Nara nasceu no Espírito Santo em 19 de janeiro de 1942, mas com apenas um ano de idade mudou-se para o Rio de Janeiro. Era filha de uma família relativamente avançada para época. “Não havia em nossa casa os valores tradicionais da classe média nem normas de conduta. Não comemorávamos natal, nem aniversários, nem réveillon”, afirmou ela. Menina extremamente tímida e insegura quanto a sua beleza e possíveis talentos.

Aos 12 anos começou a aprender tocar violão com Patrício Teixeira. Cantor e instrumentista, companheiro de Pixinguinha, havia criado um novo método que, ironicamente, batizou “O Capadócio” –  nome ofensivo dado aos tocadores de violão no início do século 20. Patrício, como negro capadócio, havia sentido na carne o preconceito da sociedade carioca de sua época.

Amiga e namorada de Roberto Menescal e, depois, de Ronaldo Bôscoli, teve o seu apartamento em Copacabana transformado num dos principais pontos de encontro dos jovens músicos que criariam um novo estilo musical: a Bossa Nova. Lá se reuniam Carlos Lyra, João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal entre outros. Nara não era somente uma anfitriã amável – ou a musa daquele grupos talentoso – mas também era uma das cabeças pensantes daquele movimento cultural que surgia.

Em 1958 foram convidados para cantar no Clube Universitário Hebraico. Como a única figura de certa expressão era Silvia Telles, o funcionário colocou um cartaz “Silvia Telles e um grupo bossa nova”. Sem planejar, o movimento já tinha conseguido um nome. O poeta Manoel Bandeira se referiu a ele como “uma música intimista mais apropriada para apartamentos”. Era isso e, talvez, um pouco mais.

Nara subiu ao palco pela primeira vez em 13 de dezembro de 1959. Em pânico, cantou quase de costa para o público as músicas “Se é tarde, me perdoa” e “Fim de Noite”. Nascia, assim, uma estrela ainda que um pouco gauche.

Nara se politiza

A primeira experiência de Nara com uma grande gravadora – a Columbia – não foi das mais felizes.  No teste cantou “Insensatez” de Vinícius e Tom. Acharam a música chata e longa demais. Sugeriram que cantasse boleros. Ela não gostou da proposta, pegou seu violão e foi embora.

Estranhamente, a “musa da bossa nova” não estrearia, em disco, cantando o estilo que havia contribuído para criar. Naqueles anos o Brasil estava mudando e Nara também.

Separada de Bôscoli, começou um namoro com o cineasta Cacá Diegues. Através dele se aproximou do pessoal do Cinema Novo e dos intelectuais que organizavam o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Naquele ambiente efervescente ela foi se politizando e aderindo às idéias da esquerda e ao projeto cultural nacional-popular. Saíamos dos “anos JK” e entravamos no turbulento período do governo João Goulart.  A grande bandeira do momento eram as reformas de base.

Além de Cacá, Carlos Lyra também influenciou Nara. Ele, ao lado de Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré, propunham uma mudança de rumo na Bossa Nova. Uma das características desse grupo era a tentativa  de uma aproximação com os compositores de extração mais  popular, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e João do Valle. Buscava uma fusão entre a moderna música urbana – produzida pelas camadas médias – e a música de morro e do sertão.  

O movimento da Bossa Nova acabou rachando em duas partes: uma taxada de “alienada” e outra mais politizada. O conflito foi bastante acirrado. Nara entrou na briga ao lado dos “engajados” e contra a alienação bossanovista. Numa entrevista à revista “O Cruzeiro” afirmou: “A bossa nova, que se apresentava como um movimento renovador – e foi até determinado momento – tornou-se caduca e acadêmica”.

Um pouco antes do golpe militar ela ainda afirmaria: “os letristas da bossa nova escreveram letras sem o menor sentido. Então fui procurar os compositores que dizem o que querem e encontrei o samba tradicional, que contém a verdadeira essência da música popular brasileira”.

Foi dentro desse espírito que gravou o seu primeiro disco. Houve muita resistência quanto ao repertório sugerido pela garota. Dele constavam nomes como Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Ketti. Onde já se viu, mocinha de Copacabana cantando música de morro? Depois de muita luta, convenceu os produtores que aquele era o caminho certo. Além dos compositores de extração popular,  havia Carlos Lyra, Vinícius de Moraes, Gianfracesco Guarnieri, Baden Powell, Ruy Guerra. Muitos, corretametne, afirmam que esse disco iria cimentar o caminho daquilo que posteriormente seria chamado de MPB.

O disco se destacava pela forte presença da crítica social. Muitas das canções poderiam ser enquadradas na rubrica de “música de protesto”. Um estilo que vinha ganhando força em todo mundo, inclusive nos Estados Unidos. Destacava-se no LP as músicas “O morro (feio não é bonito)”, “Canção da terra”, “Berimbau”, “Maria Moita” e “Marcha da quarta-feira de cinzas”. Definitivamente, Nara era a nossa Joan Baez.

Em 1963 ela aderiu ao Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), uma versão artístico-intelectual do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Os seus membros pretendiam “participar da formação de uma frente única nacionalista e democrática com as demais forças populares arregimentadas na marcha por uma estruturação melhor da sociedade brasileira”.

O golpe militar de março de 1964 iria obstaculizar as mudanças que já se anunciavam nas ruas. A música lançada alguns meses antes “Marcha de quarta-feira de cinzas” se tornou uma profecia realizada e uma conclamação à luta pela liberdade: “Acabou nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações/ Saudades e cinzas foi o que restou / …/ E, no entanto, é preciso cantar/ Mais que nunca é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar a cidade”. Foi o primeiro hino da resistência democrática no país.

Provocada por um jornalista que perguntou se ela era “subversiva”, respondeu: “Se cantar músicas que falam dos dramas do povo, dos seus problemas e das suas tristezas, angústias e alegrias é ser subversiva, acho que não escapo dessa classificação primária. Prefiro, porém, ser chamada de apaixonada pela alma brasileira, de procurar as raízes da verdadeira música do Brasil”. Com esse objetivo, viajou por todo país.

Pesquisou culturas populares regionais em busca de novos repertórios. Na Bahia conheceu Gil, Caetano, Maria Bethânia. Esse encontro teria sérias conseqüências para a música brasileira.

Nara também esteve por trás da primeira resposta do mundo artístico ao golpe militar. Em novembro de 1964 lançou o LP “Opinião de Nara”. A música que dava título ao disco havia sido escrita por Zé Ketti e começava assim: “Pode me prender, pode me bater que eu não mudo de opinião”.  Uma clara referência ao difícil momento no qual o Brasil estava vivendo.

O disco seguia o mesmo esquema do disco anterior, articulando o moderno e estilos de raiz. Trazia músicas de Zé Ketti, João do Valle, Edu Lobo, Baden Powell, Sérgio Ricardo, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Ruy Guerra. Sua marca era a crítica ao regime militar e às injustiças sociais.

O LP chegou ao segundo lugar nas paradas de sucesso e empolgou alguns artistas que vinham do CPC, destruído pela ditadura, e procuravam outros caminhos. Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) propôs transformar o disco num show. O elenco escolhido procurava traduzir a necessária aliança entre os operários favelados, representado por Zé Ketti, os camponeses nordestinos, representado por João do Valle, e as classes média urbanas, espelhada em Nara Leão.  Era a frente popular tão sonhada pela esquerda nacional.

O texto foi escrito por Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes. A direção ficou por conta de Augusto Boal. O show Opinião estreou em dezembro e obteve um estrondoso sucesso de público e crítica.

A reação não tardou. Grupos de direita picharam a fachada do Teatro de Arena com slogans anticomunistas. Durante o show, Nara era obrigada a bater boca com provocadores infiltrados na platéia. O ritmo extenuante acabou sendo demais para ela. Tendo que se afastar, indicou para substituí-la uma menina que conhecera na Bahia. O nome dela era Maria Bethânia. A garota estrearia fazendo um grande sucesso, especialmente pela sua performance em “Carcará” de João do Valle.

Nara voltaria ao palco no espetáculo “Liberdade, liberdade”, escrito por Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Mais uma resposta dos artistas ao arbítrio que se implantara no país. O texto era uma coletânea de citações de inúmeras personalidades defendendo a liberdade em todos os campos de atuação humana. Como os militares poderiam censurar as palavras de Cristo, Lincoln, Kennedy ou mesmo trecho da Declaração de Independência dos Estados Unidos? Simbolicamente, estreou no dia 21 de abril de 1965. Um novo sucesso de público e uma nova derrota da ditadura. A direita realizou novas provocações, ameaçando a integridade física e moral dos atores.

As coisas ficaram ainda mais quentes quando Nara, numa entrevista ao “Diário de Notícias”, defendeu a saída dos militares do poder, pois eles “podiam entender de canhão ou de metralhadoras, mas nada pescavam de política”. Advogou o retorno de um governo civil que “nacionaliza-se as empresas e possibilita-se (…) a melhora do nível de vida do operariado e o desenvolvimento econômico do país”. Empolgada, foi ainda mais longe afirmando que “numa guerrilha moderna, o nosso exército não serviria para nada” e, concluiu, “quem está mandando é que deveria ser cassado”. O título provocativo da matéria era “Nara é de opinião: Esse Exército não vale nada”.

Alguns generais enfurecidos pediram a prisão da cantora. Os intelectuais e artistas se organizaram para defendê-la e elaboraram um abaixo-assinado endereçado ao marechal-presidente Castelo Branco. Em sua defesa o poeta Carlos Drummond de Andrade publicou um poema-manifesto que dizia: “Meu honrado marechal/ dirigente da nação,/ venho fazer-lhe um apelo: /não prenda Nara Leão (…)/ A menina disse coisas/ de causar estremeção?/ Pois a voz de uma garota/ abala a Revolução?/ / Será que ela tem na fala,/ mais do que charme, canhão?/ Ou pensam que, pelo nome,/ em vez de Nara, é leão? (…)/ Que disse a mocinha, enfim,/ De inspirado pelo Cão? (…)/ Deu seu palpite em política,/ favorável à eleição/ de um bom paisano – isso é crime,/ acaso, de alta traição?/ (…)/ Nara é pássaro, sabia?/ E nem adianta prisão/ para a voz que, pelos ares,/ espalha sua canção./ Meu ilustre marechal/ dirigente da nação,/ não deixe, nem de brinquedo,/ que prendam Nara Leão.”

Nara e os festivais

O auge do prestigio de Nara ainda estaria por vir. Em 1966 foi convidada para defender a música “A Banda” de Chico Buarque de Holanda no II Festival da Música Popular da TV Record. Curiosamente, sem planejar, ele concorreria com “Disparada” de Vandré e Téo de Barros -um dos melhores exemplares da música engajada. A Banda venceu, mas por exigência de Chico, o prêmio foi dividido. Medida que agradou Nara.

A marchinha foi um fenômeno musical. Chico e Nara foram, subitamente, lançados ao estrelado. As solicitações de shows multiplicavam e eles não podiam mais sair nas ruas. Era um verdadeiro tormento para a introvertida Nara. A TV Record chegou a criar um programa especial: “Pra ver a banda passar”. A dupla de apresentadores foi chamada jocosamente de “desanimadores de auditório” por sua timidez e seu constrangimento diante das câmeras. Para alívio dos dois, o programa teve curta duração. Em 1967 interpretaria, ao lado de Sidney Miller, a bela canção “A estrada e o violeiro”.

Defensora da música popular não assumiu posições nacionalistas estreitas. Ela e Chico, por exemplo, se recusaram a participar da passeata, realizada em julho de 1967, contra a introdução das guitarras elétricas na música brasileira. Aquela havia sido uma jogada de marketing muito perigosa. Segundo Caetano Veloso, Nara teria dito “Isso mete medo. Parece uma passeata do Partido Integralista”. Não chegava a tanto. A maioria dos artistas que haviam participado daquela manifestação insólita se arrependeria da atitude.  Perceberam que o perigo não estava nas guitarras.

Dentro do seu espírito desbravador, Nara causaria mais uma polêmica. Rompendo com as barreiras existentes entre o pessoal da MPB e a nova onda tropicalista, chegou a participar do disco “Tropicália” cantando “Lindonéia” de Caetano e Gil. Isso gerou alguma indignação dos seus camaradas da música engajada e de raiz. Sentimento que duraria muito pouco. Ela apoiou, mas não podia ser definida como uma tropicalista, pois jamais se rendeu aos arroubos mais radicais daquele movimento cultural.

Quando do assassinato do estudante Edson Luís, em março de 1968, ela escreveu um longo texto de protesto intitulado “É preciso não cantar”: “Um estudante de 16 anos morreu porque queria instalações sanitárias e comida para melhor cumprir sua função de estudante. (…) Fizemos uma greve de teatro contra a censura.  E voltamos a cantar. Mas é impossível cantar, sabendo que os estudantes estão sendo assassinados nas ruas (…) Por isso, é preciso não cantar”. Por isso, participou, ao lado de outros artistas, da Passeata dos 100 mil.

A decretação do AI-5, em dezembro de 1968, iria eliminar o pouco espaço que ainda havia para expressão político-cultural. Iniciava-se o período mais sombrio da ditadura. Prisões, torturas e exílio se multiplicavam. Em agosto de 1969, ela declarou ao Pasquim: “No Brasil, no momento, não há condições de trabalho, não há estímulo, não dá vontade de cantar. Acho que se não houver liberdade de criação, vai acabar tudo”. Chico Buarque, no exílio, disse a Cacá Diegues que “Nara era um dos nomes mais citados pelos militares durante vários interrogatórios a que foi submetido”. As ameaças sobre o casal aumentaram e ele teve que seguir o triste caminho do exílio.

Na Europa, saudosa do Brasil, ela fez as pazes com a Bossa Nova e, pela primeira vez, gravou um disco somente com músicas de seus ex-companheiros. Nascia assim o LP “Dez anos depois”. Esse seria um reencontro definitivo com suas origens musicais. Em 1971, voltou ao Brasil.

No ano seguinte foi indicada para presidir o júri da etapa nacional do 7º Festival Internacional da Canção da rede Globo. Pressionada pelo regime, a direção da emissora destituiu todo o júri brasileiro e o substituiu pelo júri da fase internacional. Nara criticou a atitude e o psicanalista Roberto Freire tentou fazer um protesto em pleno festival, mas foi espancado e preso por agentes da repressão. Era o fim definitivo da “era dos festivais”.

Como alternativa ao fechamento dos espaços para divulgação da cultura nacional e popular foi criado o Circuito Universitário. Os artistas passariam a se apresentar em universidades de todo o país. Nara, Chico, Toquinho, Vinícius, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, MPB-4, Sérgio Ricardo, Paulo César Pinheiro, Paulinho Tapajós entre outros entrariam nessa aventura cultural. As condições, muitas vezes, eram precárias, mas isso era amplamente compensado pelo calor das platéias estudantis. Se apresentar e assistir esses shows eram formas de participar da resistência democrática naqueles anos de chumbo.

Contudo, uma tragédia se imporia na vida da artista. Em 1979 Nara desmaiou e foi levada ao hospital. Constatou-se que tinha um tumor no cérebro numa área de difícil acesso. A partir daí iniciou-se uma luta titânica da vida contra a morte. Uma luta desigual que ela conseguiu muitas vezes vencer.

Apesar da doença, continuou sua atividade política a favor da democratização do país. Envolveu-se na campanha dos candidatos da oposição em 1982. Assinou manifesto contra as prisões e desaparecimentos de presos políticos na Argentina. Participou ativamente da Campanha das Diretas em 1984. Até o fim defendeu as causas mais sentidas do nosso povo.

As perdas de memória eram mais constantes. Shows tiveram que ser interrompidos e cancelados. Ela lutava minuto a minuto contra a doença. Nos dez últimos anos de sua vida trabalhou incansavelmente e produziu quase uma dezena de discos. Nara morreu em 7 de junho de 1989. Mas, o seu canto de ave pequena e o seu rugido de leão continuam ecoando através das obras que nos legou.

Nota:

*Augusto Buonicore, Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp

O artigo abaixo foi publicado oiginalmente no sítio Vermelho, quando dos 20 anos da morte de Nara Leão.

As principais referências para esse artigo foram extraídas do livro Nara Leão: uma biografia de Sérgio Cabral, publicado pelas editoras Companhia Editora Nacional e Lazul.