Como a mídia ajudou a ditadura na guerra das Malvinas
Independente da justa reivindicação, legitimada por títulos e direitos inalienáveis com respeito à soberania argentina das ilhas Malvinas, hoje, depois de 30 anos do desembarque nas ilhas, há um fato impossível de negar: como a ditadura inventou uma operação bélica para lavar a cara do processo que a Argentina vivia desde 1976 e como os meios de comunicação da época, unânimes e submissos, por medo ou censura, contribuíram na construção deste relato.
Se a ditadura tinha uma forma de se perpetuar era essa: atiçar o sentimento nacional sobre a soberania das ilhas. E fez isso porque estava com problemas. Em 1982, a inflação era de 90% anual, havia recessão, os salários estavam arrochados e a pobreza crescia.
Por outro lado, começavam a ser desvelados a repressão política e os crimes de lesa humanidade que a ditadura tentava ocultar sob seu midiático slogan: “nós, argentinos, somos direitos e humanos”.
O primeiro sintoma de mal estar geral contra a ditadura foi no dia 30 de março de 1982, quando uma mobilização massiva chegou à Praça de Maio convocada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT). Ainda que a repressão policial tenha sido brutal nessa manifestação, os canais de televisão públicos – em mãos dos três ramos das forças armadas – não transmitiram imagens em seus noticiários noturnos.
Houve sim imagens quatro dias depois, quando o ditador Leopoldo Galtieri saudou de um balcão da Casa Rosada milhares de pessoas que o aclamavam após anunciar o desembarque das tropas argentinas nas Malvinas. “Estamos dispostos a aniquilar quem se atreva a tocar meio metro quadrado de território argentino”, rugiu o militar.
As rádios e os canais de televisão fizeram eco ao sentimento popular. Todo o país parava para seguir os comunicados oficiais ou ver as cenas de guerra pelo que seria o porta-voz da guerra: a televisão. Ela era a encarregada de emitir os comunicados que dia-a-dia a junta militar transmitia à população. E foi nela também onde a censura de imprensa ficou mais exposta e à disposição da memória social, anunciado, inclusive, oficialmente:
“Todos os boletins e notícias do exterior, seja qual for sua procedência e meio utilizado e toda informação relacionada com aspectos que dizem respeito ao desenvolvimento das operações militares e de segurança nacional, ficam sujeitos ao controle do Estado Maior Conjunto, prévio a sua difusão pelos meios informativos, sejam estes orais, escritos ou televisivos”, dispôs a junta militar (Boletim Oficial, 30 de abril de 1982).
Os canais de televisão da capital tinham como única fonte de informação o Estado Maior Conjunto e daí vinham as noticias oficiais. Os canais do interior apenas podiam “reproduzir o informativo do canal de Buenos Aires com o qual tinha convênio e encher espaço com noticias de rádio ou de teletipo”
A cadeia oficial ATC – hoje Televisão Pública – era a origem de transmissão de todos os comunicados da junta militar. Emblemática era a figura do jornalista José Gómez Fuentes que em seu programa “60 minutos” emitia a frase: “Vamos ganhando”. Inclusive foi nesse programa que se informou que havia sido avariado o porta-aviões britânico Invencible – notícia que posteriormente se confirmou que era falsa. “Argentinos a vencer”, era o slogan mais repetido nos intervalos comerciais.
Andrew Graham-Yooll, jornalista argentino-britânico e ex-diretor do jornal Buenos Aires Herald, conta que nos dias de abril de 1982 a imprensa argentina era “estridente, histérica e gritona”. Suas manchetes exultantes só demonstravam que não sabiam realmente o que estava sucedendo.
“Com os breves comunicados que a Junta emitia se construía o discurso. Naquele momento a Argentina era uma sociedade que havia passado do silencio à estridência, onde o rumor era a informação. Toda a mídia estava agindo da mesma forma. Por isso, viver na Argentina hoje é viver em liberdade de imprensa, nunca antes havia vivido em um estado de liberdade de imprensa. Sem estridências nem evasões”.
A imprensa ocultou também – por ação ou omissão – as graves violações aos direitos humanos cometidas pelos oficiais contra os soldados. A jornalista Natasha Niebieskikwiat, autora do livro “Lágrimas de hielo” (Lágrimas de gelo), sustenta que durante a guerra das Malvinas, se produziram torturas, abusos e mortes de soldados por fome, e que se estudam processos para 70 oficiais do exército argentino, por este motivo.
“Os meios de comunicação prestaram muito pouca atenção àqueles jovens que chegaram destroçados, ocultos em caminhões de gado. Muitos oficiais e suboficiais impuseram falsos códigos de justiça militar para justificar estes crimes.
Alguns jovens soldados foram estaqueados, golpeados brutalmente e enterrados vivos e o pior, muitas vezes os oficiais não repartiam a comida. Em geral, a imprensa calou e houve pequenos espaços como a revista 7 dias que mostrou os soldados famintos refletindo o estado em que chegavam ao continente”.
“Hoje é um dia glorioso para a pátria” ou “As Malvinas em mãos argentinas”, foram algumas das manchetes da imprensa daqueles dias de guerra, dias em que o ex-capitão de Fragata Alfredo Astiz – condenado à prisão perpétua por crimes de lesa humanidade – içava a bandeira argentina nas ilhas em disputa.
Os meios de comunicação cumpriram um papel decisivo na construção do relato da guerra, exacerbando e construindo certos tópicos dominantes durante os dias do conflito com maior eficácia do que a ditadura era capaz de imaginar.
A propaganda triunfalista, a construção da imagem de um povo unido e unanimemente convencido da causa no dia 3 de abril, a difusão de informação inexata e a construção de um inimigo, são alguns dos tópicos mais recorrentes na imprensa daqueles dias.
Ainda que existissem vozes dissidentes, como a revista Humor, os meios hegemônicos aderiram às exigências da ditadura e cumpriram sua missão com um zelo muito pronunciado. Como em outros momentos da ditadura, foram mais longe inclusive do que os próprios militares demandavam.
Entretanto, apesar das tentativas dos militares e da imprensa de ocultar a derrota e de construir outra realidade, os ingleses triunfaram e as tropas argentinas tiveram que render-se.
Na guerra morreram 649 soldados argentinos e 285 britânicos, mais de 350 ex-combatentes argentinos se suicidaram desde o início da guerra até hoje. A crise política se aprofundou, a ditadura caiu e se criaram as condições para a volta da democracia.
Fonte: Carta Maior