No ano 2000 eu estava atirando pedras nas ruas, contra a possibilidade de um novo estado de sítio, de o Estado limitar os direitos individuais novamente”, relatou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados argentina, Remo Carlotto. O parlamentar se referia à convulsão econômica e política pela qual passou a Argentina na virada do século. Apenas três anos depois, tudo havia mudado.

A ascensão de Nestor Kirchner ao poder pôs fim aos retrocessos nos Direitos Humanos e iniciou o período de punição aos responsáveis por crimes de lesa-humanidade cometidos pela ditadura militar, entre 1976 e 1983.

“Nestor tinha comprometimento com a geração que foi vítima da ditadura e disse: ‘Vamos romper com o ciclo de impunidade no país”, afirmou Carlotto, que faz parte da Frente para a Vitória, frente que sustenta Cristina Kirchner.

O depoimento do deputado foi parte do painel “A obrigação de adequar a legislação interna às normas da Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, atividade do 5º Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça – Cumprir com a Verdade, nesta sexta-feira (30), primeiro dia do encontro que ocorre na Assembleia Legislativa gaúcha.

Carlotto relatou a importância dos acordos internacionais ratificados pela Argentina na reforma constitucional de 1994. Àquela altura, vigoravam no país duas leis que impediam o julgamento dos crimes da ditadura.

A Lei de Ponto Final, que impedia novas investigações sobre os feitos do governo autoritário, e a Lei de Obediência Devida, que definia que só os altos comandos militares poderiam ser julgados, porque os demais estavam apenas obedecendo ordens.

Entre 1989 e 1990, o então presidente Carlos Menem indulta os poucos militares de alto escalão que haviam sido condenados, tornando plena a impunidade.

“A Constituição de 1994 foi a Constituição neoliberal de Menem, mas a inteligência de alguns legisladores fez com que se pudesse ter outras interpretações sobre as leis. Para nós foi estratégico”, contou Carlotto. Além de ratificar tratados internacionais de Direitos Humanos, a Constituição agregou a figura penal da desaparição forçada.

Antes, pela falta de um corpo que comprovasse a morte, a única opção para os familiares de vítimas era aceitar a presunção de falecimento, o que eles se negavam a fazer. “As famílias se negavam a aceitar que seu familiar estava morto, sem que o Estado admitisse a culpa e revelasse o que aconteceu com ele”.

A figura penal da desaparição forçada e os tratados internacionais que falavam da imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade seriam essenciais para que a Argentina começasse inúmeros julgamentos, um processo que teve início logo após Nestor Kirchner ter assumido o poder, em 2003.

Naquele ano, o Parlamento pôs fim às leis de Obediência Devida e Ponto Final. Nos anos que se seguiram, o Judiciário considerou constitucional a mudança e também começou a rever os indultos de Menem.

Remo Carlotto relatou que a Argentina é um dos países que luta no Direito Internacional para incluir em tratados internacionais a desaparição forçada. “Há um esforço de Argentina e França para incluir a figura da desaparição forçada pelo Estado nos tratados internacionais. Desaparições iniciaram nas ditaduras, mas são práticas que ainda ocorrem pelas polícias. Incluí-la nos tratados é uma ferramenta para o passado e para o futuro”, disse.

Participação da classe empresarial está em xeque na Argentina

Apesar dos avanços, Carlotto afirma que ainda há muito por fazer na Argentina até que se punam todos os responsáveis. Ele lamenta que muitas vítimas ou familiares tenham morrido e morram antes de ser feita Justiça, bem como algozes faleçam sem serem punidos. “Vemos o copo meio cheio e meio vazio”.

Uma das ações que o Governo estuda é a reparação a quem teve que ir para o exílio. No campo da Justiça, já começaram os primeiros julgamentos de dirigentes empresariais que participaram da repressão. É o caso de dois dirigentes da cimenteira Loma Negra, que foi propriedade de Amália Fortabat, uma das mulheres mais ricas do mundo.

Há cerca de 15 dias, dois executivos da empresa na época da ditadura foram condenados a 15 anos de prisão cada, por terem induzido repressores do Estado a sequestrar e matar um advogado dos trabalhadores da empresa, em 1977. A sentença foi considerada histórica, por ser a primeira a falar em ditadura cívico-militar.

Há outras empresas suspeitas de participar da repressão na Argentina. É o caso do Engenho Ledesma, da cidade de Ledesma, na Província de Jujuy.

O grupo controlava a geração de energia da cidade e é acusado de colaborar com apagões que as autoridades utilizavam para promover sequestros na calada da noite. Há também suspeitas de que dependências da Ford no país foram utilizadas como centro de tortura.

Outro passo que a Argentina busca é que os países-membros da UNASUL se comprometam não só a manterem governos democráticos, como a colaborar para que se desvendem toda a formatação da Operação Condor.

Neste sentido, Carlotto manifestou seu apoio à Comissão da Verdade brasileira e a importância dela. “A burocracia deixa rastros em documentos. Queremos colaborar com a Comissão da Verdade”.

Movimentos de Direitos Humanos não tiveram ajuda dos políticos no Chile
Hugo Gutierrez é deputado pelo Partido Comunista do Chile desde 2010. Antes disto, não gostava da ideia de fazer parte do sistema político, porque o país ainda não fazia Justiça aos crimes cometidos pela ditadura militar.

“Aonde vai esta democracia se não se faz Justiça a quem lutou por ela? Hoje, não temos o melhor Governo, mas temos como construir um Governo, pois temos Verdade e Justiça”, disse.
Ainda assim, o desencanto de Gutierrez com a atuação do Executivo e do Legislativo na questão da ditadura militar é enorme. Advogado, ele trabalhou em várias causas de crimes de Estado.

Ele afirmou que quem fez a Justiça foram os movimentos de Direitos Humanos e o Judiciário, sem ajuda de deputados e governantes. “A Justiça no Chile não se deu por forças políticas. O Legislativo e Executivo não fizeram nada. Tudo se deu no Judiciário”.

Nem mesmo agora, que já há processos contra cerca de 1,2 mil militares, a classe política se mexeu para reparar algumas distorções. Como, por exemplo, o fato de que já há uma jurisprudência na Justiça chilena que considera nula a Lei de Anistia e, mesmo assim, nem Executivo nem Legislativo se mexeram para adaptar a legislação à nova realidade.

A legislação que tem o Chile é a de Pinochet. As principais leis foram feitas por Pinochet. A Lei de Anistia continua existindo. Quatro governos da Concertación não tentaram revogar a Lei de Anistia, não enviaram nada ao Parlamento neste sentido. Pinochet fez um decreto-lei para se dar auto-perdão e ele está vigente”, relatou Gutierrez.

Ele relatou também que os chilenos foram refratários a acionar as cortes internacionais. Há um único caso chileno na Corte Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH). A decisão da CIDH foi ordenar que os chilenos revoguem a Lei de Anistia, o que, como já dito, não foi feito.

Gutierrez contou que o que furou o bloqueio da Lei de Anistia foi a persistência dos familiares de vítimas e movimentos de Direitos Humanos. Os juízes apontavam a existência da Lei de Anistia, mas os movimentos tentavam de novo, até o quadro começar a mudar, com um marco e tanto, vindo da Europa: a prisão de Pinochet em Londres, em 1998, a pedido do juiz espanhol Baltazar Garzón.

“A mudança no Chile se dá com o julgamento de Pinochet”, disse o deputado.
Um fato que ajudou os movimentos de Direitos Humanos foi que nunca deixaram de acionar a Justiça, mesmo nos tempos mais duros de ditadura.

“Movimentos de Direitos Humanos no Chile sempre judicializaram os crimes, mesmo nos piores tempos da ditadura. Ficaram informações registradas, como a hora em que aconteceu, testemunhos. Um carro que foi visto no local, por exemplo”, contou Gutierrez. Estas atitudes facilitaram os julgamentos que viriam depois.

Hoje, a disposição do Judiciário é tão grande em julgar os crimes que há uma determinação para que haja processos tramitando para cada uma das mais de 3 mil vítimas da ditadura militar registradas pela Comissão da Verdade, que ocorreu em 1990.

“Todas as vítimas que constam no informe da Comissão da Verdade têm um processo judicial. Nunca houvera uma investigação sobre a morte de Salvador Allende. Agora há. Em qualquer lugar do mundo se seu vizinho é assassinado vai se abrir uma investigação. No Chile não era assim”.

Fonte: Sul21