Para os que estão lá, ao longe, nos grandes centros, lendo informações diárias dos frios jornais de grande circulação, jamais saberão o que é percorrer não apenas os sertões deste país profundo e desigual, mas sobretudo de colher informações duras de mortes, torturas, assassinatos e desaparecimentos.

No fim desta jornada que se encerra fostes revelando que tua irmã, Maria Diná, desaparecida na flor de mais bela idade pelas botas de tiranos que nós sabemos quem são, teria sido largada na mata e lá ficou com seu jovem corpo insepulto estendida sobre a natureza destas agoras úmidas terras.

E que jamais poderias, com os teus, reservá-la a uma morada como sonhas tu, tua idosa mãe e todos os companheiros que por anos compartilharam e compartilham de ideais que fizeram com que uma geração de brasileiros trocassem as comodidades de simples vidas por uma espécie de furacão libertário que hoje enfim, todos, sem excessão, usufluímos na vida democrática.

Em meio a reunião fizestes tal revelação e confesso, querida amiga, que fiquei sem horizonte. Assim fiquei porque teus olhos pareciam forjar um desalento, numa tristeza que não se assemelha a ti, num silêncio que jamais ousou fazer pouso em tua combativa voz.

Dificilmente, ao certo, nunca saberemos quantos procuramos porque há inumeros camponeses, muitos deles anônimos que nunca mais voltaram para suas casas, para as suas roças, para a dureza de suas vidas lavradoras, para a manhã que banha toda esperança, para o calor de suas mulheres e para a admiração e necessidade de seus filhos. Isso porque simplesmente um violento daqueles, dileto seguidor dos Bandeiras, Moogs e Lícios da vida resolveu silenciar e enterrar em cova rasa.

Muitas das histórias que buscamos jamais serão contadas porque nunca haveremos de encontra-las e estarão sepultadas seja pela valentia da vítima ou covardia do algoz.

Nunca mais saberemos de muitas coisas que o tempo, e o tempo neste caso, e apenas neste, é aliado daqueles que querem pôr nossas tragédias nacionais escondidas por debaixo do sacrossanto manto de todas as impunidades.

Acontece que têm aquelas histórias que romperam toda sorte de grilhões e não podemos deixar que se apaguem sob pena de que nosso passado fique parecendo desfibrado.

Acontece que muitos dos que procuramos tinhas rostos, nomes, famílias, amigos, idéias, namorados ou namoradas, juventude e uma vida toda que não foi mas que vivem de outra forma, como heróis de todos os brasileiros.

E estes, querida amiga, serão assim para sempre porque venceram suas próprias vidas para se tornarem nossas vidas também. No fundo, foram eles que me fizeram voltar ao Partido.

Vai me parecendo que o que há de melhor na gente é jamais permitir que os violentos ganhem esta contenda. É fazer saber com estardalhaço e a plenos pulmões que todo um período da vida nacional fora marcada pela batuta ou pelo pau-de-arara destes que estão por aí com aparência de velhos decrépitos ou inofensivos. E o barulho feito é para que nunca mais ocorra o que aconteceu à 31 de Março de 1964. É para alertar principalmente os de tenra idade como também aqueles que possam ousar a pensar em versões tipo Michelet com feijoada, acarajé ou tucupi.

Alguns decrépitos, como sabes, até choram e se não tomarmos cuidado podemos, de boa fé, sentir pena seja pela nossa herança portuguesa ou seja porque simplesmente não acreditamos que ex-todo-poderosos possam parecer tão frágeis ou mesmo gentis. Quem irá nos explicar porque esse mundo dá tantas voltas? Deve ser mesmo pelo milagre que faz a luta de nosso povo, não é?

O que importa é que nossos queridos heróis estão conosco. Nunca nos deixaram e sabemos disso, seja pela consciência, seja pelo coração.

Ás vezes coisas estranhas acontecem e sinto que eles vão nos levando pelas mãos por sertões, rios e pessoas para que verdadeiramente possamos encontrá-los. E em cada paisagem deste araguaia nós nos encontramos nesta imensa luta para emancipar o Brasil em definitivo.

Veja que tua irmã, Maria Diná, está a te esperar nas profundezas destas terras amazônicas. Lá está ela, já podemos vê-la, com uma viola na mão cantando toda nossa época como cancioneira popular que é.

Lá está ela com o João Goiano nos esperando entre os pedrais do caudaloso rio dos karajás e como quem acena vai nos ensinando o valor do povo e da liberdade. Porque a palavra liberdade é a mais bela de nosso vocabulário.

Alguns deles ficarão plantados nesse chão, sabemos disso.

A Sônia já têm a disposição um Jardim do Éden e parece que por lá deverá ficar como um santuário porque tudo que era dela, sangue, corpo e consciência parece ter se misturado as árvores, aos bichos e sobretudo ao lavrador que jamais lhe deixou sem morada digna e mais do que nunca vamos podendo compreender isso nestes tempos em que nossa tarefa, mais do que nunca, têm dimensão democrática.

É claro que não é possível florir na dureza dos relatos destes sertões e queremos todos de volta como o Bergson e a Maria Lúcia, quanto à isso não há vacilação!

É claro que haveremos de preparar tribunais porque os crimes perpetrados não preescrevem e isso será importante lição para o futuro que queremos construir sem tortura ou pau-de-arara, ainda comuns em delegacias país afora cujas vítimas é gente modesta e moradores de nossas imensas periferias.

Não poderia te dizer de outra forma senão por esta que vai celebrando o dia que amanhece e logo mais estaremos na casa de taipa do Osvaldão, próximo ao Gameleira, que vem de lá de cima da Serra das Andorinhas nos ensinar cada vez mais que o curso destas águas é tão caudalosa quanto o futuro que o nosso povo reservou aos seus heróis, como num amálgama amante e duradouro, com o coração e com a consciência.

Fonte: Portal Vermelho