Escracho na TV
Este mês, a Revista de História – que já está nas bancas de todo o país – traz ao leitor um Especial sobre humor na História do Brasil. Acompanhando a entrevista com o pesquisador Elias Saliba, a reportagem “Entre o riso e o desconforto”, de Alice Melo, problematiza os limites do humor de entretenimento no país: da Era do Rádio aos dias de hoje.
Em complemento ao conteúdo impresso, o artigo online de Alexandre Leitão comenta o tipo de humor na televisão Brasileira dos anos 1980.
O ano era 1985. Com os novos ares democráticos, mudanças políticas invariavelmente ocorriam no país, em especial no campo da liberdade de expressão. Solange Maria Teixeira Hernandez deixava o cargo de diretora da Divisão de Censura e Diversões Públicas, e com ela iam-se os últimos resquícios daquilo que se denominava a defesa da “moral e dos bons costumes”.
Famosa por ter estado muito mais à direita do que o próprio regime dentro do qual trabalhou, Solange chegou a se pôr contra obras que haviam recebido parecer favorável do Conselho Superior de Censura, caso do filme Pra Frente Brasil. Ao sair, a maior “homenagem” que recebeu foi o hit de Léo Jaime e Leoni, Solange, versão em português do sucesso do The Police, So Lonely. A letra começava assim:
Eu tinha tanto pra dizer/ Metade eu tive que esquecer/ E quando eu tento escrever/ Seu nome vem me interromper/ Eu tento me esparramar/ E você quer me esconder/ Eu já não posso nem cantar/ Meus dentes rangem por você/ Solange, Solange/ É o fim Solange.
Mas não era só na música que uma nova leva de artistas aproveitava as liberdades recém-adquiridas para romper as barreiras do aceitável. Foi na comédia, acima de tudo, que a década de 1980 mostrou-se tão revolucionária. Afinal, não se tratava mais de denunciar o regime por meio do riso, mas de viver em seu extremo deboche a nova liberdade que se adquiria. Era o ápice do humor de escracho.
Grupos e artistas tradicionais, como Os Trapalhões e o já saudoso Chico Anysio, chegavam ao auge de seu sucesso, enquanto uma galera saída das salas da UFRJ começava a publicar os periódicos Casseta Popular e Planeta Diário.
Nos palcos, as apresentações de Paula Autran e Fernanda Montenegro, já nomes sagrados da dramaturgia brasileira, eram seguidas pelo sucesso de garotos como Pedro Cardoso, Miguel Fallabella e os integrantes do grupo de teatro Asdrúbal trouxe o trombone.
Na TV, as últimas sanções impostas pelo governo foram sendo paulatinamente removidas, podendo se tratar cada vez mais de temas cotidianos a partir de um ponto de vista polêmico – piadas que hoje poderiam ser consideradas racistas, homofóbicas e machistas, mesclavam-se ao uso de palavrões e ao deboche generalizado, que não poupava políticos nem mendigos.
Altas trapalhadas
No caso dos Trapalhões, o que havia durante os anos 1980 era uma mistura da comédia em estilo saltimbanco e o que hoje chamaríamos de politicamente incorreto. Ogrupo formado por Renato Aragão (Didi), Manfried Sant’anna (Dedé), Mussum e Zacarias elaborava esquetes sem ligação entre si – no mesmo episódio, por exemplo, a trupe encenava situações num apartamento e, logo depois, outra completamente diferente num xadrez de uma delegacia; brincando, no limite do aceitável para a época, com estereotipo da sociedade brasileira: o negro, o nordestino, o afeminado.
Hoje, a própria TV aberta tem um filtro para reprisar episódios da série humorística, já que muita coisa toca no limite do politicamente correto. Talvez o exemplo mais claro seja a caracterização do personagem Mussum.
Sua única preocupação na vida, como ele próprio o diz, é o “mé”, gíria que se refere às bebidas alcoólicas em geral, mas particularmente à cachaça. Retratar um personagem afro-descendente como um beberrão inveterado não seria mais aceitável em nossos dias, tanto do ponto de vista jurídico quanto do político.
Outro programa televisivo de grande sucesso da década das polainas, saias balonês e ombreiras, foi a TV Pirata, da TV Globo. Com roteiro de Luís Fernando Veríssimo, Laerte, Glauco, Miguel Falabella e Pedro Cardoso (egressos da cena teatral carioca) e os rapazes que editavam os jornais Casseta Popular e Planeta Diário, o programa mesclava esquetes, comerciais e trailers falsos, e histórias seriais. Sempre debochando de tramas das novelas da Globo. Como esquecer Reginaldo, o galã mau-caráter de Fogo no Rabo – a dita “novela das 19h47 em ponto”?
Ou mesmo o quadro As Presidiárias, a série dentro da série, que narrava o cotidiano de um grupo de detentas, entre elas Cristiane F. (“vadia, prostituta, alcoolizada, fedida, mal paga e torcedora do Botafogo”) e Olga de Castro, última presa política do Brasil (“membro do PCCPC – Partido Comunista, Comunista Pra Caramba”). TV Pirata foi um dos últimos esculachos sobre o humor careta.
Nas madrugadas
Durante as madrugadas da TV Gazeta, a comédia que sustentava altos índices de audiência era Perdidos na noite, apresentado pelo jornalista Fausto Silva, como lembrou a reportagem deste mês da Revista de História, “Entre o riso e o desconforto”. A atração misturava variedades, com entrevistas de famosos e comédia pastelão.
Naquela época, Faustão era acompanhado em seu programa pelos imitadores Carlos Roberto “Escova” e Nelson “tatá” Alexandre e conseguia driblar as restrições que um horário nobre poderia lhe impor. O jornalista falava o que queria,usando um palavreado nada usual: “Na semana passada deixaram bundinha e cortaram pentelho, dizendo que pentelho é órgão sexual.
Pode?” – disse certa vez, quando os palavrões custaram alguns puxões de orelha da censura de costumes. Não tardou e emissoras maiores começaram a cortejá-lo. Em 1986, ele teve sua estreia nacional, pela Band, saindo de lá pouco depois, já com contrato assinado com a Globo.
Fosse escracho, fosse sátira inteligente, o desbunde do humor brasileiro nos anos 80 representou uma verdadeira ruptura com algumas das caretices que ainda imperavam no país. Testando barreiras, uma impressionante safra de humoristas brotou daquela era cheia de graça.
Porém, já na década de 1990, a mesma liberdade que assegurou a esses comediantes o direito de debocharem, assegurou às minorias étnicas e diversos grupos sociais o direito de processarem por difamação e ofensa – na crescente conquista da igualdade dos direitos humanos no Brasil e no mundo.
A piada, para ser engraçada, precisa cruzar e respeitar, ao mesmo tempo, os limites do politicamente correto. Uma tarefa nada fácil que oscila entre o riso e a lágrima.
Fonte: Revista de Historias