam perfeitamente cientes da inviabilidade de uma guerra”.

O professor aponta que um dos cálculos geopolíticos feitos na época era de que os Estados Unidos não entrariam no conflito, e que a União Soviética poderia lhes brindar apoio. “As ações se desencadearam de tal maneira que a Argentina se jogou numa guerra sem ter o preparo necessário”.

Inconsciência

Neto de militar, Miguel foi o único de uma extensa família a satisfazer as vontades do avô. Nenhum dos filhos ou netos havia prestado o serviço obrigatório, por distintos motivos. Já muito velho e doente, em um hospital, o avô pedia a Miguel que fosse de uniforme visitá-lo.

Poucos meses antes da guerra, faleceu. Restava pouco tempo para que Miguel completasse um ano de serviço, e já tinha decidido pedir dispensa. Faltando dez dias para tal, foi chamado para formar a Operação Rosário, como as Forças Armadas argentinas chamaram a ação militar nas Malvinas, iniciados no dia 2 de abril de 1982.

Junto com outros 150 soldados da Força Aérea, Miguel saiu da base aérea de Palomar, na Grande Buenos Aires, rumo à cidade patagônica de Comodoro Rivadavia. “Fazia um dia cinza e feio e quando o avião subiu, lá em cima havia um sol radiante.

Era a primeira vez que muitos ali andavam de avião. Para mim era”, relembra Miguel. Chegou no dia 7 de abril às 17h às Malvinas, com o dia já escuro. Foi recebido pelo frio, o vento e a garoa. “O tempo aí era sempre assim”.

O ex-combatente conta que não havia clima de guerra. “Eu tenho uma forte lembrança. Íamos cantando como se fossemos a um jogo de futebol. Havia muito entusiasmo. Íamos com nossa juventude, nossa alma, de coração, cantávamos ‘fora os ingleses’, coisas assim”, resume.

Depois de caminhar sete quilômetros com 30 quilos de bagagem e equipamentos nas costas, chegaram a Porto Argentino (chamada pelos britânicos e os colonos de Stanley) e aí dormiram em uns containers de metal. “Era pior do que dormir na intempérie, pois se transformava em uma geladeira. Pela manhã, víamos que se formava uma camada grossa de geada em cima”, lembra Miguel.

Para o ex-soldado, entretanto, a realidade da guerra só se deu posteriormente, não só para ele, mas para vários de seus companheiros. “No dia 1º de maio foi quando tomei consciência de que estava em uma guerra. Foi o batismo de fogo. Não esperávamos”, conta. No dia seguinte, outro duro golpe. O navio General Belgrano, com 323 militares argentinos a bordo é atingido pela marinha britânica. Todas 323 pessoas morreram.

Péssimas condições e torturas

Hoje crítico à guerra, Miguel faz questão de ressaltar que, apesar dos erros do regime civil-militar, os soldados argentinos que foram às Malvinas lutaram bravamente pelo seu país, ainda que com pouca consciência de todo processo e em condições obviamente adversas.

Ele conta que, por conta de mau tempo constante, as armas enferrujavam e não tinham sequer óleo para a manutenção. “Todo o equipamento era muito precário. O que fizemos aí foi sobreviver. Todos os dias fazia frio e garoa permanente. Com isso, os fuzis se oxidavam, era necessário manutenção, mas não tínhamos óleo.

Às vezes falhavam”. A comunicação entre as tropas era igualmente precária. “Nos comunicávamos a manivela, literalmente, como na Segunda Guerra. Não tínhamos sequer uma forma eficiente de nos comunicar”.

Entre os relatos de ex-combatentes, muitos contam que os oficiais presentes na ilha terminaram por transferir o modus operandi da repressão à guerra. São muitos os relatos de tortura, como os chamados estaqueamentos, onde a pessoa era colocada no chão com braços e pernas esticados e presos cor cordas, fixadas por estacas no chão.

“Houve companheiros meus estaqueados, muitos porque dormiam durante a guarda. Tive sorte de ter bons oficiais, mas isso ocorreu. Obviamente é uma tortura, principalmente levando em conta o clima de onde estávamos”, recorda.

Os combates finais ocorreram entre 12 e 14 de junho, momentos que o ex soldado guarda bem na memória. “Foram 48 horas de combate permanente. Dia 14, às 8h passou o helicóptero argentino ordenando o cessar fogo.

Os soldados não queriam se render. Nossos companheiros estavam mortos, como íamos nos render?”. Nesse momento, Miguel se põe inquieto na poltrona. Desde o início da entrevista, é a primeira vez em que os olhos se enchem d’água.

“Sabe, eu vejo esses ex-soldados indo às Malvinas [a TV argentina fez especiais em que ex combatentes voltaram às ilhas 30 anos depois] e não critico, mas não iria. Tive que enterrar amigos, ver cortar a perna de outro porque dormiu em um poço e os pés de congelaram.

Não vou porque não vou tirar um passaporte para ir ao meu próprio país. Me recuso a ir a Malvinas nas condições de hoje. Como posso chegar no túmulo desses companheiros e dizer que tive que tirar um visto para estar ali? Não vou”, indigna-se.

Silêncio forçado e suicídios

Miguel sobreviveu e foi feito prisioneiros pelo Exército inglês. Nesse momento, tomou consciência da inferioridade das tropas argentinas. Uma lancha os levou, em grupos, a um navio que depois os levaram ao continente.

Quando chegamos ao lado da embarcação, comecei a subir as escadas, muito altas, para entrar. Lá no alto já, parei e virei e aí tive noção do tamanho da frota inglesa. Era muito grande. Da terra, pela neblina, não tínhamos noção”.

Terminado o conflito, todos militares que estiveram em combate foram forçados a assinar um termo de compromisso em que se comprometiam a não tocar no assunto.

“Os militares diziam que era um segredo de Estado que não podia ser revelado, e nos ameaçavam com a prisão. Não podíamos sequer contar a nossas famílias. No diziam: ‘para quê? não os mortifiquem com suas histórias, não façam a mãe de vocês sofrerem ainda mais’”.

A primeira vez que se viu impelido a falar sobre o tema foi quando há pouco mais de 10 anos, uma de suas filhas lhes fez uma pergunta banal sobre sua presença na Guerra. “Minha filha, então com 10 anos, estava assistindo um show pela televisão. Apareceram nas imagens um banheiro químico e então me perguntou: ‘pai, vocês usavam esses banheiros nas Malvinas?’.

Fiquei sem reação por alguns segundos e respondi: ‘não minha filha, não tínhamos banheiro’. Aí me dei conta de que se não falasse sobre isso, ninguém ia saber nada. Minha própria filha não sabia nada sobre a guerra. Desde então comecei a falar e onde me chamam e pedem, vou falar sobre as Malvinas”.

Para Miguel, o silêncio forçado é uma das principais causas do elevado número de suicídios entre ex-combatentes argentinos. “Esse silêncio machuca muito. Tudo aquilo que você não põe para fora apodrece dentro de você e uma hora explode”, resume.

Segundo dados divulgados pela imprensa argentina nos últimos dias, esse número chega a 500. É um pouco menor do que a quantidade de soldados mortos em combate (323 no afundamento do General Belgrano, mais 326 no arquipélago). Segundo um estudo feito pelo sistema de saúde pública no país, dos sobreviventes, 40% já tentou suicídio, 70% tem problemas para dormir e quase metade possui distintos graus de alcoolismo.

Melhoras e soluções

Federico Lorenz afirma que o estresse pós-traumático é algo comum aos soldados que participam em todas as guerras, mas no caso de Malvinas está exacerbado porque os soldados que voltaram encontraram uma sociedade bastante refratária a escutar o que lhes havia passado.

“Deve se entender o clima que vivia o país, de transição à democracia. Havia rechaço a qualquer coisa que fosse militar, muitas das atrocidades da ditadura começavam a aparecer. Agrega-se a isso uma grande sensação de frustração que se seguiu à derrota”, comenta.

“Os militares nos desprezavam porque éramos os soldados que havíamos lutado em Malvinas e a sociedade nos rejeitava porque nos vinculava aos militares”, resume Miguel. Para ele, a consequência direta foi um silêncio de 20 anos por parte do Estado e da sociedade. “Nos últimos 10 a coisa começou a melhorar e começamos a ser medianamente reconhecidos”, avalia.

Desde 2004, já com a presidência de Nestor Kirchner, os ex-combatentes começaram a receber benefícios do Estado, equivalente a três salários mínimos.

“Não fomos lutar por dinheiro, mas temos direito ao benefício, em parte também pelos gastos médicos que temos. Mas isso não é tudo. Falta que se fale permanentemente das Malvinas, não só no dia 2 de abril; o tema tem que ser instalado na sociedade de maneira constante”, afirma Miguel.

Miguel analisa positivamente as recentes investidas do governo federal em discutir a questão. Omar Acha também avalia que há um interesse genuíno em resolver a questão da soberania das ilhas, mas acredita que seu raio de ação é pouco eficiente. “Percebo que o interesse é real.

Não creio que na Argentina se difira muito a respeito. Até no governo menemista, nos anos noventa, essa ideia estava viva. Entretanto, as ações concretas para levar a cabo a descolonização carecem de efetividade”.

Soberania latino-americana

“Eu penso que qualquer avanço vai ser muito lento. Mas é essencial dar grande discussão interna sobre Malvinas. Se o governo aprofundar a discussão, seria um primeiro passo”, afirma Federico Lorenz.

Para ele, um eixo interessante e novo é ver o problema de Malvinas como um problema de soberania regional. “É uma novidade, por exemplo, que Chile apoie a Argentina. É bom também ter em conta o que pode significar o tema de Malvinas para um país como Brasil que tem um próprio interesse regional e que está levando a cabo explorações de petróleo, com êxito, em sua própria plataforma. Os ingleses em Malvinas representam uma presença militar de uma potência imperial muito perto”, opina.

Uma fonte do Itamaraty em Buenos Aires afirmou à reportagem que o Brasil não vê o tema como relativo à soberania latino-americana, mas sim argentina. Agregou que desde 1833 o Brasil considera legítimo e apoia o reclamo do país vizinho pelas ilhas.

Do outro lado, Omar Acha identifica que a vontade de Grã-Bretanha em resolver o problema, é quase nula. E seguirá sendo assim, pelo menos a curto prazo. “Não creio que eles estejam dispostos a uma solução diplomática.

Dizer que a recuperação das ilhas vai se concretizar através de uma ação que se atenha a foros internacionais é uma utopia, uma crença que a realidade não corrobora. Desde já, qualquer outra alternativa é inviável. Às vezes não há solução a curto prazo”, avalia.

Para o professor, caso se confirme que não há possibilidade de exploração petrolífera nas ilhas, esse quadro pode se reverter, abrindo possibilidade para que a Inglaterra flexibilize sua postura.

Lorenz conta que de 1833, data em que os ingleses ocupam as ilhas até 1982, a Argentina tentou saídas diplomáticas sistematicamente, mas foi ignorada. “Primeiro tentou direto com a Coroa inglesa, depois com a ONU. Eles nunca sentaram para conversar. Eles nunca mudaram seu discurso de potência imperial”, explica. 

Fonte: Carta Maior