Travessia
Estamos tranquilos. Meu camará, Sezostrys, distribui músicas que vão alteando bandeiras pela janela da caminhoneta quando passamos pelas estradas margeando a imensa serra. Vemos as escarpadas, gigantes pedras imemoriais, igarapés surgem lá, no bastião das “Montanhas do Pará”, segundo ensina os versos do poeta guerrilheiro, Rosalindo Souza.
Há dias que o congresso brasileiro aprovou a Comissão Nacional da Verdade e vários artigos já passaram pelas minhas retinas, uma tentativa de desesperada carta para minha mãe grávida e torturada, as lembranças dos meus muitos meninos quando, infante, o caudaloso rio dos karajás anunciava a chegança de meu pai naquela distante Conceição do Araguaia no final dos anos 70.
Fora ali que escutei as primeiras histórias da guerrilha.
Em vários dias seguimos em longas discussões e discussões são como estradas: têm retas, curvas, ora sinalizamos, ora pisamos no breque, mas sempre pedimos mais velocidade, ao lado dos irmãos da igualdade que ao longo destes mais de trinta anos nunca se dobraram diante das imensas dificuldades de revelar ao país os brutais acontecimentos engendrados naquelas noites soturnas de 1964.
Vamos com nossas espadas da esperança fazendo novas guerrilhas – agora, nesta quadra histórica publicizamos os ardis e as mortalhas que silenciaram toda uma geração de jovens brasileiros e latino-americanos. É para outros jovens, os do presente e do futuro que certas histórias, por mais duras que sejam, devem ser contadas. Sempre.
Precisamos desvendar como exemplo, a participação de grandes empresas no apoio à repressão política naqueles duros anos de violação máxima aos direitos humanos.
Nas pesquisas sobre a insurgência araguaiana temos claro que a Camargo Corrêa e a Mendes Júnior sustentaram materialmente todo o processo repressivo ao movimento armado dos comunistas.
É impressionante saber que, durante a construção da Transamazônica, os galpões destas empresas, como de outras, se transformaram em centros de tortura e carceragem. Muita gente perdeu a vida naquelas terríveis condições.
Outro aspecto é a contabilização das vítimas.
A surra institucionalizada foi geral, inclusive contra fazendeiros e comerciantes bem-sucedidos da região. Não precisamos nem falar dos guerrilheiros e camponeses, principais alvos dos generais da época.
Muita gente desapareceu naquele período, gente que jamais voltou para casa. A contabilização oficial não corresponde aos acontecimentos havidos nestes sertões pouco conhecidos do país.
Mais recentemente soube de uma fuzilaria onde hoje é Xinguara, bem ao sul do Pará. As informações dizem respeito em mais de duas dezenas de camponeses mortos em 1974.
No início deste ano de 2011 fomos informados por ex-soldados de que, em São João do Araguaia, houve semelhante fuzilaria com mais de vinte mortos, neste mesmo ano sombrio da década de 1970.
Acontece que apesar de todos os esforços empreendidos ao longo de muitos anos estamos apenas tateando e a verdade ainda é um breve facho de luz no fim deste imenso túnel que é o tempo. Mas a aprovação da Comissão da Verdade já é um enorme passo para que possamos, enfim, descortinar um passado que ainda é presente na história brasileira.
Tal esforço é para o futuro e serve como lâmina mais que afiada para a nossa sempre perene construção democrática.
* Paulo Fonteles Filho é pesquisador da Guerrilha do Araguaia