Nasce um clássico

“A 28 de julho de 1924, os revoltosos evacuaram a cidade de São Paulo. O governo Bernardes delirou com a ‘vitória’. Os pequeno-burgueses urbanos ficaram muito desanimados (…). No fundo da sala de jantar, sentado no primeiro degrau de uma escada de ferro, ouvi a narrativa da derrota e, serenamente, comecei a escrever Agrarismo e Industrialismo.

Terminei a parte fundamental menos de um mês depois, a 22 de agosto de 1924. Tirei imediatamente cópias à máquina e espalhei-as entre os amigos”. Assim Octávio Brandão descreveu o início da produção da obra que teria um impacto decisivo na vida do Partido Comunista do Brasil naqueles primeiros tempos.

No entanto, passaria mais de um ano e meio para que o livro pudesse, finalmente, vir a público. Período que Brandão aproveitou para adicionar-lhe mais duas partes: “Síntese”, datada de março de 1925, e “A revolta permanente”, de março de 1926.

Quando ainda estava sendo composto, a polícia política do governo Bernardes invadiu a tipografia. Ela pretendia dar o flagrante e apreender a edição, que supunha estar pronta. Enganara-se, pois o trabalho não havia começado.

Rapidamente, sem que ela percebesse, os operários “jogaram toda composição nas caldeiras das linotipos” destruindo-a. Não conseguindo as provas de que necessitavam, os policiais tiveram de se retirar. Na mesma noite, reiniciou-se o trabalho de impressão daquela que entraria para a história como a primeira tentativa de interpretação marxista-leninista do Brasil.

Em abril, ainda com a capital da República sob Estado de Sítio, Agrarismo e Industrialismo começou a circular. Ele trazia como autor um tal de Fritz Mayer e a informação de que tinha sido publicado em Buenos Aires. Os comunistas espalharam ainda que Mayer era um oficial alemão que tinha participado do levante tenentista de São Paulo e fugira para a Argentina. Tudo isso foi feito com o objetivo de despistar a polícia brasileira. A artimanha parece ter dado resultados.

Naquele mesmo ano, mais de uma dezena de exemplares foi levada a Moscou e um acabou chegando às mãos do líder dos tenentes revolucionários Luiz Carlos Prestes. Mas os mais entusiasmados com aquela obra foram os militantes ligados ao PC do Brasil. A grande imprensa, como era de se esperar, ignorou solenemente sua aparição.

Uma obra pioneira e original

Os objetivos centrais de Agrarismo e Industrialismo eram expor a dinâmica da revolução democrática em marcha no país e uma linha política adequada para o jovem movimento comunista. Não havia, até então, nenhuma formulação tática ou estratégica mais consistente que norteasse a ação da esquerda marxista brasileira. Por isso as teses ali expostas tiveram um forte impacto nas formulações do Partido Comunista e influenciaram as resoluções dos seus 2º e 3º Congressos, realizados em 1925 e 1928.

Octávio Brandão procurou apresentar as peculiaridades da revolução brasileira e o papel das diversas classes naquele processo. Ele foi um dos primeiros a compreender os danos causados pelo domínio imperialista e a identificar a competição existente entre os interesses do imperialismo inglês, decadente, e do norte-americano, ascendente.

Por fim, teve o mérito de destacar a importância da luta que se travava entre a oligarquia latifundiária (os agraristas) e os setores vinculados à indústria (os industrialistas).

Antes mesmo que o 6º Congresso da Internacional Comunista (1928) viesse a estabelecer o cânone da predominância de relações feudais (ou semifeudais) na totalidade dos países da América Latina e da Ásia, Brandão já afirmava o caráter feudal da nossa formação econômica, política e social. Escreveu ele:

“Dominado por esse agrarismo econômico bem centralizado, o Brasil tinha de ser dominado pelo agrarismo político (…). O agrarismo político é a dominação política dos grandes proprietários (…). O fazendeiro de café, no sul, como o senhor de engenho, no Norte, é o senhor. O senhor feudal implica a existência do servo.

O servo é o colono sulista das fazendas de café, é o trabalhador de enxada dos engenhos nortistas. A organização social proveniente daí é o feudalismo na cumeeira e a servidão no alicerce”.

A chamada “tese feudal” teria uma longa vida no interior do movimento comunista brasileiro, até começar a ser questionada mais fortemente por marxistas como Caio Prado Jr. nas décadas de 1950 e 1960.

Uma estratégia leninista para o Brasil

Para enfrentar o agrarismo dominante, Brandão propôs a constituição de uma frente única policlassista: “O fazendeiro de café só será derrubado pela frente única momentânea do proletariado com a pequena-burguesia e a grande burguesia industrial”. A estratégia da revolução no Brasil teria como paradigma a Revolução Francesa de 1789 e Russa de fevereiro de 1917. Buscou reproduzir, a seu modo, a tática leninista indicada por Lênin em 1905.

Continuou ele: “Apoiemos, como classe independente, a pequena-burguesia na sua luta contra o fazendeiro de café, pois, segundo Marx, é preciso sustentar os partidos pequeno-burgueses quando estes resistem à reação.

Empurremos a pequena-burguesia à frente da batalha (…). Procuremos arrastar as grandes massas operárias e camponesas em torno de palavras de ordem simples, concretas, práticas e imediatas. Não esqueçamos que o Brasil, como a Rússia, é um país agrário (…)

Empurremos a revolução da burguesia industrial – o 1789 brasileiro, o nosso 12 de março de 1917 – aos seus últimos limites, a fim, de, transposta a etapa da revolução burguesa, abrir-se a porta da revolução proletária, comunista”, escreveu ele.

Brandão tinha a convicção de que ocorreria uma terceira revolta tenentista e que esta seria uma consequência das duas anteriores, ocorridas em 1922 e 1924. Para ele, as contradições que geraram aquelas conflagrações armadas continuavam de pé e se agravando.

Tendo por base essa perspectiva, fez uma previsão genial sobre a crise revolucionária que se abriria alguns anos depois: “Temos, pois em perspectiva, sérias batalhas de classe, isto é uma situação revolucionária.

Se os revoltosos pequeno-burgueses souberem explorar a rivalidade imperialista anglo-americana e a luta entre os agrários e os industriais, se procurarem uma base de classe para a sua ação, se o proletariado entrar na batalha e se essas contradições coincidirem com a luta presidencial e as complicações financeiras, será possível o esmagamento dos agrários (…).

Dada esta situação objetiva, a vitória da pequena-burguesia aliada à grande burguesia industrial e, posteriormente, a vitória do proletariado, serão meras questões subjetivas. Dependerão da capacidade dos revoltosos pequeno-burgueses e dos revolucionários proletários”.

As resoluções do 2º Congresso do PC do Brasil (1925), baseadas no esboço inicial de Agrarismo e Industrialismo, apontavam a “luta entre o capitalismo agrário semifeudal e o capitalismo industrial moderno como sendo a contradição fundamental da sociedade brasileira após a República”.

Tendo em vista as particularidades da primeira etapa da revolução brasileira, os comunistas a definiram como revolução democrático-pequeno-burguesa. Baseavam tal formulação na destacada participação política das camadas médias urbanas, através do movimento tenentista, nos processos revolucionários que vinham ocorrendo nos estertores da República Oligárquica.

Era nítida a confusão entre o conteúdo social das tarefas a serem realizadas pela revolução – burguesa ou proletária – e o das forças sociais que teriam um papel mais destacado no processo revolucionário em curso: a pequena-burguesia.

No entanto, devemos destacar que o próprio termo utilizado para definir a revolução brasileira (democrático-pequeno-burguesa) visava a distingui-la da revolução ocorrida na Rússia em 1917; ou seja, procurava captar as suas particularidades e sua originalidade.

Afinal, no Brasil, as classes médias urbanas estavam tendo uma importância política e social bem maior que a dos camponeses. A situação brasileira era bastante diferente da que existira na Rússia e na China revolucionárias.

Dentro desse esquema teórico-político – nascido com Agrarismo e Industrialismo – é que Astrojildo Pereira, secretário-geral do PCB, elaborou o relatório sobre a situação brasileira – que foi enviado ao Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista e publicado na revista Correspondência Internacional em 1928.

Vejamos o que afirmavam os comunistas brasileiros: “a situação econômica e política do país, objetivamente examinada, faz prever uma conjuntura francamente revolucionária, que resultará da coincidência dos seguintes fatores: 1º) Crise econômica resultante de uma catástrofe na política cafeeira (…); 2º) crise política vinculada ao problema da sucessão presidencial no Brasil (1930); 3º) possibilidade de uma repetição de um novo 5 de julho”.

Diante desta terceira revolta que se aproximava e “que tomará proporções muito maiores que as de 24-26”, afirmavam, “não era de se supor que as massas trabalhadoras se mantivessem indiferentes ou neutras (…). Nessas condições, o dever do partido comunista consistirá em colocar-se à frente dela, procurando conquistar não somente a direção da fração proletária, mas a hegemonia de todo o movimento”.

Para derrotar as possíveis tendências direitistas existentes no movimento tenentista, eles apresentavam sua proposta tática:

“No nosso entender, a intervenção decidida do Partido Comunista no movimento, em estreita aliança como os revolucionários pequeno-burgueses (…) na luta comum contra o inimigo, pelo menos dificultará e poderá vencer com maior facilidade essa tendência fascista”.

Esses parágrafos demonstram a sagacidade política daqueles jovens dirigentes comunistas. Eles previram, com anos de antecedência, a crise revolucionária de 1930 – e o fim da República Oligárquica – e apresentaram uma estratégia bastante ajustada àquela situação, especialmente tendo em vista o domínio ainda limitado que tinham do instrumental teórico fornecido pelo marxismo-leninismo.

A guinada esquerdista e a crise no PCB

Em 1929 o movimento comunista pendeu perigosamente para a esquerda. Ao lado do esquerdismo começavam a predominar práticas autoritárias e sectárias – a política leninista de proletarização se transformava em “obreirismo”. Nesse ambiente, marcado pela intolerância, é que foram analisadas a tática e a estratégia dos comunistas brasileiros.

As ideias de Octávio Brandão e Astrojildo Pereira sobre a terceira revolta e a política de aliança centrada na pequena-burguesia urbana – traduzidas nas resoluções dos 2º e 3º Congressos do PCB – foram duramente criticadas pela Internacional Comunista (IC).

Na Conferência do Bureau Sul-Americano da IC, realizada entre abril e maio de 1930, eles foram acusados de desvios de direita e de serem “pequeno-burgueses”. A sua tese sobre o caráter “democrático-pequeno-burguês” da revolução brasileira foi alcunhada de menchevique, antimarxista e antileninista por, supostamente, negar a hegemonia do proletariado na revolução democrática e superestimar o papel da pequena-burguesia urbana (os tenentes) em detrimento das massas camponesas.

Logo após a Conferência Sul-Americana, Brandão e vários outros camaradas foram retirados do Comitê Central. Em novembro de 1930 foi a vez de Astrojildo Pereira ser afastado do cargo de secretário-geral, que exercia desde 1922, e do Comitê Central.

Assim, em poucos meses, quase toda a antiga direção, forjada no curso das lutas travadas nos anos 1920, foi afastada de seus postos e substituída por novos militantes que, em sua maioria, eram operários com pouquíssima experiência partidária.

Uma das resoluções do pleno que afastou Brandão afirmava: “O Partido Comunista do Brasil deverá acrescentar sua atividade em sua luta política, estabelecendo sua própria fisionomia, tendendo a adquirir a todo preço a hegemonia do movimento revolucionário que se desenvolve no Brasil, cujas principais forças motrizes serão o proletariado, a massa de assalariados agrícolas e os camponeses pobres”.

Esta era uma aplicação mecânica das resoluções da Internacional Comunista. Elas não tinham em conta o processo revolucionário real que já vinha se desenvolvendo no país e refletiam um profundo desconhecimento das forças sociais em presença, subestimando o papel das classes médias urbanas e superestimando o papel dos camponeses naquela conjuntura.

A partir de então o esquerdismo e o obreirismo, também, passaram a imperar no interior do partido. Abandonou-se a proposta de aliança preferencial com a pequena-burguesia urbana, através do movimento tenentista.

Os prestistas foram considerados os principais inimigos do proletariado revolucionário. No final de 1930 o Bloco Operário e Camponês – órgão de frente única criado pelos comunistas – foi fechado pela direção partidária.

Nesta mesma linha esquerdista, o vereador Octávio Brandão afirmou na tribuna da Câmara do Rio de Janeiro: “O que caracteriza a Aliança Liberal é a sua demagogia. Demagogia caracteristicamente fascista, empregada por Mussolini quando quis apoderar-se do poder, em 1922 (…) O fascismo declarado dos presidentes Washington Luis e Júlio Prestes a ninguém ilude. Mas o fascismo disfarçado da Aliança Liberal ilude muita gente”.

Aqui temos uma adaptação ao Brasil da nefasta teoria do “social-fascismo”, que vinha sendo fabricada no interior da Internacional Comunista, que afirmava serem a social-democracia e o liberalismo irmãos gêmeos do fascismo.

Em setembro de 1930, às vésperas da revolução, um documento do PC do Brasil dizia: “a Coluna Prestes era o inimigo pronunciado do movimento revolucionário, defendia os interesses dos capitalistas estrangeiros, sustentava os feudais e estava pronta a lutar contra todo verdadeiro movimento de massa”. A palavra de ordem dos comunistas passou a ser: “Criai o governo operário e camponês, baseado nos Sovietes!” e “Pela União das Repúblicas Soviéticas da América Latina!”.

As reflexões originais sobre a formação econômica e social brasileira foram abandonadas e substituídas por esquemas mais rígidos que não correspondiam a nossa realidade. Como resultado,  quando, em outubro de 1930, chegou a “terceira revolta”, prevista por Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, os comunistas estavam desarmados teórica e politicamente para dela participar com firmeza e independência.

Os sucessivos erros políticos levaram ao isolamento do Partido em relação às massas populares e às correntes progressistas. Ao lado da crise política, ocorreu uma séria crise de direção que desorganizou quase completamente o Partido. Nos quatro anos que se seguiriam à destituição de Astrojildo, o PCB teve seis secretários-gerais.

Da crítica à reabilitação

Tendo em vista os nítidos limites teóricos desse trabalho pioneiro, alguns intelectuais buscaram, consciente ou inconscientemente, desqualificar o livro. Em geral, esses críticos caíram num evidente anacronismo ao cobrarem do jovem dirigente comunista um nível de conhecimento do instrumental teórico marxista que ele – e ninguém no país – poderia ter naqueles anos.

É bom lembrar que o Manifesto do Partido Comunista (1848) de Marx e Engels – obra seminal do socialismo científico – foi publicado no Brasil apenas em 1924, traduzido do francês pelo próprio Brandão.

Na década de 1980, Michel Zaidan Filho escreveu uma série de trabalhos que, entre outras coisas, enalteciam as contribuições originais de Octávio Brandão e Astrojildo Pereira. Nos anos 1990 Agrarismo e Industrialismo foi analisado, sem preconceito, por autores marxistas como Marcos Del Roio, Paulo Cunha, Ângelo José da Silva e João Quartim de Moraes. Este último, em seu ensaio introdutório, escreveu:

“A justiça histórica é lenta como a dos tribunais, mas às vezes não falha (…). Agrarismo e Industrialismo, assim, foi encontrando o lugar que merecia no pensamento marxista brasileiro”. O seu relançamento contribuiu, ainda que modestamente, para o processo de revalorização da elaboração teórica e da prática política dos primeiros comunistas brasileiros.

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*Augusto Buonicore é historiador e secretário geral da Fundação Maurício Grabois.

Bibliografia

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