Ao atestar a validade da Lei da Anistia em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que uma página da história brasileira tinha ficado para trás.

Torturas, assassinatos e desparecimentos praticados no perído da ditadura ficariam esquecidos. Formadores de opinião de relevo somaram-se ao coro.

Vozes dissonantes, no entanto, começam a surgir. No começo do mês, o Ministério Público Federal (MPF) conseguiu contornar a lei da Anistia ao denunciar o major Sebastião Curió, responsável pelo sumiço de militantes da guerrilha do Araguaia – ainda que a denúncia tenha sido rejeitada pelo Tribunal de Justiça.

Na segunda-feira 26, foi a vez de um grupo de jovens expor publicamente onde hoje vivem algumas das principais figuras da repressão. Em cinco estados, realizaram manifestações na frente da atual casa ou empresa de antigos torturadores.

Em Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Pará e Rio Grande do Sul, os manifestantes pediram a “verdade, nada além da verdade”. Na prática, os jovens tornaram público o passado não tão nobre de ex-militares e personagens do período.

O movimento teve inspiração em algo que já ocorre em vizinhos latino-americanos. Na Argentina, esse tipo de ação – apontar para a comunidade que convive com criminosos sua condição – é chamada de escrache. No Brasil, o protesto foi apelidado de “esculacho”.

A pressão funcionou. Em São Paulo, a empresa de segurança Dacala, de David dos Santos Araujo, palco de protestos, tirou do ar o nome de seus clientes, que até então eram colocados no site da empresa.

Isso porque os manifestantes ressaltaram em seus panfletos que os clientes listados no site, como o grupo Anhanguera – um dos maiores de ensino no Brasil – estavam contratando a empresa de um ex-torturador. 

Araujo foi delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e é acusado pelo MPF de participar da tortura e do assassinato de Joaquim Alencar dos Seixas, em 1971.

“Isso mostra que Araujo precisa se esconder”, afirma Lira Alli, que integra o movimento Levante Popular da Juventude, responsável pelas manifestações.

Em época de revoluções organizadas por redes sociais, a manifestação da segunda-feira foi feita à moda antiga. Com medo de interceptações, os jovens baniram o uso de telefone e internet. “A organização foi bem sigilosa, porque a gente sabe com o tipo de gente que está lidando”, explica Lira. Segundo ela, Araujo é investigado pelo sumiço de 200 armas de fogo.

“Estamos mexendo em um vespeiro e os militares apesar de não estarem na ativa não curtem o que a gente tá fazendo”.

Por conta disso, a organização, segundo Lira, foi muito mais trabalhosa. Ao jornal o Estado de S. Paulo, David Araújo negou o desvio de armas.

Além disso, afirmou ter pego o nome do advogado que estava com os manifestantes. “Nós, da polícia, já sabemos mais ou menos quem contratou o carro, mas ainda não posso dizer”, comenta.

O processo começou em fevereiro, quando o grupo teve a primeira ideia de fazer algo do gênero. Com o manifesto de clube dos militares contra a Comissão da Verdade, lançado no mês passado, a mobilização se intensificou.

Além dos protestos, o grupo espalhou cartazes por várias cidades, como o Rio de Janeiro. O processo de pesquisa começou a partir de nomes de militares da época na publicação Brasil Nunca Mais. A partir daí, os jovens conversaram com militantes daquela época, que apontaram quem fazia o que.

Por fim, procuraram identificar a ocupação dessas figuras em 2012. “Priorizamos torturadores ou delatores, que tiveram participação ativa e hoje vivem como nada tivesse acontecido”, diz Edson Rocha, analista de informática que participa do Levante Popular.

Segundo Lira, é mais uma entre as várias iniciativas da sociedade civil em apoio a Comissão da Verdade. Entre elas, Comitê Paulista pela Memória Verdade e Justiça e o Cordão da Mentira, uma espécie de bloco em tom carnavalesco contra a ocultação dos crimes da ditadura que sairá no dia 1º de abril, nos 48 anos do golpe.

Por outro lado, os militares devem lançar, no dia 29 de março, um manifesto com 500 assinaturas se posicionando contra a Comissão. Na data, preparam também uma festa para comemorar o golpe.

O Levante Popular da Juventude surgiu em 2006 no Rio Grande do Sul, com jovens de universidades, das periferias das cidades e do campo e se espalhou pelo país.

“A gente acredita que a sociedade em especial a juventude precisa se mobilizar acerca da Comissão da Verdade”, diz Lira.“É uma parte da nossa memória que foi excluída”.

O lema, segundo Rocha, é “os torturadores que nos aguardem”. A ideia não é fazer justiça com as próprias mãos, mas alertar a sociedade civil sobre a importância da Comissão da Verdade. “A gente quer ter o direito a nossa história”, afirma.

Não há datas marcadas, mas outras pessoas estão na “lista” de futuros esculachos: “Tem professor universitário, jornalista, engenheiro, médico e advogado que vive normalmente, enquanto familiares das vítimas sofrem até hoje com isso”, explica Rocha.

Fonte: Carta Maior