1. Fomos de carro. Saímos de Madri, onde morávamos, paramos para almoçar em Évora, chegamos em Lisboa tarde da noite. Um amigo nos havia emprestado sua casa para ficarmos três ou quatro dias, enquanto ele viajava. Era uma casa pequena, aconchegante, generosa, pintada de branco e com janelas azuis.

Lisboa estava, naquele fim de verão de 1978, coalhada de exilados brasileiros. Não se passava uma semana sem que chegasse gente da França, da Bélgica, da Suécia, para se reunir com quem havia se exilado ali e ficar falando do Brasil. Conspirava-se em tempo integral. Em Madri, ao contrário, não havia brasileiros. Chegar a Lisboa era mergulhar em reuniões intensas, em conversas cheias de uma expectativa que todos nós sabíamos que não seria correspondida tão cedo.

No dia seguinte ao da nossa chegada, Márcio Moreira Alves ligou pouco antes da uma e meia da tarde. Marcito era um conspirador em tempo integral, e eu às vezes me divertia com a plena dedicação dele ao ofício de conspirar, às vezes me cansava com aquele excesso conspirativo. Muitas vezes, achava que ele assumia aquele ar permanente de coisa secreta só para me provocar e se divertir.

Pois bem: pouco antes da uma e meia da tarde, ligou para perguntar quem mais estava em casa comigo. Expliquei que minha mulher, que aliás era prima dele, e meu filho, que tinha três anos. Marcito perguntou se eu estava esperando alguém. Respondi que não. Então pediu que eu não falasse com ninguém até que ele me ligasse de novo.

Vinte minutos depois, ligou. Perguntou se alguém tinha telefonado. Respondi que não. Perguntou se eu já tinha almoçado. Respondi que estava me preparando para comer. Ele então disse que iria até a casa onde estávamos, precisava falar comigo e com minha mulher. Às duas e dez ligou pela terceira vez, e pela terceira vez eu disse que não havia falado com ninguém, que ninguém viria, que ele poderia vir com tranqüilidade.

Eu não sabia que Marcito morava a poucos quarteirões dali. Chegou em menos de cinco minutos. Trazia nas mãos uma caixinha de isopor. Entrou e perguntou onde era a cozinha. Foi direto para lá, sentou, chamou minha mulher e, com um ar de triunfo insuperável, abriu a caixinha.

Dentro, havia jabuticabas. Tinham chegado do Brasil naquela manhã, numa complexa operação armada no dia anterior. Ao saber que um amigo viajaria para Lisboa, o pai de Marcito despachou para o aeroporto do Galeão uma caixa grande, de isopor, cheia de jabuticaba e gelo. A encomenda cruzou o Atlântico ao longo da noite, chegou cedinho a Lisboa e, como sempre acontece quando se trata de transportar jabuticaba, mais da metade se perdeu.

Do que sobrou, Marcito separou uma parte para nós. Achava que já era tempo de meu filho, de três anos, saber o que era jabuticaba.

Essa é uma das histórias de fraterna generosidade que mais me marcaram na vida: é preciso saber o verdadeiro valor das coisas da memória, as que ninguém menciona, as que ninguém sabe avaliar, as que parecem inacessíveis para sempre, para dividir jabuticabas.

2. No último dia de 1975 o escritor chileno Ariel Dorfman, exilado em Paris, saiu, tarde da noite, do apartamento de um amigo que morava num subúrbio e tinha morrido longe do Chile. Entrou no trem para voltar para casa e esperar o novo ano que ia nascer dali a poucas horas. No vagão, havia um homem solitário e mais ninguém.

Ariel começou a ler um livro chamado The Clown, e o homem puxou conversa. Disse que gostaria de ser palhaço. Ariel comentou que devia ser uma profissão triste. O outro confessou: É que eu sou triste. Ariel respondeu: Pois eu também. Chegaram à conclusão que formariam uma boa dupla de palhaços. Onde?, perguntou Ariel. Em meu país, respondeu o outro. E qual é o seu país?, quis saber Ariel Dorfman. Sou do Brasil, respondeu o outro.

Os dois viviam tristes porque estavam longe de suas terras e não tinham idéia de quando voltariam, mas não diziam essa verdade para ninguém.

Então sorriram felizes, porque podiam falar a mesma língua. E cada um ficou falando de seu país, enquanto o vagão vazio de gente corria rumo a Paris e ao ano novo que faria sua estréia longe das terras daqueles dois sul-americanos que conversavam num solitário trem de subúrbio, longe de seu mundo.

Essa história da solidão do exílio foi contada por um terceiro exilado, o uruguaio Eduardo Galeano.

Tudo isso aconteceu quando éramos jovens e a América do Sul ficava longe, muito longe, e parecia perdida.

Tudo isso aconteceu num tempo em que, muitas vezes, pairava noite afora aquela sensação obscura e gelada de que tudo que tinha sido vivido antes não passara de um sonho que se esvanecera no ar.
 

Fonte: Carta Maio