Às vezes me assusto com as coincidências. Dias  atrás aconteceu uma delas, que me surpreendeu!

Depois de enviar o texto “O governo pode esvaziar o poder das milícias”, onde cheguei a fazer um paralelo com o período da repressão militar, leio o texto do Mino – “Torturem à vontade” – que trata exatamente sobre essa época de chumbo deste país tropical.

Justifiquei martelar no assunto porque tenho direito adquirido ao uso de minha neura adquirida nessa época sombria.

Como o Mino, e os editores que ele cita, Armando Salem e Raymundo Pereira, participei da reportagem da Veja a que ele se refere: era de capa e com enorme chamada: “Tortura”.

Eu, pessoalmente, desenvolvi a matéria em Salvador, onde trabalhava na sucursal. Quem me ajudou muito foi um advogado, grande amigo meu, que, além de ativista político, era professor da Universidade Federal da Bahia: Perseu Abramo, irmão do jornalista Claudio Abramo. Ele reuniu um enorme número de intelectuais que deram depoimentos sobre as torturas a que foram submetidos na época.

Terrificado, eu anotava tudo. E Jamison Pedra, o fotógrafo que me acompanhou durante todas as entrevistas, tornava-se cada dia mais revoltado com os depoimentos que ouvia.

Para que todos entendam, nesses anos horrorosos da ditadura, as redações recebiam, todos os dias, por telex, avisos do Ministério da Justiça sobre assuntos, personagens e até palavras que não podiam ser usados na imprensa.

Até o cardeal D. Elder Câmara, por exemplo, não podia ser citado. Mino, porém sempre ousou. E publicou na sessão “datas” que o religioso tinha recebido um prêmio no exterior. Eram duas linhas. Por isso, um censor acabou sendo escalado para trabalhar dentro da redação.

Como nada acontece sem querer, a palavra “Tortura” entrou no índex das proibições impostas à imprensa. Todas as redações receberam a ordem do governo, menos o responsável por uma delas, o Mino Carta.

A falta grave de algum burocrata fez aflorar o mais puro sentimento de indignação do jornalista e, com essa brecha, resolveu fazer da tortura a reportagem principal da publicação. Mino sabia que ia dar confusão, mas como sempre adorou fazer, resolveu enfrentar, ou peitar, o poder militar.

Voltando à matéria – que eu fazia em Salvador, com o Jamison – ouvimos histórias horrendas. Quando enviamos o material, texto e fotos, para os editores, em São Paulo, nos descontraímos. Fomos para o Mercado Modelo e tomamos um porre homérico – era cerveja, cachaça e, para acompanhar, lambreta, como é chamado um tipo de marisco, na Bahia.

Isso sempre acontecia. Era para relaxar, para comemorar, enfim, nós nos encontrávamos com o pessoal do mercado, invariavelmente na barraca do Chacrinha, que chamávamos de “farmácia”.

Na segunda-feira, orgulhosos, fomos ver o que os editores aproveitaram de nosso trabalho de sucursal. A capa, claro, estampava em letras enormes, a – para todos – proibida, palavra “tortura”.

Os textos e fotos da Bahia foram bem aproveitados. Estávamos orgulhosos por poder revelar ao público o que acontecia nos quartéis e dependências policiais.

Essa segunda era mais um dia de “festa de largo” na Bahia. Jamison saiu mais cedo da redação para ir se sentar num banquinho de uma barraca em frente ao Mercado Modelo. Nessas festas populares bahianas, bebe-se e canta-se até que as forças se acabem.

Enquanto eu ainda estava na redação, soube que a situação se complicara. Inconformados, os homens da ditadura prenderam jornalistas, apreenderam a revista. Como previsto, a reação foi violenta.

Só Jamison não soube disso. Já estava comemorando o santo da época. Feliz, até que a polícia apartou uma briga entre dois rapazes. Apartou na mão grande, descendo cacetada neles e em quem estava em volta.

Diante da truculência, Jamison não se conteve. A pressão interna provocada por tudo que ouvira, fez o fotógrafo explodir. Subiu no banquinho e fez, aos berros, um discurso contra a tortura e, já que estava no assunto, ampliou para atacar a ditadura.

Foi preso. Em cana, meio torto pela bebida, ele tomou conhecimento de que não se podia falar em tortura. Era proibido pelo governo.

Só no dia seguinte ele explicou que tinha feito uma matéria e, por isso, achava que não havia nada contra a discussão da tortura. Acabou convencendo o delegado, que ele conhecia profissionalmente, e foi solto.

Agora ele já tinha conhecimento de que, inclusive, a publicação em que trabalhava, com suas fotos e tudo, tinha sido recolhida das bancas.

Jamison, meu parceiro, foi direto para a redação. O ambiente, quando ele chegou, era tenso. Não sabíamos o que poderia acontecer. Temíamos que alguém – ou todos nós – da redação fosse pego pelas autoridades.

Completamente desfigurado, cansado, ele veio em minha direção furioso. Dedo em riste no meu nariz, gritava que eu era culpado por sua prisão e por fazê-lo trabalhar numa matéria proibida, sem avisar.

Acuado, me defendi, tentando explicar que essa era nossa vida, nossa profissão, em época de ditadura. Tudo podia acontecer até com uma matéria sobre teatro infantil que agredisse a sensibilidade de qualquer censor da República.

Ele concordou. Me abraçou forte, chorou, soluçou, desabafou a tensão vivida durante sua prisão. De fera, era um bebê indefeso. E iniciou um discurso sobre como o Mino lutava maravilhosamente contra as forças da repressão.

Antes que a coisa fervesse de novo, convidei Jamison, agora meu parceiro outra vez, a ir para a rua comigo. Sem combinação alguma, fomos para o Mercado Modelo. Atrás do balcão, Chacrinha, dono da “farmácia”, nos esperava com seu riso aberto, carinhoso e tranquilo.

Sem perguntar qualquer coisa, ofereceu dois copos. Encheu de Pitu. Enquanto entornávamos a primeira dose de nosso remédio, a generosa garrafa de Brahma foi posta sobre o balcão. Enchemos os copos, brindamos e Jamison comemorou: “Tortura, nunca mais”.

Fonte: Carta Capital