Jorge Amado e o retrato falso de um comunista
Na esteira destas iniciativas, acaba de chegar às livrarias Os ásperos tempos, primeiro volume de Os subterrâneos da liberdade, escrito em 1951. Os outros dois livros, Agonia da noite e A luz no túnel, saem ainda este ano.
O romance conta uma história de duas faces: de um lado, a dos militantes do Partido Comunista e, de outro, o da burguesia paulistana. Em meio a tantos personagens, um em especial chama a atenção. Trata-se do jornalista Abelardo Saquila, descrito como um canalha, traidor ligado à polícia e, pior, um renegado trotskista.
Seguindo as diretrizes traçadas por Moscou, Jorge Amado constrói uma narrativa nos cânones do realismo socialista que, ao mesmo tempo, se enquadra no chamado roman à clef, gênero em que o autor retrata pessoas e suas ações, escondendo a identidade delas sob a roupagem de sujeitos fictícios. Assim, o romance cifrado só é inteiramente entendido por quem conhece seu código.
Tido dentro do Partido como um renegado trotskista, o personagem criado por Jorge Amado na sua fase mais stalinista – como ele próprio assumiria mais tarde –, é um dos diversos modelos de figuras reais. Inspirado em Hermínio Sacchetta, o vilão Saquila aparece como o contrário de outra referência explícita, um militante de conduta irrepreensível chamado Carlos. Este, pintado com todas as cores do herói clássico, e baseado em Marighella, vai tecendo teorias e desenvolvendo ações que se opõem fortemente às posições de Saquila.
Para quem não conhece de perto a história das disputas no âmago do Partido Comunista do Brasil, é preciso lembrar que entre 1937 e 1938 o PCB passou por um processo de cisão. De um lado estava o Comitê Regional de São Paulo, liderado por Hermínio Sacchetta, que se opunha ao Secretariado Nacional, com Lauro Reginaldo da Rocha à frente. O ápice da divergência se deu em torno da sucessão presidencial prevista para 1938, mas frustrada com o golpe de Getúlio Vargas que instaurou o Estado Novo. Em agosto de 1937, a direção do partido define sua posição frente às eleições e expulsa os militantes que “perderam” a discussão, entre eles, Sacchetta.
O período que vai do início das disputas internas até a expulsão dos dissidentes é bastante complexo e cheio de idas e vindas. Embora à época estivesse afastado do Partidão, primeiro em viagem para fora do Brasil e depois, na prisão, de onde saiu apenas em 1938, quando o racha já estava encerrado, Jorge Amado constrói seu romance exatamente sobre esta fase.
Saquila e Sacchetta, personagem e homem real, são jornalistas, militantes do Comitê Regional de São Paulo do partido e ambos vivem a luta interna, acabando expulsos acusados de fracionistas trotskistas. Para não deixar dúvidas, se tais semelhanças não forem suficientes, Jorge Amado transforma o sobrenome italiano em Saquila, uma palavra homófona. Sobre esta época, ele admitiria, para os Cadernos do Instituto Moreira Salles: “Os subterrâneos da liberdade carregam a marca de uma visão de mundo stalinista que foi a minha, e na qual muitas das coisas são em preto e branco (…)”.
Fora da ficção, Hermínio Sacchetta passou pelas redações do Correio Paulistano e de A Cigarra. Na militância política entrou em 1932. Foi preso em meados de 1938, e cumpriu quase dois anos de pena. Depois de solto, acumulou os cargos de sub-secretário e secretário-geral de redação da Folha da Manhã e da Folha da Noite. Depois das Folhas, passou por diversos veículos, entre eles, Jornal de São Paulo, Diários Associados e O Tempo.
Já na Ditadura Militar, ironicamente, Sacchetta deixou de lado antigas divergências e utilizou o jornal onde trabalhava para publicar um manifesto escrito por Carlos Marighella. Embora contrário à luta armada, publicou no Diário da Noite manifesto do então líder da ALN (Ação Libertadora Nacional), lido após a tomada dos transmissores da Rádio Nacional por guerrilheiros da organização. Foi por isso novamente preso e processado.
Tempos depois da publicação de Os subterrâneos da liberdade a conjuntura internacional mudou drasticamente, abalando arraigadas convicções políticas da esquerda. Kruchov denunciou os crimes de Stalin e os comunistas pagaram um preço alto por suas antigas posições. Jorge Amado, por sua vez, apesar de ter declarado que estava dominado por uma visão maniqueísta de mundo quando compôs o romance, nunca se retratou.
Neste primeiro volume de Os subterrâneos já nas livrarias, no caderno de imagens do final encontramos uma foto de Marighella e outra de Sacchetta, herói e vilão, mais uma vez, lado a lado. As legendas explicam: “Carlos Marighella, ‘incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente’, nas palavras de Jorge Amado, é homenageado no personagem Carlos”. E “Hermínio Sacchetta, fotografado no Deops. Um dos principais editores de A Classe Operária, ele aparece no romance como o jornalista Abelardo Saquila”. Temos ainda na folha de rosto uma nota prometendo, no terceiro volume, um posfácio de Daniel Aarão Reis.
Já sabemos que em sua autobiografia, Navegação de cabotagem, Jorge Amado passa ao largo da questão. Mas, nas próximas edições de Os subterrâneos deveria caber ao menos uma nota explicativa contextualizando o leitor e informando-o sobre bastidores da máquina partidária cruel, a serviço da qual Jorge Amado trabalhava. Assim, o livro ganharia maior legitimidade como um retrato de época e gerações de leitores não seriam privadas de outra visão sobre a história do país. Aguardemos, portanto, o posfácio no terceiro volume.
*Paula Sacchetta é jornalista e neta de Hermínio Sacchetta.