Significado:

Foi o dia do golpe de Estado mais cruel que a sociedade argentina viveu. Constituiu-se numa ruptura da democracia institucional. Sua primeira consequência é a dissociação entre uma realidade objetiva e os traumas e síndromes na consciência histórica de nosso povo.

A realidade objetiva consolidou um país com uma economia cujo eixo principal é a submissão dos trabalhadores a uma exploração selvagem, sem direitos individuais nem possibilidades de subsistência do direito trabalhista ou da representação política de suas reivindicações.

Esta economia submeteu as normas econômicas ao liberalismo do mercado e à vigência da maior concentração do capital em grandes corporações, que saquearam as empresas nacionais e constituíram uma burguesia “nacional” espoliadora da pequena e média empresa com a apropriação da riqueza por meio de práticas desleais dos bens e riquezas daqueles que tiveram responsabilidade social empresarial.

O outro instrumento usado foi o terrorismo de Estado, que submeteu a maioria da população através da tortura, do desaparecimento e da morte de pessoas, da prisão, do exílio e todas as humilhações próprias das piores práticas dos regimes mais obscuros da história da humanidade, comparáveis com o holocausto, a inquisição ou a eliminação dos povos originários na época colonial.

A vigência destes três objetivos do 24 de março: ruptura da democracia institucional, modelo econômico liberal e terrorismo de Estado, caracterizam a interpretação do golpe. No entanto, falta incorporar em nossa memória histórica dois temas transcendentes nas cicatrizes não suturadas em nossa consciência social:

1) O silêncio assumido do indivíduo e da massa.

2) O desaparecimento da maioria dos expoentes do protesto social, quadros militantes, intelectuais orgânicos, representantes sociais e políticos com pensamento crítico.

Sobre o tema 1:

O tema do silêncio se identifica com a impossibilidade de que o mal estar da cultura se manifeste. As expressões como o teatro, a literatura, a música e as canções, e até as conversas grupais nos diversos âmbitos da sociedade estavam marcadas e censuradas. A difusão de uma cultura da banalidade e o obscurecimento dos eventos reais se constituíram em uma constante, que levou a um silêncio introjetado no indivíduo.

Ainda hoje existe uma autolimitação em muitos comportamentos, apesar dos anos de democracia que vivemos desde o término da ditadura militar. A memória ainda tem esquecimentos conscientes em muitos casos, a espera de uma explicação sobre a verdade e a justiça dos fatos. O “disso não se fala” ou “algo terá feito para passar o que passou” formaram parte das justificações do “não te metas” ou do esquecimento dos fatos.

Muitos sobreviventes de situações traumáticas ainda mantêm o silêncio ou buscam participar de atividades vitais que lhes permitam atenuar o mal sofrido, com a resiliência de um cotidiano não marcado pelo catastrofismo.

Sobre o tema 2:

Quando se faz um trabalho de recordação histórica, a primeira coisa que aparece em nosso pensamento é a memória dos companheiros no momento vital de sua existência conosco. A lembrança e a evocação têm um conteúdo de verdade. O que importa é que a transmissão desse pensamento para o momento atual permita valorizar a proposta que eles formularam de uma pátria mais igualitária, com equidade e justiça para o povo.

A felicidade que transcendia na busca desses objetivos para o conjunto da população foi abruptamente eliminada. Sua substituição efetuada pelos violadores de corpos e consciências deixou um rastro de morte, tortura e destruição de formas e de critérios políticos e organizativos. As sequelas deste largo processo que durou de 1975 até o final de 1983 ainda tem vigência.

Quais são os traços mais persistentes que podemos reconhecer e diferenciar.

a) Uma submissão imposta sobre a consciência coletiva por meio da impossibilidade da verificação do conjunto dos fatos ocorridos. Os arquivos existentes são recomposições parciais, fragmentos do relato histórico, que impedem a resiliência da memória.

b) A sequência destrutiva da identidade do sujeito, como da dignidade de uma morte natural, com a realidade da falta e a dor, é impossibilitada com a perversidade das desaparições forçadas. O não-reconhecimento da morte provoca uma carência afetiva impossível de saldar.

c) A necessidade de superar a falta dos corpos dos companheiros leva a muitos a se resignarem, em relação à busca da verdade e à demanda de justiça, limitando ao papel do Estado e dos familiares à realização de julgamentos e processos judiciais. A sequela da alienação frente à tergiversação do fato criminal obstaculariza a construção da memória, deixando a percepção de que o desaparecido é culpado como o criminoso, uma espécie de espelho dissociado entre violência objetiva e a violação subjetiva.

d) O não-reconhecimento e a perversa aceitação de uma parte de nossa sociedade de que os demônios se enfrentavam em uma transcendência só reconciliável por meio de um perdão humano e um castigo divino abrem espaço para a negação do sujeito histórico em sua necessidade de cristalizar um avanço de consciência social.

Como sair deste processo alienante para o conjunto e de maneira mais significativa para os jovens que não têm elementos fáticos de recordação dos fatos daquele período? Como poder reconstruir uma intersubjetividade que reduza estas sequelas que citamos, do inconsciente coletivo, e modifique a dissociação entre a vivência cotidiana e a busca de memória e verdade?

Só mediante uma prática militante nos direitos humanos e sociais podemos avançar na abordagem dessas rugas da memória coletiva. Podemos construir um caminho de emancipação da vontade, para refazer o vínculo interrompido com os companheiros desaparecidos em seu momento vital de luta pela liberdade e a democracia social. Com uma memória verdadeira e com uma justiça real podemos obter uma recomposição do tecido social que consolide o nunca mais e que produza um novo sujeito capaz de ter um pensamento crítico, ação solidária e vontade de protagonismo.

É importante destacar que a partir da instalação da democracia se desenvolveu todo um período de avanços reconstitutivos do coletivo social. O julgamento dos culpados mais destacados, assim como um trabalho constante para conhecimento dos acontecimentos históricos é uma conquista alcançada. Os distintos momentos de nosso processo institucional desde 1983 até hoje, com suas idas e vindas, fazem parte de uma larga transição para resolver a quebra e a ruptura que significou em nossa forma de vida o 24 de março de 1976.

Hoje, cada um dos pontos tratados está em processo de resolução.

No institucional, no econômico, nos direitos individuais, na memória coletiva e na militância da juventude.

Uma solidariedade coletiva reage à flor da pele frente à sugestão de uma limitação dos direitos individuais que lembre a ditadura.

A vontade e a esperança de uma construção social que supere os traumas da história recente da Argentina fazem parte de nosso protagonismo atual e futuro.

Aos leitores, muito obrigado pela presença nesta comemoração.

Beijos e abraços para todos.

Mario E. Burkún.
Buenos Aires, 24 de março de 2012

Mario Burkún é Doutor em Ciências Econômicas da Universidade Pierre Mendes France, de Grenoble, França. Professor de Ciências Econômicas na Universidade de Buenos Aires e na Universidade de La Matanza.
 

Fonte: Carta Maior