A chacina de Santana do Livramento
O governo do general Dutra foi um dos mais truculentos da nossa história republicana. Contraditoriamente, foi o primeiro presidente depois da queda do Estado Novo e aquele que deveria se reger pela constituição de 1946, considerada uma carta democrática. Nos quatro anos de seu mandato, dezenas de comunistas tombaram assassinadas pela ação das forças de repressão. A Chacina de Livramento, ocorrida há exatamente 60 anos, foi mais um desses episódios da barbárie implantada contra os trabalhadores naqueles tempos de guerra fria.
Governo Dutra e a repressão
A mudança da situação internacional, com a eclosão da chamada guerra fria, teve reflexo na situação política brasileira. Neste período, aumentou a ofensiva conservadora contra o movimento operário e popular, particularmente contra o Partido Comunista.
Em maio de 1947 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu pela cassação do registro do PC do Brasil. Três dias depois o governo do general Dutra determinou o encerramento de suas atividades em todo o território nacional. Imediatamente, suas sedes foram invadidas, depredadas e fechadas pela polícia. No início do ano seguinte, em janeiro, o projeto de cassação dos mandatos foi aprovado na Câmara dos Deputados. Os comunistas ainda tentaram fundar um outro partido: o Partido Popular Progressista (PPP), mas ele não teve o seu registro aceito pela justiça eleitoral.
A repressão aos comunistas havia começado algum tempo antes. Já em 1946 a ação truculenta da polícia havia feito a sua primeira vítima fatal, a comunista Zélia Magalhães. Assassinada durante um comício partidário, ainda no período de legalidade. Outras mortes ocorreram nas mesmas condições: repressão violenta contra manifestações políticas e piquetes grevistas.
Foram praticados atos, verdadeiramente, selvagens contra as lideranças comunistas brasileiras. No final de 1948, o vereador e líder dos mineiros de Morro Velho, William Dias Gomes, foi assassinado por capangas de uma mineradora estrangeira. Em setembro de 1949 ocorreu o Massacre de Tupã, onde três comunistas (Pedro Godoi, Afonso Marma e Miguel Rossi) foram brutalmente assassinados pela polícia quando participavam de uma reunião que preparava um encontro de trabalhadores rurais. No primeiro de maio de 1950, ocorreu a chacina na cidade portuária de Rio Grande, na qual foram mortos quatro trabalhadores comunistas: Euclides Pinto, Honório Alves de Couto, Osvaldino Correa e Angelina Gonçalves. Esta última foi executada quando carregava uma bandeira brasileira.
O general-presidente Dutra, em fins de mandato, ainda tomou novas medidas discricionárias, visando restringir ainda mais o espaço político dos comunistas. Estabeleceu um “atestado de ideologia”, dado pela polícia política, para os candidatos que desejassem concorrer às eleições. Aproveitando-se disso, foram cassadas as candidaturas de Diógenes Arruda Câmara e Pedro Pomar, dois dos principais dirigentes comunistas brasileiros. Eles haviam sido eleitos em 1947 por outra legenda e, por isso mesmo, foram poupados da cassação dos mandatos.
O agravamento da guerra fria, a ameaça de uma guerra nuclear, o aumento da repressão política e a drástica redução dos espaços institucionais, conduziram os comunistas a posições esquerdistas, que tendiam subestimar a via eleitoral. A discussão sobre a sucessão presidencial começou a ganhar corpo já no final de 1949. O Partido Comunista considerava as divergências surgidas em torno do processo sucessório um simples meio de iludir os trabalhadores e afastá-los da alternativa revolucionária defendida pelos comunistas. O manifesto de Luiz Carlos Prestes, divulgado em agosto de 1950, expressou claramente estas posições.
A Chacina dos 3A
Mesmo em condições bastante adversas, os comunistas ainda buscavam eleger seus candidatos e os lançavam por diversas legendas. Eram os chamados “candidatos de Prestes” ou os candidatos da “Frente de Libertação Nacional”. Como era de esperar, a reação procurou dificultar ao máximo sua ação de propaganda eleitoral.
Os comunistas da cidade gaúcha de Santana do Livramento estavam animados com a campanha dos candidatos populares. Eles já tinham dois vereadores na cidade, Lúcio Soares Neto e Sólon Pereira, que haviam sido eleitos pelo Partido Social Trabalhista em 1947.
Os militantes comunistas de Livramento se destacavam pelas pichações que realizavam. Este era o principal meio de divulgação das candidaturas naquela época. No entanto, discricionariamente, as autoridades locais proibiram tal prática de propaganda.
Dentro do espírito radicalizado do “Manifesto de Agosto”, recusando-se a se submeterem à determinação da polícia, os comunistas prepararam-se para realizar novas ações, imprimindo nos muros as palavras de ordem do Partido Comunista do Brasil. Até que no dia 24 de setembro, no Largo Internacional, um destes grupos de pichadores foi surpreendido pela chegada do delegado Miguel Zacarias, um investigador e três soldados da Polícia Militar.
A presença ostensiva dos homens da repressão não os intimidou. Defendendo os seus direitos constitucionais, continuaram no seu trabalho de propaganda eleitoral. A resposta policial ao desacato foi desencadear uma fuzilaria e o massacre do grupo indefeso. Quatro militantes morreram no conflito. Seus nomes eram: Abdias Rocha, Aladim Rosales, Aristides Correa Leite, Ary Kulmann. Este episódio sangrento ficou conhecido como chacina dos 4 A, devido as iniciais dos nomes das quatro vítimas fatais.
Assim o jornal comunista Voz Operária descreveu s cena: “Eram 22 horas e o povo se apinhava nas ruas daquela cidade. O movimento era intenso (…). Chegou a polícia e deu voz de prisão para Aristides Correia Leite, agente de “A Tribuna” naquela cidade. Ante esta arbitrariedade, Aristides protestou energicamente. Suas palavras, porém, não chegaram sequer ao fim: foi assassinado a tiros (…). Ari Kulman, que estava perto, correu até o local onde se encontrava Aristides. Porém, logo ao dar os primeiros passos, foi ferido e, em seguida, trucidado pelos beleguins. A chacina começava”.
Continuou o artigo: “Aladim Rosales, candidato a deputado federal, operário dos frigoríficos com mais de 25 anos de serviço, líder querido de sua classe, comandante da grande greve que os trabalhadores da Armour realizaram, foi o que tombou em seguida, também atingido pelas costas. Apesar do assalto traiçoeiro e covarde o povo resistiu. Os lideres mais queridos da cidade, que ali estavam, tendo à frente os vereadores de Prestes, Lúcio Soares Neto e Sólon Pereira, lutaram com bravura nunca vista”. Cerca de uma dezena de pessoas ficou ferida, entre elas os dois vereadores comunistas. Várias se refugiaram na vizinha cidade de Rivera, pertencente ao Uruguai, onde foram hospitalizados.
Abdias Rocha havia ingressado no PC do Brasil em 1934. Quando jovem participou da greve dos frigoríficos em solidariedade à revolução russa de 1917. Aristides Correia tinha uma pequena livraria e era responsável pela sucursal do jornal comunista gaúcho “A Tribuna”. Ary Kulman militante desde 1934, havia sido dirigente da Aliança Nacional Libertadora na cidade. Aladim Rosales, dirigente operário, esteve à frente de uma importante greve no frigorífico Armour/Anglo, ocorrida no ano anterior.
Muitos anos mais tarde, Lucio Soares, deu um depoimento no qual afirmou: “Após a chacina, eu chamo aquilo de chacina (…) fiquei foragido em Rivera (no Uruguai) mais ou menos dois ou três anos, sem atravessar para cá, porque se passasse seria preso, então passado esse tempo mais ou menos, eu me apresentei, fui ao quartel e me submeti a um julgamento, o júri se fez e fui absolvido unanimemente.”
A imprensa gaúcha, como ocorreu nos massacres anteriores, tratou de jogar a culpa em cima das próprias vítimas. Elas foram acusadas de terem reagido à bala a intimação policial. Um dos soldados que participou da chacina – e que disse ter recebido ferimento – chegou a ser promovido ao posto de cabo por ato de bravura. O governador do Rio Grande do Sul quando ocorreram os dois massacres de comunistas (o de Rio Grande e o de Santana de Livramento) era Walter Jobim, eleito pelo mesmo Partido de Dutra: o Partido Social Democrata.
Os massacres reforçaram a idéia do voto em branco nas eleições de 1950. No mesmo mês da Chacina de Livramento, Prestes havia lançado uma Carta Aberta na qual apresentava os “candidatos populares” às eleições para deputado e conclamava o voto em branco para presidente, governadores e senadores, com algumas poucas exceções.
O jornal dos comunistas gaúcho, A Tribuna, destacou uma série de depoimentos de populares que apontavam neste sentido. O garçom Wilson da Costa, por exemplo, afirmou: “Votarei em branco para presidente, vice-presidente, governador e senador. Luiz Carlos Prestes acertou muito bem. Não se pode mais votar nesta cambada de sem-vergonhas que fingem serem inimigos, mas se dão as mãos para assassinar e oprimir o povo. O meu voto será para os candidatos indicados pelo Cavaleiro da Esperança”.
O renomado arquiteto gaúcho Demétrio Ribeiro Neto, por sua vez, disse ao mesmo jornal: “O espírito progressista do povo gaúcho rebela-se agora contra a farsa eleitoral da classe dominante. Percebendo a sua incapacidade de manter as massas no estado de atraso em que até agora foram mantidas, a reação lança mão dos meios mais selvagens de repressão contra as forças democráticas, encabeçadas pelo proletariado, como vimos, por ocasião da chacina de Livramento e nas prisões e espancamentos que se sucedem todos os dias. Por isso, o nosso voto – concluo – será um protesto contra o terror fascista, votando tão somente nos candidatos de Prestes”.
Sem dúvida, este foi um grave erro que contribuiu para o agravamento do isolamento dos comunistas.
Eles poderiam muito bem ter apoiado para o senado Alberto Pasqualini, ideólogo do PTB e ativo militante das causas nacionalistas. Ao governo do Estado concorria o petebista Ernesto Dornelles, que havia rompido com Dutra e apoiava a candidatura de Getúlio Vargas à presidência. Os dois trabalhistas acabaram sendo vitoriosos no Rio Grande do Sul. Mas, dentro da lógica comunista, nada havia mudado.
O resultado eleitoral obtido pelo Partido Comunista foi bastante modesto, especialmente, quando comparado aos obtidos em 1945 e 1947. Eles elegeram apenas um deputado federal pelo Distrito Federal, o sindicalista Roberto Morena. Em Pernambuco, conseguiram eleger um deputado estadual: Paulo Cavalcante. O primeiro se elegeu pelo Partido Republicano Trabalhista (PRT) e o segundo pelo Partido Social Democrata (PSD), o mesmo do presidente Dutra. A sua maior vitória, no entanto, ficou por conta da eleição de 4 vereadores na Câmara do Rio de Janeiro.
Na cidade de São Paulo, também elegeram 4 vereadores, que foram cassados e não puderam tomar posse. Neste mesmo estado, por pressão do governo federal e estadual, a direção do Partido Social Trabalhista (PST) expurgou todos os possíveis comunistas da lista de candidatos.
Vargas, por sua vez, teve uma vitória expressiva, ficando com cerca de 50% dos votos. Esta representou uma derrota à política entreguista e anti-popular aplicada pelo general Dutra. Sem entender plenamente isso, os comunistas afirmavam: “Mesmo aquela parcela das massas que votou em Getúlio, na verdade quis votar contra a fome e pela justiça social, contra a guerra e pela paz, contra o imperialismo e pela democracia (…). A votação dada a Getúlio deve-se principalmente ao fato de que ele se apresentou como candidato de oposição ao governo ditatorial de Dutra, ocultando o caráter reacionário de sua candidatura com a máscara de uma descarada demagogia social e antiimperialista e das mais cínicas promessas”.
Os comunistas estavam certos em relação ao conteúdo do voto popular dado a Getúlio. Contudo, mas não conseguiram compreender as reais diferenças existentes entre o projeto político representado pelo governo Dutra e o futuro governo “trabalhista” de Vargas. Os dois, para eles, não passavam de “governos de traição nacional, instrumentos servis nas mãos do imperialismo norte-americano”. Isso só mudaria em agosto de 1954, quando da tentativa de golpe militar e o suicídio do presidente da República. A partir de então, se estabeleceu uma aliança política entre comunistas, trabalhistas e outras forças nacionalistas e populares.
A guisa de conclusão
Não sabemos exatamente o número de comunistas assassinados durante o governo Dutra (1945-1950). Possivelmente, tenha passado de quatro dezenas. A maioria morreu em choques diretos com forças repressivas. As prisões atingiram vários milhares de pessoas. Números bastante elevados para um regime que era considerado liberal-democrático.
Poderíamos, pelo contrário, definir o governo do general Dutra como uma semi-ditadura. Este fato, inconteste, foi subestimado por vários autores que trataram da história do Partido Comunista neste período. Eles, muitas vezes, tentaram debitar os revezes sofridos pós-1848 apenas à política esquerdista adotada. Falam, inclusive, que houve uma visão exagerada sobre a necessidade da atuação clandestina da direção nacional.
Na verdade, o esquerdismo foi uma resposta, inadequada, à crescente repressão governamental e às ameaças reais de uma nova guerra mundial envolvendo o campo socialista e o campo imperialista. Portanto, foi a duríssima repressão anti-socialista a principal causa das dificuldades políticas vividas pelo Partido Comunista do Brasil naquele período. Repressão que diminuiu significativamente durante o segundo governo Vargas, mas, de forma alguma foi eliminada. Os comunistas continuaram sendo presos, espancados e, ocasionalmente, mortos.
Em homenagem aos comunistas que tombaram em Livramento, Lila Ripoll escreveu o poema Elegia, publicado no livro Novos Poemas de 1951.
Os homens tombaram,
tombaram sem medo,
singelos,
heróicos,
severos e graves,
à luz do luar.
No rosto de espanto
brilhava a certeza,
o porte estendido,
calado, eloqüente,
vivia uma história,
mas não familiar.
A noite sangrenta
caiu demorada.
O sangue brotava
dos corpos, das almas,
da terra ofendida,
dos altos gemidos.
E os homens tombados,
singelos,
heróicos,
severos e graves,
na rua estendidos,
calados estavam,
mas não esquecidos.
Rosales e Kulman,
irmão Aristides,
e tu Abdias,
herói camponês
– de vida singela,
de sonho tão alto –
esperem confiantes
que a aurora desponte
no céu da manhã.
E tu, Livramento,
por quanto choraste?
Que mãos se crisparam
de dor e revolta?
Que vozes se ergueram
na noite passada?
O pranto desborda e
o sangue também.
As rosas vermelhas
se espalham no chão.
Os mortos, os mortos,
tenazes e fortes,
estão relembrando
que há outra alvorada.
No porte estendido,
calado, eloqüente,
os homens tombados,
severos e graves,
apontam caminhos,
desfraldam bandeiras,
nas ruas, nos campos,
nos rios e no mar.
Tombaram sem medo,
singelos,
heróicos,
severos e graves,
à luz do luar.
(Novos poemas, 1951)