Entrevista João Amazonas – Roda Viva (20/02/1989)
Augusto Nunes: Boa noite! Começa aqui mais um Roda Viva pela TV Cultura de São Paulo. Este programa é transmitido ao vivo pela Rádio Cultura AM, pelas TVs Educativas do Piauí, do Ceará, da Bahia, de Porto Alegre e pela TV Cultura de Curitiba. O Roda Viva é, ainda, retransmitido pelas TVs Educativas de Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo. Os telespectadores que desejarem fazer perguntas ao nosso convidado desta noite poderão ligar para 252-6525. Repito: 252-6525. As perguntas serão anotadas pela Carla, pela Iara ou pela Bernadete e, em seguida, encaminhadas ao nosso convidado do Roda Viva, que é o presidente nacional do PC do B, o Partido Comunista do Brasil, João Amazonas. João Amazonas é comunista desde 1936. Viveu alguns anos exilado, outros anos na clandestinidade. Esteve diretamente envolvido em episódios históricos muito importantes, como a Guerrilha do Araguaia. E, desde 1979, de volta à vida politicamente legal, é um dos personagens importantes do drama político brasileiro. Para conhecer o passado, o presente e o futuro de João Amazonas e do seu PC do B, ele estará sentado ao centro desta Roda Viva, formada pelos seguintes entrevistadores: Marco Damiani, coordenador de política do Jornal do Brasil; Rodolfo Konder, repórter da revista Afinal; José Américo Câmera, chefe de redação de jornalismo da TV Record; João Victor Strauss, editor executivo do jornal O Estado de S. Paulo; Izauco Sardenberg, editor de Política da revista Visão; João Batista Natali, repórter de Política do jornal Folha de S. Paulo; Hugo Studart, repórter de política da revista Veja; e Kleber de Almeida, editor do Caderno de Sábado do Jornal da Tarde. Também estará conosco, registrando cena e momentos deste programa, o cartunista Paulo Caruso. Também registramos e agradecemos a presença, aqui nos estúdios da TV Cultura, os convidados da produção do Roda Viva. Em 1979, o senhor declarou que o Brasil tinha uma taxa de 20% de democracia. Se essa declaração foi fielmente reproduzida pelos jornais que a publicaram, eu perguntaria ao senhor: dez anos depois, o Brasil já chegou a 100% de democracia ou ainda não?
João Amazonas: O Brasil não chegou a uma democracia plena e, a rigor, pode-se dizer que democracia plena nunca existiu no Brasil. Nosso povo tem sido uns dos povos mais oprimidos do mundo. Os hiatos de liberdade que apareceram foram pequenos e, assim mesmo, restritivos; de modo que, se em 1979 havia 20% de democracia no país, quem sabe se possa falar hoje em 70%.
Augusto Nunes: Agora, o que o senhor acha [sobre] qual seja o significado de fatos como este? O senhor, há alguns anos, era perseguido politicamente pelo regime; hoje o senhor é convidado de um programa em que o senhor pode falar livremente por todas as suas idéias. Quer dizer, como é que se sente um comunista declarado podendo viver em completa liberdade? Acredito que sim, o senhor vive hoje em completa liberdade, o senhor tem toda a liberdade para expressar suas opiniões. Isso não faria com que o país merecesse um pouco mais de democracia? O senhor pára nos 70%, ainda assim?
João Amazonas: Penso que, se se relacionasse única e exclusivamente, digamos assim, a um comunista, quem sabe a gente poderia estender um pouco mais essa porcentagem; mas, quando nós vemos [três] grevistas em Volta Redonda cercados pelo Exército e assassinados [em 9 de novembro de 1988, num confronto entre soldados do Exército, policiais militares e grevistas da Companhia Siderúrgica Nacional, CSN], nós podemos dizer que a democracia não passa de 70%.
Augusto Nunes: João Batista Natali, da Folha de S. Paulo.
João Batista Natali: Deputado – permita-me chamá-lo de deputado, porque foi esse o último mandato eletivo que o senhor exerceu e que lhe foi usurpado pelo autoritarismo em 1947 [quando os partidos comunistas brasileiros foram colocados na ilegalidade]…
Augusto Nunes: Aliás, João, eu omiti esse dado; é importante na biografia.
João Batista Natali: Exatamente, foi deputado federal constituinte [na Assembléia Nacional Constituinte que fez a Constituição promulgada em 1946]…
Augusto Nunes: Exatamente.
João Batista Natali: …eleito em 1946, cassado em 1947 por uma decisão do Supremo [Tribunal Federal] que, então, proibiu os comunistas de terem acesso ao Congresso Nacional…
Augusto Nunes: Perfeito.
João Batista Natali: Então, eu gostaria de chamá-lo de “deputado”, se o senhor assim me permite. Como o senhor se sente como membro de um clube fechado – um clube fechado chamado Partido Comunista do Brasil -, e, além do mais, um clube fechado de causas perdidas? Perdoe-me o caráter provocativo da minha pergunta. O PC do B foi uma das organizações que levou até os pontos mais radicais a guerrilha rural e perdeu a Guerrilha do Araguaia; o PC do B investiu demais no maoísmo, que foi abandonado pela própria China; e, sobretudo no plano interno, o PC do B gostaria de ter assumido a vanguarda do proletariado urbano e do campesinato rural. Esse papel, hoje em dia as urnas demonstram que se encontra nas mãos do PT [Partido dos Trabalhadores]. Então, o senhor acha que, apesar de todo esse salto plenamente negativo, deputado, o senhor ainda poderia ser considerado como o presidente de um partido de vanguarda com um futuro bastante promissor pela frente, no qual essas causas perdidas não teriam um peso tão grande?
João Amazonas: Esse problema, a gente tem que resolver respondendo do ponto de vista histórico. A luta por uma nova formação econômica e social no Brasil não pode ser conduzida em caminhos em linha reta, passa por muitas vicissitudes. E essas vicissitudes, que muitas vezes aparecem como derrotas, não são senão eventos negativos temporários que, adiante, tomam uma nova feição e podem se revelar o contrário do que pareciam em tempos anteriores. Veja você, por exemplo, o problema da Guerrilha do Araguaia. Um acontecimento de uma importância imensa; mas quem poderia imaginar que um punhado de comunistas e de homens do campo, pessoas rudes, pudessem enfrentar 25 milhões das Forças Armadas? As derrotas foram relativas porque, nas duas primeiras investidas das Forças Armadas, elas foram derrotadas, tiveram que recuar, e só na terceira investida conseguiram efetivamente bater essa organização guerrilheira. Mas, na história do mundo, nós sabemos que a Comuna de Paris, por exemplo, em 1871, também foi esmagada, até fisicamente – os seus participantes -; e nem por isso deixou o movimento operário e revolucionário de crescer no mundo – e, afinal, afirmou-se com a Revolução de 1917. Por isso, eu não considero que nós sejamos um partido de causas perdidas. Nós somos um partido de lutas que enfrentou, em situações as mais diversas, forças poderosas da classe dominante e, apesar disso, conseguiu alguns êxitos. [A eleição presidencial e para os membros da Assembléia Constituinte – que faria a Constituição de 1946 – em] 1945 é uma prova disso. O Partido Comunista do Brasil teve 10% da votação nacional no país. Foram cassados, em seguida, os mandatos dos comunistas [quando o partido foi colocado na ilegalidade, em 1947]. Nós não tínhamos força para fazer a revolução para tornar vitoriosas as nossas idéias, mas este acontecimento – a presença dos comunistas na constituinte de 1946 – jogou um papel enorme para que o povo brasileiro assistisse e visse, com seus próprios olhos, quem eram os comunistas, que idéias defendiam. Jogou um papel importante. Eu acho que hoje o que eu represento não é senão o resultado dessa trajetória de heroísmo de milhares e milhares de comunistas, de combatentes da causa avançada que ficaram pelo caminho. Mas, sem dúvida nenhuma, o futuro sorri para eles, porque, inevitavelmente, do ponto de vista da história, o mundo marchará para o socialismo.
Augusto Nunes: Kleber, depois Izauco, depois Hugo. Kleber.
Kleber de Almeida: [fala junto com Augusto Nunes] […] maldita, porque até o PCI, o grande Partido Comunista Italiano, anda cogitando – pelo menos uma ala do Partido Comunista Italiano anda cogitando – em mudar de novo para Partido Socialista [os partidos comunistas da Itália e de vários outros países mudariam de nome após a queda dos governos comunistas na Europa Oriental em 1989].
João Amazonas: [Sobre] isso aí, eu acho que divisões no movimento comunista sempre existiam desde a época de [Vladimir] Lenin [(1870-1924), líder da Revolução de 1917 na Rússia e chefe de Estado da Rússia e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (União Soviética) de 1917 a 1924], desde o início do século passado [século XIX]. Toda luta de Lenin foi contra mencheviques [facção dos comunistas russos que rompeu com Lênin em 1903, liderada por Julius Martov] e trotskistas etc, até que se consolidou um partido homogêneo, leninista, que encabeçou a Revolução de 1917. Acho que, no movimento comunista mundial, surgiu uma divisão profunda com o XX Congresso do Partido Comunista [em 1956, quando foi denunciada, pelo líder soviético Nikita Khrushchov, a ditadura stalinista] da União Soviética. Isso repercutiu em todos os países. Alguns adotaram caminhos de revisionistas, que é o velho caminho da Segunda Internacional [organização internacional de partidos social-democratas, socialistas e trabalhistas que existiu de 1889 a 1916] da social-democracia; e outros continuam com grandes dificuldades, mantendo bem alta a bandeira da revolução social.
Augusto Nunes: Izalco.
Kleber de Almeida: Só um momento, rápido, mas quem é…
Augusto Nunes: Kleber, eu só queria que você resumisse bem, para gente completar a roda. Mas faça a segunda pergunta.
Kleber de Almeida: É rápida. Se a União Soviética e a China já abandonaram esses postulados originais de comunismo, quem é comunista hoje, no mundo?
João Amazonas: Eu sou comunista no mundo…! E não somente eu, há muitos partidos comunistas organizados em toda parte. E a China e a União Soviética, sem dúvida nenhuma, entraram em um processo de retrocesso no caminho até então revolucionário seguido nos seus países. Mas isso não significa senão uma derrota temporária. A própria Revolução Francesa, que vai comemorar agora 200 anos, também sofreu sérios reveses depois de vitoriosa e nem por isso os fatores objetivos que determinavam o surgimento da nova sociedade capitalista deixaram de triunfar. Eu acho que essa derrota é temporária e que o movimento socialista voltara a se afirmar – porque, inevitavelmente, é esse o destino e o caminho da humanidade.
Augusto Nunes: Izalco Sardenberg.
Izalco Sardenberg: Presidente – eu vou chamá-lo de “presidente”, mesmo -, como é que o senhor analisaria – o senhor falou agora há pouco em porcentagem – o desempenho dos comunistas na eleição em 1946 e agora, em 1986, quarenta anos depois? Os comunistas tiveram 14 deputados e um senador naquela eleição e, desta vez, nós temos apenas 4 deputados…
João Amazonas: É seis…
Izalco Sardenberg: Cinco, seria, no caso…
João Amazonas: Seis deputados…
Izalco Sardenberg: Sendo que em 1945 o eleitoral brasileiro era muito menor. O senhor acha que isso constitui um declínio aos comunistas como representatividade eleitoral, ou não?
João Amazonas: Nós temos que ver isso em relação ao momento histórico em que se viveu. 1945 era um período em que as esperanças dos povos de todo o mundo eram enormes com a vitória sobre o nazismo, em que se esperava que se criasse uma nova situação internacional. E no Brasil, também, essa esperança do povo brasileiro levou a ver, nos comunistas que haviam lutado contra o Estado Novo e se dedicado à defesa dos interesses dos explorados e oprimidos, uma força que merecia o seu apoio. Nós tivemos 10%, 9%, quase 10% do eleitorado nacional. É evidente que, nos dias de hoje, é preciso ver a diferença de circunstâncias que existe. Primeiro, essa divisão no partido acarretou certos prejuízos. Não se pode deixar de considerar assim. E segundo, nós passamos 21 anos de ditadura militar. Eu acho que o partido voltará a se firmar novamente como uma grande organização que, de fato, defende interesses progressistas da nossa pátria e o futuro socialista do Brasil.
Augusto Nunes: Por favor, Zé Américo. Hugo Studart, em seguida, você faz sua pergunta.
Hugo Studart: Gostaria de saber se o senhor acha que o PC do B ainda é o partido representante da classe operária no Brasil, ou se o PT já teria tomado esse lugar.
João Amazonas: Não, não acho que… O partido, o autêntico partido revolucionário da classe operária nunca são dois ou três, é um só, um só. O partido da classe operária é aquele que representa os interesses fundamentais dessa classe; e os interesses fundamentais dessa classe são liquidar a escravidão salarial, derrotar o capitalismo e organizar uma nova vida socialista, tornar vitoriosa uma revolução social. Por isso, não me parece que existam muitos partidos comunistas. Existem partidos social-democratas que se intitulam de comunistas pelo mundo afora hoje, mas nem por isso, do ponto de vista de conteúdo, do ponto de vista teórico, eles são efetivamente autênticos comunistas.
Hugo Studart: Ou seja, continua sendo o PC do B, na sua opinião, o único representante da classe operária no Brasil?
João Amazonas: Não posso também situar que seja o único representante. Eu acho que, do ponto de vista teórico, quem defende os interesses fundamentais da classe operária é o Partido Comunista do Brasil; mas, sem dúvida, no Brasil existem também partidos que trabalham com a classe operária, que defendem interesses da classe operária e que devem ser respeitados por essa sua posição. Eu não sou exclusivista e nem quero eliminar também outras organizações que se batem, com boas intenções, para a libertação da classe operária.
Augusto Nunes: José Américo, depois Rodolfo Konder e depois o Márcio.
José Américo Câmera: Marx coloca muito claramente, no Manifesto do Partido Comunista [documento muito influente escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, publicado pela primeira vez em 1848 e que conclamava os operários de todas as nações a se unirem na luta contra a propriedade privada dos meios de produção], que a sua filosofia não é ideal e nem definitiva. Ele a coloca como sendo uma etapa histórica, uma evolução. Assim como o capitalismo teria sido uma evolução em relação ao feudalismo, essa filosofia seria uma evolução com relação ao capitalismo. Essa etapa histórica não seria exatamente isso que o senhor condenou agora em relação à União Soviética e a China? Será que a União Soviética e a China não estão entrando em uma nova fase na história?
João Amazonas: Eu penso que não é bem assim, o problema. Não se trata de uma nova fase. Na minha opinião, trata-se de um retrocesso. Creio que o proletariado revolucionário sofreu uma derrota histórica no XX Congresso da União Soviética. E que, em conseqüência disso, esses países, que já haviam construído, em grande parte, uma sociedade nova, voltaram atrás e vêm, passo a passo, caminhando em um caminho que nós conhecemos muito bem, que é o caminho em que predomina a lei da mais-valia [conceito da economia política marxista definido como o valor do trabalho não pago ao trabalhador, de onde o capitalista poderá auferir seus lucos], das joint-ventures com direções estrangeiras na própria União Soviética. E essa abertura, que chega à instalação do Maxim’s, um restaurante de luxo em Pequim – não é verdade? -, mostrando bem que o capitalismo ali se firmou ou vai se firmando e pondo de lado aquilo que constituiu um dos grandes e novos ideais da revolução dirigida por Mao Tsé-Tung.
José Américo Câmera: Pois então essa revolução seria a da Albânia, por exemplo? [a Albânia repudiou os movimentos revisionistas feitos pelos governos da Iugoslávia de Josip Broz Tito (1892-1980), a partir do fim dos anos 1940; da União Soviética de Khrushchev, a partir de 1956; e da China pós-Mao Tsé-Tung (1893-1976), a partir de 1976, tendo rompido com esses três países sucessivamente (mas se reaproximado da Iugoslávia a partir do fim dos anos 1970), e manteve um regime marxista-leninista ortodoxo]
João Amazonas: Que país mantém a pureza comunista? Essa “pureza” do marxismo, às vezes, é vista assim de uma maneira muito ortodoxa, não é? O marxismo não é senão uma ciência social. Ela adquiriu formas de ciência social com a grande obra de Marx e [Friedrich] Engels [(1820-1895), co-autor, com Marx, do Manifesto Comunista]. Essa ciência social tem que ser vista como um guia que a gente utiliza para construir uma nova vida e uma nova sociedade. Você imagine a Albânia, um país pequeno, o mais atrasado da Europa na ocasião, só um milhão de habitantes naquela época, heróico porque bateu as forças italianas e expulsou os alemães de seu território [os italianos invadiram o país em 1939 e o anexaram a Itália; durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi invadido também pelos alemães, em 1943; porém, os insurgentes albaneses conhecidos como partisans expulsaram ambos do país em 1945 e também de Kossovo, parte de Montenegro e do sul da Bósnia-Herzegovina]; esse país não podia de forma alguma construir o socialismo à moda da União Soviética. Seria um erro. Essa mesma coisa, nós dizermos no nosso país. Nós temos que considerar, apoiados na teoria, apoiados na ciência social mais avançada, nós temos que estudar a nossa realidade; e o socialismo no Brasil não pode fugir às tradições históricas de nosso povo, ao perfil de classes existentes no país, ao nível cultural, a certos hábitos, certos costumes progressistas existentes na sociedade brasileira. Enfim, tudo isso não significa a ortodoxia de se trazer uma forma estrangeira e querer metê-la no Brasil. Isso, não. Nós não estamos aqui para copiar nenhum regime e encaramos assim a ciência. E, se quiséssemos um exemplo mais prático, a gente poderia estudar, em uma universidade, a engenharia civil. Mas depois, com o conhecimento que se aprendeu, imagine você, um engenheiro chegar e ter que repetir fórmulas diante de diferentes tipos de construção que a ele vai se exigir. Ele, se é um bom engenheiro, domina as leis da construção em todos os seus aspectos; e ele vai ter que projetar alguma coisa que leve em conta o terreno, que leve em conta a função que vai exercer esse novo edifício e etc. Quer dizer, também na ciência social as coisas se passam dessa maneira.
Augusto Nunes: Presidente, por favor, antes de passar a palavra para o Rodolfo Konder, eu queria que o senhor respondesse a uma pergunta que foi encaminhada… A mesma pergunta foi encaminhada pelo Hilário Scatorim, de Suzano, São Paulo, e pelo Luís Cláudio Rodrigues, do [bairro do] Tatuapé [na cidade de São Paulo]. É muito simples: o senhor acha o comunismo viável no Brasil? Depois, Rodolfo.
João Amazonas: Sem dúvida alguma. Quem estuda a ciência social, o materialismo histórico, sabe que o capitalismo não é um regime eterno. O capitalismo, como foi o feudalismo, como foi o escravagismo, tem uma época e desempenhou certo papel na sociedade; depois, entra em declínio e, inevitavelmente, será substituído por uma nova formação econômica e social. Essa nova formação econômica e social, na fase de transição, chama-se “socialismo”, mas o objetivo é o comunismo, a sociedade sem classes, sem Estado. De modo que, se me pergunta se é viável, eu acho que o socialismo é viável em qualquer país do mundo hoje em que nós tenhamos um capitalismo decadente em decomposição e as forças novas da sociedade ainda não tenham tomado consciência da sua missão fundamental – mas acabam tomando.
Augusto Nunes: Rodolfo Konder, depois Marco Damiani, depois João Victor Strauss completa a roda. Rodolfo.
Rodolfo Konder: Presidente, o senhor está falando da constituição de uma nova sociedade. Então, seria interessante a gente ouvir do senhor alguma coisa sobre os princípios que norteariam essa sociedade que o senhor está querendo construir. No ano passado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos comemorou quarenta anos. Ela consagra alguns princípios, alguns direitos que nós consideramos universais. Eu gostaria de ouvir do senhor o seguinte: o senhor também considera universais os princípios ali contidos? E, se o senhor o considera, nessa sociedade que o senhor está querendo construir, esses princípios e esses direitos seriam respeitados? Porque, se eles têm validade universal, presidente, eles têm que ser respeitados aqui ou na Albânia, em todas as partes do mundo. E nada, nada justifica que o governo de qualquer país desrespeite esses princípios. Não é verdade? Então, eu gostaria de ouvir sua opinião sobre isso.
João Amazonas: Eu acho que o problema da Declaração dos Direitos Humanos desempenha um papel importante no que diz respeito ao combate aos métodos brutais do fascismo e dos regimes arbitrários que se implantaram no mundo, incluindo a tortura e as perversidades que se cometem contra aqueles que divergem do regime existente. Sem dúvida, essa declaração joga esse papel. Eu acho que, no que diz respeito aos princípios que eu defendo por uma sociedade nova no Brasil, nós deveríamos considerar como essencial a defesa da liberdade. Eu acho que a classe operária é uma força oprimida na sociedade e é aquela que tem mais interesses e necessidade da liberdade. Não seria justo que se fizesse uma revolução da classe operária e, afinal de contas, se implantasse um regime contra a liberdade da qual ela precisa. Sou defensor da liberdade; sou contra todas essas discriminações raciais que aparecem no mundo. Eu acho que isso é válido para todos os países socialistas e aqui no Brasil também já hoje nós defendemos essa questão.
Augusto Nunes: A União Soviética é uma sociedade sem classes? Isso o senhor diria que é, hoje?
João Amazonas: Sem classes?
Augusto Nunes: Isso. A União Soviética.
João Amazonas: Termino já e passo adiante. Eu acho que essa questão, portanto, de direitos humanos, para nós, é considerada assim: esses direitos de liberdade, de luta contra o racismo, o direito de reunião, o direito de expressão, do pensamento, enfim, essas questões todas são válidas, na minha opinião, para um regime socialista. E lutamos também, dentro do capitalismo […]. Agora, quando se fala em direitos humanos, a gente tem que ver esse problema em um outro plano. O direito dos capitalistas de explorarem os operários é um direito humano? Se envolve essa questão, também, dentro desses problemas. O direito do latifundiário transformar o homem da terra num servo, isso é um direito humano? O direito que têm os grandes países capitalistas de espoliar os povos, os povos menos desenvolvidos, isso é um direito humano? Eu acho que não se pode generalizar assim, de uma forma tão abstrata, essa questão e que é preciso tratar concretamente o assunto.
Rodolfo Konder: Mas eu não falei em abstrato, presidente, eu falei nos direitos e princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que certamente o senhor conhece; e perguntei se o senhor considera que aqueles direitos e aqueles princípios tenham validade universal. O senhor disse que acha que sim, considera que são universais.
João Amazonas: Sim e, quando se discute os direitos humanos, depois aparecem agregados a eles todas essas questões, que não são propriamente “direitos humanos”, mas são lutas de classes em uma sociedade dividida entre explorados e exploradores.
Augusto Nunes: Presidente, eu perguntei ao senhor… Só para que a pergunta não fique solta no espaço, eu fiz a pergunta [se a União Soviética é uma sociedade sem classes] justamente para dizer, caso o senhor respondesse que seja uma sociedade sem classes, que, então, lá não haveria esse problema da opressão na classe operária. Na União Soviética.
João Amazonas: Mas eu não vou responder isso. Eu acho que a União Soviética fez um grande esforço até a metade da década de 1950 para eliminar, ter menos das diferenças de classe ainda existentes naquela sociedade. Mas, de 1956 [quando do início das reformas de Khrushchov na União Soviética] para cá, na realidade, há classes na União Soviética: a classe burguesa e a classe, também, dos proprietários de terras, que vai se criando. Então, houve uma mudança na sociedade soviética, que passou, com a volta ao capitalismo, a ter uma sociedade de classe, também, e de luta de classe.
Augusto Nunes: Quer dizer, me parece que o senhor apóia, então, o que foi feito durante o período stalinista, já que o senhor disse que, até 1956, houve essa marcha em direção ao desaparecimento das classes. É isso?
João Amazonas: Eu acho que a constituição do socialismo não é um problema tão simples, não. Quando se tratava do primeiro país socialista no mundo, cercado por todos os lados de dificuldades imensas, a construção do socialismo foi uma grande epopéia do povo soviético e que teve que enfrentar não só intervenções armadas, como a Segunda Guerra Mundial. Eu acho o que se fez na União Soviética, sem dúvida alguma, foi um avanço gigantesco no terreno social, no terreno econômico, no terreno político, não é verdade? Mas não se pode dizer que o socialismo tinha alcançado já as suas etapas mais avançadas. Eu acho que, naquela altura, davam-se passos para isso. Lênin, mesmo, afirmou que a construção do socialismo passaria por muitas fases; e ele dizia que a gente nem mesmo pode saber como será a cara do socialismo, a fisionomia da nova sociedade, quando nós alcançarmos a última etapa.
Marco Damiani: Presidente…
Augusto Nunes: Marco, por favor, só pra completar; Izalco, Marco Damiani, João Victor Strauss e, aí, a entrada em cena é livre.
Marco Damiani: Eu vou mudar um pouco o foco da discussão para submeter uma informação que eu recebi à sua confirmação. Em meados de dezembro, quando o PT montava os secretariados municipais nas cidades em que venceu as eleições, o PC do B fez uma reunião da sua direção nacional e tirou como resolução a não-participação dos comunistas nas administrações do PT, considerando que essas administrações seriam um fracasso. Eu gostaria que o senhor confirmasse ou não essa formação. E [vou] juntar com outra coisa. Neste final de semana, o PT também decidiu que o candidato a vice na chapa do deputado Luís Inácio [Lula] da Silva para a Presidência da República deveria ser de outro partido – até pode ser do PC do B. Gostaria de saber se o PC do B aceita participar, se considera ter força eleitoral e se aquela primeira informação é verdadeira.
João Amazonas: A primeira parte da informação é verdadeira. De fato, depois das eleições de 15 de novembro, nas quais o Partido Comunista do Brasil jogou um grande papel para a eleição da [Luiza] Erundina [prefeita de São Paulo pelo PT de 1989 a 1993], nós tomamos uma decisão – que já não é tão nova assim – de não participar do primeiro escalão do governo municipal. Isso por uma questão de princípio; pareceu-nos que não se devia participar. A segunda parte da resposta: mas isso não significava que nós fazíamos isso por considerar que a administração fracassaria. Eu acho que não foi bem esse o problema, não. Ao contrário, nós não estamos interessados no fracasso da administração da Erundina. Sabemos que, dentro dessa sociedade em que ela está, ela vai ter dificuldades imensas, mas nós não estamos interessados no fracasso. Afinal de contas, é uma experiência nova em certos sentidos e seria bom que, pelo menos, se não puder realizar tudo aquilo que é um sonho para ela, ao menos possa mostrar ao povo que fez um grande esforço na direção de cumprir o mandato que recebeu. Quanto à segunda questão, [sobre] essa reunião do PT, eu estou tomando conhecimento pelos jornais. Ali, se diz que…
Marco Damiani: Preferencialmente, o PT quer um vice de fora do partido.
João Amazonas: …que o PT iria conversar com os outros partidos, discutir as questões da sucessão presidencial – o que, aliás, é um tema importante – e parece-me, assim, que o problema do vice etc… Eu acho que nós defendermos essa questão de uma unidade das forças de esquerda e pensamos que pode ser um grande passo adiante, essa questão. Quanto ao problema do vice, o problema é discutir… Nosso partido não está disputando vice-presidência da República. Nós entramos nessa questão da sucessão presidencial olhando mais alto ainda, vendo problemas mais importantes da vida brasileira do que nos prendemos a certas questões de interesses partidários muito limitados.
Marco Damiani: Vocês terão candidato próprio?
João Amazonas: Não; por enquanto, não temos nenhum. Nossa decisão, por enquanto, não é de ter candidato próprio.
Augusto Nunes: João Victor.
João Victor Strauss: É o seguinte. Na sua análise da economia, enfim, da organização política e econômica mundial, o senhor demonstra uma convicção forte de que o capitalismo está em decadência e que, mais dia, menos dia, essa situação vai passar por uma nova formação social e econômica acertar seus ponteiros. Eu não sei; a meu ver, os sintomas são exatamente no sentido contrário. Eu continuo vendo o capitalismo, pelo menos nos seus pontos de vanguarda, inovando, criando novas situações – enfim, avançando -; e vejo o pedaço do mundo que faz as experiências socialistas ou marxistas [União Soviética, Europa Oriental, China, Cuba e outros] com tantas dificuldades, fazendo revisões e adotando, inclusive, soluções, vamos dizer, capitalistas ou semicapitalistas. Eu pergunto ao senhor: por exemplo, as multinacionais têm uma força nova e surgiram já há muito tempo no mundo capitalista; não seriam, por acaso, talvez, o sinal mais evidente de que será do lado capitalista [que] se poderá ter uma nova formação social, pelo menos sem fronteiras – já que as multinacionais, pelo menos disso precisam, para se expandirem?
João Amazonas: Parece-me que essas formações econômicas e sociais têm que ser apreciadas desde os seus nascimentos, as suas produções e os períodos de declínio, porque todas elas passam por essas fases. O capitalismo não é eterno e, sem dúvida nenhuma, passará também por essa fase. Naturalmente, o capitalismo teve a sua fase progressista, a sua fase de contribuição para o avanço da sociedade humana, inegável beneficio, através da Revolução Francesa, da Revolução Americana [confronto dos estadunidenses, então colônia britânica, com a Inglaterra que resultou na sua independência em 1776]; e criou, como dizia Marx, verdadeiros monumentos – aquilo parecia inconcebível em períodos anteriores. Mas o capitalismo, depois, chegou em outra fase, e essa fase é a fase de monopólio – que é inevitável, é um processo natural de desenvolvimento do capitalismo. Essa fase do monopólio continua cada vez mais se acentuando. Já não é nem mesmo com aqueles cartéis do início da fase imperialista dessa nova fase; hoje são monopólios – quer dizer, o monopólio cada vez mais forte, cada vez maior. E isso, o que parece, com as multinacionais, é: quem sabe, não é essa a solução; quem sabe se isso se espalha pelo mundo inteiro… Nós sabemos muito bem o que significam as multinacionais; afinal de contas, são interesses de grandes monopólios estrangeiros que se implantam em outros países não para desenvolver a cultura, o bem-estar, o progresso desses países, mas, ao contrário, em conseqüência disso, a riqueza se concentra num pólo cada vez de volume maior e a miséria a pobreza se espalham por toda parte. Eu acho que você vê o capitalismo – permita-me -, eu acho que você o capitalismo, vamos dizer, do lado do sol. Por favor, vire um pouco e olhe para o lado da sombra da noite, para você ver o que é que é o capitalismo. São bilhões de pessoas marginalizadas na sociedade. O capitalismo hoje não faz senão resolver em um nível muito limitado uma parte, uma parcela cada vez menor da sociedade humana…
Augusto Nunes: Presidente…
João Amazonas: A massa, as grandes massas da população, se vêem sem trabalho, sem perspectiva de vida. E é por aí que devemos olhar, porque aí é que está, justamente, aquilo que, afinal de contas, acabará ajudando a enterrar e a procurar uma nova forma de organização.
João Victor Strauss: Quanto à…
Augusto Nunes: João, só antes… [interrompendo-se] O senhor queria complementar?
João Victor Strauss: Complementar. Eu perguntaria ao senhor: tudo bem, suponhamos que, enfim, o capitalismo esteja assim tão feio – não é, também, tão bonito como o senhor atribui a mim -; mas, eu pergunto: de qualquer forma, dentro do capitalismo surgem as multinacionais que, bem ou mal, são uma coisa nova e, enfim, podem significar alguma coisa em direção a algum lugar… Eu perguntaria: no lado socialista ou comunista ou marxista, que tipo de força equivalente, sei lá, que fenômeno de criação a gente poderia, eventualmente, apresentar e comparar com as multinacionais? O que está emergindo outro lado?
João Amazonas: Eu disse, a constituição do socialismo na União Soviética chegou a ir até a metade da década de 1950 e aí parou, depois de ter passado por fases muito duras, da guerra etc, e não pôde… Apesar de ter elevado a economia da União Soviética quase parelha à economia dos Estados Unidos, parou. Então, não há termos de comparação nesse crescimento, nesse avanço no socialismo a partir da década de 1950. Eu acho que essa organização chamada “multinacionais”, que são grandes monopólios, a gente não pode condená-las pura e simplesmente como uma forma superior de organização econômica da sociedade; mas elas, por si mesmas, encerram contradição, porque elas são o entrave ao desenvolvimento das forças produtivas por elas mesmas; elas levam a que a sociedade capitalista entre em uma situação contraditória que não pode resolver. Hoje, que papel desempenha fisicamente a burguesia na direção da economia de qualquer país? As grandes economias multinacionais, nem você sabe a quem elas pertencem em determinado momento, porque suas ações estão sempre em movimento, elas podem passar de mãos a cada instante. Aquele velho patrão que dirigia a economia, que orientava a sua empresa, esse desapareceu da cena. E eu lhe pergunto se são, realmente, pessoas indicadas pela burguesia para dirigir essas empresas, porque o Estado, o Estado revolucionário não pode fazer isso, colocar pessoas…
Izalco Sardenberg: Presidente…
João Amazonas: …e tirar. Só que o resultado disso é que o produto do trabalho, os lucros obtidos por aí, ao invés de irem para as mãos dos proprietários, dos donos, ele passa a servir aos interesses da sociedade, do seu conjunto.
Izalco Sardenberg: Presidente…
Augusto Nunes: Por favor, Izalco, antes de abrir a roda, eu queria encaminhar ao senhor uma pergunta da Miriam Sizer, do [bairro paulistano do] Bom Retiro. Ela pergunta se o senhor acha que o socialismo só pode ser alcançado passando-se pela luta armada. E eu queria aproveitar e também encaminhar ao senhor a pergunta de Aparecida Rosolem, da Penha. Ela pergunta por que o senhor estava ausente do Araguaia quando houve o ataque final à guerrilha [em 1974]. E aí eu acrescentaria uma pergunta minha: o senhor acha que a Guerrilha do Araguaia foi, historicamente, um acerto?
João Amazonas: Essa questão me deixou a primeira pergunta para o fim. Eu acho que esse problema do Araguaia, quem sabe, uma explicação… Eu já fiz isso muitas vezes. Eu fui para o Araguaia em 1968, convivi com os companheiros lá até 1972 e nós, dirigentes do partido, nós nos revezávamos constantemente na vinda a São Paulo, porque nós éramos, também, os principais dirigentes do partido. Tanto eu como o camarada [Maurício] Grabois [(1912-1973), morto numa emboscada] e o Ângelo Arroyo [(1928-1976), morto na Chacina da Lapa, na qual a casa onde se realizava uma reunião do Comitê Central do C do B foi fuzilada], durante todo o período em que estivemos lá, vínhamos constantemente a São Paulo para discutir com o Comitê Central os problemas de direção do partido. Maurício Grabois esteve em dezembro de 1971 e chegou em princípio de janeiro de 1972 no Araguaia. Chegou no Araguaia. Trabalhamos lá juntos durante alguns meses e ficou decidido que eu viria para uma reunião de comemoração do qüinquagésimo aniversário da fundação do partido, a 25 de março, em São Paulo. Por isso, eu saí do Araguaia para vir a uma reunião do Comitê Central. E, terminada a reunião e as questões que eu tinha que decidir em São Paulo, eu retornei ao Araguaia. Comprei passagem e, no caminho, já em Anápolis [GO], fui informado pela companheira Elza Monnerat [1913-2004], que também estava no Araguaia e que havia escapado, de que o Exército tinha atacado a guerrilha. De modo que foi eventual…
Augusto Nunes: Perfeito.
João Amazonas: …totalmente eventual eu não estar presente nesse acontecimento. E, agora…
Augusto Nunes: Foi um acerto histórico…?
João Amazonas: …se aquilo foi um acerto histórico. Eu acho que um povo que suporta uma ditadura terrorista como essa que nós vivemos no Brasil, que não permite, que mata a juventude por toda parte e que usa a violência mais cruel contra o povo, eu acho que esse povo, se não for capaz de se levantar, apesar da desigualdade das suas forças, para enfrentar o inimigo de frente, ele estaria dando uma prova de desfibramento. Eu acho que a guerrilha vai…
Augusto Nunes: Mas o povo não se levantou, presidente.
João Amazonas: Ah sim, mas o Araguaia representava, apesar de pequena, ela [a guerrilha] representava essa reação do povo brasileiro. E sempre, em todas as revoluções, em todos os movimentos, nunca é um país inteiro que se levanta; mas, no conteúdo, ela representava os brios da nação brasileira, que se erguia para fazer frente a uma ditadura sangrenta e terrorista que existia no Brasil. Eu acho que foi um acontecimento histórico e ficará marcado para sempre na história de nosso país. O próprio general Hugo de Abreu [(1916-1979), chefe do Gabinete Militar de 1974 a 1978], que foi um dos que também comandaram a luta das forças armadas contra os guerrilheiros, fez uma declaração antes de morrer, dizendo que a guerrilha do Araguaia era o acontecimento mais importante da luta popular no campo já existente na história do Brasil. Veja, assim, como ele próprio considerava…
Augusto Nunes: Sobre a última parte, antes de a roda ficar em aberto, da primeira parte da pergunta que eu fiz ao senhor, o senhor acha que a luta armada é a via pela qual passa necessariamente a construção do socialismo?
João Amazonas: Esse problema da luta armada sempre surge em todos os debates neste país…
Augusto Nunes: É compreensível.
João Amazonas: É compreensível, é compreensível. E, por falar nisso, eu acho, assim, que… você pergunta [sobre] a luta aramada dos comunistas, a luta armada para passar para o socialismo etc.; mas nós estamos assistindo, também, em Brasília, a luta armada. Quando o Exército ataca e mata três operários simplesmente porque haviam feito greve em Volta Redonda, é luta armada contra o povo. Quando quase mil camponeses nestes últimos anos têm sido massacrados por pistoleiros, jagunços e até mesmo por latifundiários, isso também é luta armada contra o povo. Essa luta está permanentemente em ação, não é verdade?
José Américo Câmera: Presidente. Posso apresentar uma pergunta?
Augusto Nunes: Só que não foi respondida ainda a sobre…
João Amazonas: Eu vou responder. Não sei se isso acrescentava alguma coisa sobre a sua pergunta, mas eu penso assim. Do ponto de vista teórico, não se conhece um exemplo em que a humanidade seja repassada de um sistema, de uma formação econômica e social a outra sem a violência revolucionária. Esse é um fato histórico que não se pode negar, não é verdade? Pode-se perguntar: “bom, isso significa, então, que a passagem do capitalismo para o socialismo implicaria na violência revolucionária.” Eu queria só antecipar que a violência revolucionária não nasce por ela mesma, como se procura apresentar; a violência revolucionária não é senão uma resposta à violência contra-revolucionária. Quem começa é a reação, é a violência contra-revolucionária. Os povos têm que se levantar e usar dos mesmos instrumentos para poderem se defender e para poder fazer valer os seus direitos…
José Américo Câmera: Então, porque o PC do B está a sério no processo eleitoral?
Augusto Nunes: É, a inscrição é livre, agora. Viu, Natali? À vontade.
José Américo Câmera: Por que o PC do B participa do processo eleitoral?
João Amazonas: Você imagina, você imagina que a gente veja a história assim: os comunistas existiriam para se preparar para uma revolução que eles não sabem quando vai acontecer… Que papel jogariam eles na sociedade? A luta, a luta revolucionária dos povos é uma luta de mil faces: ela é luta eleitoral, ela é luta grevista, ela é luta cultural, ela é luta social; enfim, ela tem mil e um aspectos. Tudo isso faz parte da mesma grande batalha de conscientizar o povo de uma…
José Américo Câmera: Mas a eleição é uma evolução ou não?
João Amazonas: Eu acho que é uma forma de luta democrática no país; por que não?
João Batista Natali: Deputado, se a gente for levar realmente em conta o desempenho eleitoral e… me perdoe mais uma vez, você sabe que me sinto profundamente constrangido de contestar um pedaço da história da esquerda brasileira, que o senhor está representando essa noite. O PC do B elegeu vereadores em 12 capitais e não elegeu nenhum prefeito, contrariamente ao que ocorreu em 1982, quando foi eleito um prefeito no estado da Bahia. Existe um evidente retrocesso dentro da perspectiva eleitoral, que pode funcionar, eventualmente, como um termômetro da aceitação das idéias desse partido que quer ser ou deseja ser a vanguarda da classe operária e da classe dos camponeses do Brasil. Então, o senhor não acha que existe uma espécie de imenso, incontestável anacronismo no fato, por exemplo, de o seu partido se referir, como o senhor já fez três ou quatro vezes, ao retrocesso que representou o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética – ou seja, justamente às críticas que foram formuladas pelo Nikita Khrushchev ao stalinismo? Ou seja, esse apego ao stalinismo que não está sendo aceito pela classe operária brasileira, o senhor não acha que hoje em dia está contra…
Augusto Nunes: Por favor, Natali…
João Batista Natali: Pois não. [continuando] …contra a direção da história?
João Amazonas: Fala-se em um stalinismo para o Brasil e etc… Eu acho que isso é forçar a mão, não é verdade? Eu acho e já disse aqui que nós nos apoiamos no marxismo e no leninismo e procuramos aplicá-los à realidade de nosso país; e considero que luta de classes não toma uma forma só, a luta de classe tem mil faces. E o Partido Comunista, como representante das idéias avançadas da sociedade, tem que participar, desde levando em conta o próprio nível de consciência do povo das diferentes classes sociais, ele deve participar de tudo isso, com o objetivo de ajudar a conscientizar a população. Nós estamos convencidos de que o dia em que os trabalhadores e os povos de todo mundo tiverem clareza sobre o tipo de sociedade em que eles vivem, eles acabarão seguindo o Partido Comunista.
Kleber de Almeida: Deputado…
Augusto Nunes: Por favor, ô Kleber, nós precisamos agora fazer um ligeiro intervalo. Se o presidente completou a resposta, podemos ir para o intervalo.
João Amazonas: Podemos ir para o intervalo.
Augusto Nunes: Roda Viva, com o presidente nacional do PC do B, Partido Comunista do Brasil, João Amazonas, volta já, já.
[intervalo]
Augusto Nunes: Retomamos aqui a entrevista com o presidente nacional do Partido Comunista do Brasil, PC do B, João Amazonas. Presidente, antes de passar a palavra aos nossos entrevistadores vou fazer algumas perguntas encaminhadas pelos telespectadores. Eu gostaria que o senhor desse respostas, se possível, curtas, porque são quatro perguntas. Mauro Carneiro, de Curitiba, Paraná, observa que, no início do programa, o senhor afirmou que nunca houve, no Brasil, democracia plena; ele pergunta em que país comunista é praticada plenamente a democracia com respeito total aos direitos humanos a que se referiu o Rodolfo Konder.
[três segundos de silêncio]
Augusto Nunes: O senhor pode responder e, em seguida, eu faço a outra pergunta.
João Amazonas: Eu acho, assim, que hoje, no mundo de hoje, as liberdades democráticas resistiram durante certo ponto em alguns países. Na própria Revolução Francesa, depois de 1793 e depois de vencer as contra-revoluções que apareceram, havia, efetivamente, uma democracia ampla nos países [aos quais a Revolução se espalhou]. Mas eu acho que o capitalismo, quando entra na fase dos monopólios e passa à decomposição, a reação em toda linha [passa a ser] a sua orientação. Essa democracia, hoje, não se encontra em parte nenhuma, de modo que lutar pela liberdade plena é a aspiração do povo, mas que se choca com os interesses de classe da sociedade brasileira.
Augusto Nunes: Eu vou juntar as duas outras perguntas em uma só. O João Marcos Flacker, do [bairro paulistano de] Cerqueira Cézar, e o Luís Ruibert, de Cerqueira Cezar também, perguntam… Não, são perguntas diferentes que eu faço de uma vez. João Marcos Flacker quer saber se o senhor acha que existe respeito aos direitos humanos em Cuba. E Luís Ruibert, de Cerqueira Cézar, pergunta se o senhor acha que houve respeito aos direitos humanos no período stalinista.
João Amazonas: Diria que… Primeiro, [sobre] o problema da Revolução Cubana. Estive em Cuba uma vez em maio de 1962. Não acompanhei, nesse processo de Cuba… Não vejo que esteja em condições de poder responder em que medidas esses direitos humanos são defendidos ou não….
Augusto Nunes: Sobre o período stalinista…?
João Amazonas: Sobre o período stalinista, sim, uma montanha de infâmias, de mentiras, de distorções da realidade histórica…
João Victor Strauss: E algumas montanhas de cadáveres, também, não é deputado?
João Amazonas: Eu ouvi dizer isso. “Algumas”, que o imperialismo matou, não é? Só na guerra [principalmente na Segunda Guerra Mundial], se perderam vinte milhões defendendo a revolução socialista na Rússia. De modo que eu penso que um dia, quando nós tivermos acesso aos arquivos secretos da União Soviética, quando houver uma abertura efetiva do regime socialista na União soviética, talvez esses programas possam ser melhor estudados e melhor situados no seu tempo.
[sobreposição de vozes]
Izalco Sardenberg: Presidente, o senhor acha… Com licença um pouquinho, porque eu acho que combina com essa questão dele…
Augusto Nunes: Depois, o Kleber Almeida quer fazer uma pergunta. Izalco Sardenberg.
Izalco Sardenberg: O senhor acha, efetivamente, que todas essas denúncias com historiadores, testemunhas, perseguições, assassinatos no regime stalinista são calúnias, são infâmias, nada corresponderia à verdade?
João Amazonas: […], os tais historiadores etc, todos eles abandonaram o caminho do socialismo, todos eles voltaram ao regime do capitalismo.
Izalco Sardenberg: Mas só por isso estariam mentindo, eles?
João Amazonas: Depende da ótica. Se você vê por uma ótica capitalista, os acontecimentos ocorridos na União Soviética têm um certo sentido; se você vê de uma ótica progressista, de uma ótica revolucionária, eles podem ser enfocados de outra maneira. De modo que esse é um problema histórico que não se decide assim com “sim” ou “não”…
João Victor Strauss: Os genocídios dos nazistas, presidente, estão historicamente comprovados ou também há duvida sobre…
João Amazonas: O genocídio nazista? Eu acho que está absolutamente comprovado, no Tribunal de Nuremberg [tribunal militar internacional onde foram julgados os primeiros criminosos de guerra da Segunda Guerra Mundial, em novembro de 1945, na cidade alemã de Nuremberg], que chegou a fazer afirmações categóricas a esse respeito, e o fato de que se massacraram povos por toda parte da Europa e por onde passaram as tropas nazistas é uma demonstração…
Augusto Nunes: Mas o tribunal capitalista, presidente. Por que ele pode ser justo com a Alemanha e injusto com a União Soviética?
João Amazonas: Ele não era só um tribunal, não era só um tribunal capitalista. Ele estava sob influência, já, da vitória sobre o nazismo e representava, em certo sentido, forças mais amplas.
Augusto Nunes: Mas o senhor nega que a hegemonia estivesse com os países capitalistas em Nuremberg?
João Amazonas: É possível, é possível.
Rodolfo Konder: Presidente, mas quem faz, veja bem, quem faz essas denúncias também são os dirigentes comunistas dos países onde houve esses crimes. Então, no caso, por exemplo, o Nikita Khrushchov era secretário-geral do Partido Comunista soviético e fez a denúncia dos crimes do Estado. Essa denúncia foi corroborada pelo Partido Comunista da União Soviética – quer dizer, não foi uma coisa pessoal dele. Mais tarde, esse assunto voltou à tona e foi objeto de novas denúncias. Quer dizer, eu acho estranho que ainda haja no mundo pessoas que neguem que o stalinismo cometeu diversos crimes. Poderia até ter uma razão que o senhor historicamente considerasse justa; mas, na verdade, o fato de que ele violou direitos, prendeu pessoas inocentes, matou pessoas, mandou assassinar adversários políticos, esses fatos são fatos denunciados inclusive pelo Partido Comunista soviético, não pelo secretário-geral, apenas; foi um congresso do Partido Comunista soviético que denunciou. Agora, eu usaria isso como um pretexto para lhe fazer uma pergunta no seguinte sentido: se o senhor, por exemplo, amanhã chegasse ao poder no Brasil e tivesse um projeto para a sociedade brasileira, como o senhor trataria as minorias que estivessem em desacordo com o seu projeto? O senhor trataria como Stálin [(1878-1853), chefe de Estado da União Soviética de 1922 a 1953] os tratou na União Soviética, isto é, a ferro e fogo, ou o senhor, expressando as tendências mais modernas da democracia, seja socialista, seja capitalista, seria capaz de respeitar os direitos dessas minorias?
João Victor Strauss: Só complementando: o senhor, por exemplo, admitiria a hipótese de eleições com vários partidos, inclusive um partido burguês que admitisse a hipótese de luta armada para chegar ao poder [mas] disputando eleições?
João Batista Natali: Quando o próprio Partido Comunista Brasileiro…
Augusto Nunes: Por favor, eu pediria que o presidente pudesse responder, senão as perguntas serão muitas.
João Amazonas: Muito bem, mas me diga uma coisa: eu poderia ligar esses fatos todos a uma outra questão. Vamos discutir a situação nacional…
[…]: Sem dúvida.
João Amazonas: …a questão nacional, porque ela acaba abordando essa pergunta ultimamente formulada aqui, [sobre] como se tratariam, se nós chegássemos ao poder, questões dessa natureza…
Kleber de Almeida: Deputado, então eu pergunto ao senhor o seguinte: o senhor sempre diz “novos comunistas”. Como o Natali falou agora, existe outro partido comunista no Brasil [o Partido Comunista Brasileiro, PCB] que, aliás, tem um candidato à presidência da República… [Roberto Freire]
João Amazonas: Um só? Existem vários.
Kleber de Almeida: Sim, claro…
João Amazonas: Vários!
Kleber de Almeida: …só que os outros estão no PT. Eu estou falando só que são…
João Amazonas: Não, não é só no PT, não; existem vários partidos com nome de comunista! PCML [Partido Comunista Marxista-Leninista], PCR [Partido Comunista Revolucionário], PC não sei o quê, uma quantidade deles.
Kleber de Almeida: Então está bom; então, quando o senhor se refere aos comunistas, está se referindo a todos ou só ao partido do senhor? E por que, por extensão…
Augusto Nunes: Mas, por favor, Kleber, eu queria que… nós vamos discutir a sucessão presidencial e qual é a estratégia do PC do B para chegar ao poder.
Kleber de Almeida: E qual a diferença…
Augusto Nunes: Agora, é muito importante que se façam perguntas como essas, porque é uma maneira pela qual os nossos telespectadores vão saber qual é o pensamento do PC do B.
João Amazonas: Muito bem, muito bem!
Kleber de Almeida: Então, digamos: por que o partido do senhor não apóia a candidatura do deputado comunista Roberto Freire à presidência da República?
João Amazonas: Olha aí a pergunta. Também é comunista, não é comunista? Eu já disse, existem uns cinco partidos comunistas no Brasil. Eu diria que…
Rodolfo Konder: Mas eu queria voltar à minha pergunta, quer dizer, como que o senhor, chegando ao poder no Brasil…
João Amazonas: Eu vou ligar essa pergunta – não se importe, que eu respondo a sua pergunta -, mas eu vou ligar esse problema à situação nacional, ao que nós pretendemos na situação nacional. Eu acho que hoje, tomando a palavra sobre o assunto, nós vivemos um momento de grande importância no nosso país. Depois de 29 anos em que o povo brasileiro não pôde escolher ao votar no presidente da República, passa uma grande expectativa no país em torno das eleições deste ano [eram as primeiras eleições diretas para presidente desde 1960]. Penso, também, que essas eleições se realizam dentro de uma determinada situação, bastante diferente das de épocas anteriores: essas eleições se dão dentro de uma crise profunda, uma crise que exige soluções de conteúdo mais avançado do que se possa imaginar. Eu vejo a situação do Brasil, esse Brasil que tem hoje 30 milhões de analfabetos, que tem 60 milhões de brasileiros infectados pela tuberculose e 500 milhões tuberculosos, que tem de 12 a 15 milhões de menores abandonados e que tem 20 milhões de brasileiros sem teto, e eu pergunto: que realidade é essa que nós estamos vivendo? Porque essa sucessão [presidencial] deveria responder como se vai enfrentar a crise que nós estamos vivendo; e o contraste que se forma disso tudo. O contraste é que o Brasil produz grãos cientificamente comprovados por estudiosos, como o professor [José Walter] Bautista Vidal [um dos idealizadores do motor a álcool brasileiro], o Brasil produz grãos que exporta, capazes de alimentar 400 milhões de pessoas, e tem 40 milhões de famintos no seu próprio país. Quer dizer, o contraste é chocante, porque nós temos também, hoje, grandes fortunas no nosso país, grandes ricos que usam e abusam da fortuna que possuem, não é verdade? Nós, então, dentro dessa situação, somos chamados a ver que essas eleições têm um caráter diferente. E parece, assim, que nós vivemos o momento de uma profunda crise, crise que todo mundo aceita – eu não conheço político e nem jornalista que seja capaz de negar a existência de uma crise profunda no Brasil -, só que essa crise não pode ser encarada unicamente do ponto de vista conjuntural: isso é uma crise política, social, econômica, cultural, moral – essa é uma crise estrutural na sociedade brasileira. Por isso, a nossa opinião, quando encaramos o problema da sucessão presidencial, é que nós deveríamos marchar nessa sucessão presidencial levando em conta essa exigência objetiva da sociedade brasileira. Nós estamos vivendo, sem dúvida nenhuma, alguma coisa que se parece com 1930 [referência à conjuntura imediatamente anterior à Revolução de 1930] em um parâmetro muito mais alto. Em 1930, a sociedade exigia a remoção daqueles obstáculos que impediam o desenvolvimento da nação e um novo projeto nacional. Isso foi realizado pelo Getúlio [Vargas (1882-1954), líder da Revolução de 1930 e presidente do Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954] – com suas limitações, mal ou bem. Nós chegamos ao esgotamento de tudo isso. Essas classes dominantes, as elites dirigentes do Brasil, não têm absolutamente nada para oferecer como projeto novo…
Augusto Nunes: Mas o que fazer, então, diante disso, presidente? O senhor está fazendo um diagnóstico…
João Amazonas: …um projeto que não tem nada para apresentar. E o Brasil exige isso! O Brasil exige e disso devemos tomar consciência.
Augusto Nunes: Mas qual é a proposta do PC do B?
João Amazonas: A nossa proposta é de que, na sucessão presidencial, nós possamos fazer um movimento cívico de grandeza, um grande movimento que abarque os partidos de esquerda, os partidos populares e que agregue a ele personalidades políticas independentes em nosso país…
Augusto Nunes: Seria uma frente de esquerda?
João Amazonas: …lideranças… Uma ampla frente, um movimento patriótico, um movimento democrático, um movimento de soluções para a crise que o país atravessa. E essa…
Augusto Nunes: Agora, o senhor tem vários candidatos postos à esquerda, presidente. Qual seria o melhor nome para essa frente?
João Amazonas: Nós pensamos, assim: que essa primeira fase da nossa batalha tem sido no sentido de se plantar a idéia de que se precisa criar um movimento. Essa opinião de que cada um vai ao primeiro turno individualmente e que se faz aliança no segundo, isso aí é um erro clássico que se podia cometer nas eleições.
Augusto Nunes: O senhor defende alianças já no primeiro turno?
João Amazonas: Eu acho! Porque o segundo turno vai ser decidido é no primeiro, não é no segundo. É preciso fazer as alianças desde agora. Eu acho, por isso, que a aliança que nós pretendemos não devia ter simplesmente uma finalidade eleitoral. Na minha opinião, devia ser um pouco mais avançada. Esse movimento é necessário não somente para enfrentar as forças de direita sem perspectivas e que lançaram o país em um abismo, como é necessário também para sustentar um novo governo que surja no nosso país e para vencer as investidas das reações que, sem dúvida nenhuma, virão, nesse processo da própria luta eleitoral.
Izalco Sardenberg: Presidente, o senhor falou que as classes dirigentes, as elites existente no país, estão atuando do mesmo modo pelos mesmos programas. Eu pergunto ao senhor: as esquerdas também não estão fazendo as mesmas propostas que faziam antigamente? [Havia a] antiga frente ampla de que se falava antes; agora está propondo outra vez uma frente ampla das esquerdas… Não é uma velha proposta, essa?
João Amazonas: Não, aí que está: pode ser velha na forma, mas é nova no conteúdo. O que nós pretendemos é uma frente que, de fato, trouxesse uma bandeira de renovação, uma plataforma progressista para ser debatida com o nosso povo e sustentada pelas grandes massas da população brasileira.
[…]: Agora, presidente…
João Amazonas: Nesse sentido, ela tem um conteúdo novo, não é simplesmente ter uma formação de uma frente de esquerda.
Augusto Nunes: Antes de insistir na pergunta do Rodolfo Konder, o senhor não pode esquecer isso, eu perguntaria o seguinte. Nós estamos a poucos meses da eleição e insisto: as candidaturas estão postas. Então, para que nós fixemos em dois nomes, dos mais fortes que me parecem à esquerda, Leonel Brizola e Lula, qual deles seria o melhor candidato para que essa frente se viabilize? O senhor vai ter que discutir nomes.
João Amazonas: Eu acho que essa frente teria que se formar com um candidato único, candidato de oposição único, sem dúvida nenhuma. E, se a gente analisa objetivamente o quadro eleitoral do Brasil… nós vimos que 15 de novembro [de 1988, quando ocorreram eleições municipais] mostrou uma situação em que a direita ficou nas posições em que estava, a esquerda avançou e o centro, o centro afundou. O centro é justamente esse elemento de estabilidade do regime relativamente democrático para a manutenção da chamada ordem vigente. De maneira que a direita, hoje, faz um esforço para não aparecer como direita propriamente dita; ela se esforça para procurar reconstruir o centro, para encontrar um candidato de centro que pudesse trazer uma bandeira nova para o povo brasileiro. Mas não encontra. Há uma quantidade enorme de candidatura que aparecem e desaparecem, porque elas não têm nada de novo para apresentar.
Augusto Nunes: [fala junto com João Amazonas] Só para completar […]
João Amazonas: […] Agora, quanto à esquerda, sem dúvida nenhuma, na esquerda apareceram duas candidaturas. Que eu considero também irremovíveis; tanto a candidatura do Brizola como a candidatura do Lula são definitivas.
Augusto Nunes: Mas isso viabiliza a aliança no primeiro turno.
João Amazonas: Como está, nós temos que chegar a uma conclusão sobre esse problema. E eu acho que, se surge um movimento… e nós devíamos nos esforçar para chegarmos a um candidato único desse movimento. Se não se chega, o que vai acontecer é que o outro candidato de esquerda acaba, pouco a pouco, marchando do sentido do centro. Não tem espaço no Brasil para ficarem se digladiando dois candidatos de esquerda. A opinião que eu tenho é que…
José Américo Câmera: Pelo o que o senhor está falando, o senhor acha que, se a esquerda for com dois ou três candidatos – porque o Roberto Freire é candidato também -, há possibilidade de a esquerda não eleger ninguém para o segundo turno, já que vai estar dividida?
João Amazonas: Simplesmente, eu acho que tem, de fato, uma candidatura; a candidatura do Roberto Freire foi lançada etc, cada partido tem o direito de lançar o seu candidato; mas eu acho que tem uma incompreensão da situação política em que nós vivemos. E, em certo sentido, é uma tentativa de dividir as esquerdas, essa candidatura do Freire. Não tem futuro nenhum, não vai muito adiante. Não vai muito adiante. Penso que o problema do Brizola – que, sem dúvida nenhuma, teve uma trajetória democrática a partir de 1961 até o golpe de 1964 [que instituiu a ditadura militar], ninguém pode negar isso, não é verdade? -, essa candidatura do Brizola se situa em uma faixa em que insiste em ser de esquerda mas, ao mesmo tempo, fazendo declarações, como a que publicou o Jornal do Brasil que o Brizola havia dito: “O petróleo é nosso, mas a direita também é nossa”. Quer dizer, isso retrata bem que ele pretende fazer um leque de forças que vai da direita à esquerda. E eu acho que dentro desse mingau baiano não vai caber um bom apetite de quem quer, realmente…
José Américo Câmera: Quer dizer que a gente pode deduzir que o PC do B está com o Lula, é isso?
João Amazonas: Não confirmei até agora isso, mas eu acho que a candidatura do Lula, dentro desse quadro que está aí, é a que tem maior expressão popular. E tudo vai se resumir, primeiro, em que se pudesse chegar… e isso, a reunião do PT acaba de declarar hoje pelos jornais, na Folha: que chegaram a essa conclusão, uma coligação de amplas forças. Isso é uma boa notícia. Se se chegar, de fato, a criar essa organização, eu acho que ela deve ser não somente uma força: o seu núcleo deve ser de esquerda, deve ser popular; mas é preciso a gente agregar outros setores progressistas da sociedade brasileira.
[sobreposição de vozes]
Augusto Nunes: Depois, eu gostaria de recolocar a pergunta do Rodolfo. Vários telespectadores estão…
João Amazonas: Eu chego lá, então. Eu chego lá para responder a pergunta.
[sobreposição de vozes]
Augusto Nunes: Natali, diga.
João Batista Natali: O deputado Roberto Freire disse, há cerca de um mês, quando lançou a sua candidatura aqui em São Paulo, no congresso em São Paulo, que o PCB procurava lançar candidato próprio porque não desejava se transformar em sublegenda do PT. O PC do B não correria exatamente o mesmo risco, com essa estratégia?
João Amazonas: Não, aí é que está a questão. Não se trata de [ser] sublegenda de PT; o que se quer criar é um movimento, um movimento amplo dessas forças, que tivesse comando próprio, que tivesse tempo de televisão próprio e cujos partidos não perdessem de nenhuma forma – os partidos coligados – a sua própria fisionomia e defendessem os próprios programas. De modo que não se trata de ser sublegenda do PT, trata-se de reunir forças em torno de um candidato, que efetivamente será de um partido – porque não pode deixar de ser, não é verdade? -, mas esse candidato não seria, nessa coligação, o candidato exclusivo do PT, ele passaria a ser candidato de um movimento de grande dimensão no país. Agora, respondendo a pergunta do…
Rodolfo Konder: Eu vou até formular novamente, porque, nesta altura, os telespectadores até já esqueceram…
João Amazonas: Não, não, eu já…
Rodolfo Konder: O senhor tem uma excelente memória, mas os telespectadores…
Augusto Nunes: Mas os telespectadores podem ter esquecido. Por favor.
Rodolfo Konder: Eu vou reformular a pergunta da seguinte maneira. Vamos dizer que essa frente se materialize…
João Amazonas: Sim, isso, precisamente.
Rodolfo Konder: …e vamos dizer que ela ganhe a eleição. Nesse caso, o PC do B integraria um novo bloco político com o poder nas mãos. Qual seria o compromisso do PC do B, em nome do qual o senhor fala aqui – quer dizer, com os direitos das minorias e com o pluralismo -, se o PC do B chegar ao poder?
João Amazonas: Precisamente; ia chegar nessa questão. Eu acho que nós temos que elaborar uma plataforma – uma plataforma política, uma plataforma econômica e uma plataforma das mudanças mais profundas da sociedade brasileira. Não pode ser esse velho programa de água morna que se apresenta por aí, sem perspectiva nenhuma. É preciso enfrentar a realidade histórica objetiva que se coloca diante de nosso povo. Nós não estamos querendo inventar nada de diferente para apresentar na batalha eleitoral; nós queremos traduzir a realidade do nosso país e as exigências objetivas, que faz a sociedade brasileira, de mudanças, assim como se fez em 1930 – e digo, em um parâmetro mais alto. Nós temos que elaborar, sem dúvida alguma, uma plataforma ampla nesse terreno; e essa plataforma não pode deixar de ser uma plataforma democrática, essa plataforma tem que responder aos problemas da liberdade, aos problemas dos direitos, dos direitos humanos no Brasil, tem que responder ao problema da defesa de uma economia independente na nossa pátria, tem que defender o avanço da universidade para cumprir o seu papel na nossa terra; ela tem, afinal, que enfrentar os problemas básicos da sociedade. E, entre eles, nós temos, sem dúvida nenhuma, esse problema da dívida externa, que todo mundo hoje, os outros candidatos todos, procuram… Alguns deles chegam a acenar com a possibilidade de uma negociação em novos termos, mas, na realidade, não é possível que o Brasil continue a ser espoliado brutalmente e passe fome. Eu vi o presidente Tancredo [Neves (1910-1985), o primeiro presidente pós-regime militar, mas que faleceu antes de tomar posse] declarar que a dívida externa não seria paga com a fome do povo. Ela está sendo paga com a fome e o sangue de nosso povo.
Augusto Nunes: O PC do B decretaria a moratória, presidente?
João Amazonas: Esse problema de moratória também é uma questão técnica…
Augusto Nunes: Então, por outra: não pagaria a dívida?
João Amazonas: Eu acho que não se deve pagar a dívida, porque nós já pagamos. Você sabe que, de 1983 a 1987, o Brasil pagou 60 bilhões em juros de uma dívida, então, de 100 milhões [na verdade, pouco mais de 100 bilhões]. E, quando completamos esse pagamento, nós devemos muito mais ainda do que devíamos antes. Esse é um saco sem fundo em que o Brasil, o povo brasileiro, é explorado.
Hugo Studart: Professor…
Augusto Nunes: Ô Hugo, agora, só… Assim, o senhor detalhando o programa, então chegamos às minorias. Como é que elas seriam tratadas?
João Amazonas: Agora, vamos entrar… eu digo que esse programa tem que enfrentar todas essas questões…
Augusto Nunes: Perfeito.
João Amazonas: …que são questões que estão colocadas aí..
Augusto Nunes: Perfeito.
João Amazonas: Não é que a gente queira brigar com esse ou com aquele; nós devemos realizar aquelas tarefas que, objetivamente, estão colocadas diante de nós e é a isso a que nós nos propomos. Então, essa plataforma, como eu disse, tem que ser uma plataforma democrática – respondo a pergunta dele -, tem que ser uma plataforma democrática, tem que respeitar as liberdades democráticas; ela tem que defender, dentro desse contexto democrático, um novo regime, uma nova sociedade. Se essa gente, mais tarde, se levanta… e as ameaças de golpe estão presentes; acabou o irmão do presidente Figueiredo [Euclides Figueiredo, irmão do presidente João Batista de Oliveira Figueiredo (1918-1999), presidente de 1979 a 1985] de dizer que “isso aí, qualquer badernazinha, a gente pode novamente virar a mesa”, não é? Se predominam concepções dessa natureza, o povo brasileiro tem que decidir essa questão de outra forma. Eu esperaria que, no nível em que vive hoje o povo brasileiro, essas questões pudessem ser colocadas, dependendo de uma grande mobilização de massa, como fator de pressão importante para realmente concretizar a vitória obtida nas urnas.
Augusto Nunes: Desculpa interromper. Hugo.
Hugo Studart: Senhor Amazonas, o senhor não acha que essa chegada da frente de esquerda ao poder – e há uma possibilidade concreta no ano que vem – daria para iniciar uma revolução socialista no Brasil, poderia deflagrar uma revolução socialista?
João Amazonas: Não penso… Eu não quero me adiantar, historicamente, em relação àquilo que possa vir depois. Tenho a impressão de que esse acontecimento, se nós tornarmos vitorioso esse acontecimento, ele será uma vitória do povo brasileiro. Do povo brasileiro em uma faixa relativamente democrática.
Hugo Studart: Seria o momento de avançar rumo ao socialismo?
João Amazonas: Em uma faixa democrática, em uma faixa patriótica. É dentro dessa faixa que realizaria, vamos assim dizer, a concretização dos objetivos projetados. Não posso dizer que daqui nós passamos para o socialismo. O socialismo é uma revolução que teria que ser feita pelas grandes massas do nosso povo. Essa questão de que um grupo de conspiradores faz uma revolução socialista, isso é uma coisa que não tem nenhum fundamento na história e nem na teoria revolucionária.
[sobreposição de vozes]
Hugo Studart: Só uma segunda questão sobre esse tema. O senhor disse que o PC do B está preparado para várias facetas da revolução, várias facetas para a luta do socialismo – como, por exemplo, o voto; como por exemplo, a luta armada. Eu pergunto ao senhor: hoje, o PC do B está preparado para a luta armada?
João Amazonas: Amigo, eu digo isso porque não sei por que caminhos, por que caminhos marchará este imenso país para sair do atraso em que se encontra, das dificuldades que enfrenta, dessa degradação crescente da sociedade brasileira. Eu não sei por que caminhos nós passaremos. E esses caminhos são criados por fatores que não dependem só de nós e nem tampouco de determinados grupos; é do conjunto da sociedade.
Hugo Studart: Você está se preparando para a possibilidade da existência desse caminho? Ou seja, recentemente, o PT expulsou um professor de suas fileiras, que teria levado alguns estudantes à Líbia para fazer um curso de guerrilha, um curso de luta armada; e, com isso, o PT tirou de vez, deixou bem claro para a sociedade, para a opinião pública, que o caminho da luta armada não é o caminho do PT. Eu pergunto o seguinte: o PC do B está preparado, o PC do B tem militantes que estão se preparando para luta armada?
João Amazonas: Essa idéia de que os militantes e o partido devem, eles, se prepararem para fazer a revolução… Eu insisto: a revolução socialista é uma coisa que tem que ser feita pelo povo, pelos oprimidos e explorados, por milhões e milhões de pessoas e não por um grupo, por um partido só. De modo que, se esse partido trata as questões de luta armada, de preparar seus militantes em uma luta armada, ele trai um pouco uma atividade de seita, e não uma atividade política maior, mais ampla, que institua as questões em um ponto de vista científico.
[sobreposição de vozes]
Rodolfo Konder: Eu levanto uma questão bem concreta, porque eu acho que a questão das minorias, tratada em abstrato, é sempre fácil da gente resolver, não é? Quer dizer, nós vamos respeitar os direitos das minorias em uma sociedade plural etc. Agora, e se as pessoas quiserem se organizar e manifestar pacificamente opiniões contrárias ao governo de que o PC do B estaria participando? Eu digo isso porque tenho documentos, estudos e trabalhos feitos pela Anistia Internacional, que mostram que, nos países socialistas, infelizmente, esses direitos não são respeitados. Na Albânia, por exemplo, as pessoas são detidas por expressar pacificamente a sua opinião. Então, eu queria saber o seguinte: o seu compromisso, o compromisso do PC do B, seria de respeitar as pessoas que se manifestassem pacificamente contra as opiniões oficiais?
João Amazonas: É que, você vê, você já situa em termos de socialismo, e eu acho que o que nós pretendemos realizar no Brasil não é socialismo. Eu acho que isso aqui, nós estamos lutando para conseguir…
Augusto Nunes: Sim, mas, deputado, para conhecer o pensamento do partido, imaginemos o PC do B no poder, imaginemos.
[…]: O General Euclides…
Augusto Nunes: Como é que se comportaria em relação às minorias? E, mais concretamente, o PC do B faria eleições; mas o PC do B renunciaria ao regime de partido único? Então, são questões concretas. O que o PC do B faria?
João Amazonas: São problemas circunstanciais. Nós temos que vê-los de acordo com a realidade criada em cada momento. Aqui, se falou muito… insisto nisso: esse movimento democrático de esquerda que se pretende levar a cabo no Brasil não tem fins socialistas. Não tem fins socialistas. Seria um governo democrático e popular, nada mais do que isso, um governo democrático e popular. Respeitaria o direito das minorias ou coisas parecidas, é evidente. Esse governo tem que ter uma plataforma democrática, esse governo tem que admitir os adversários, desde que eles não empunhassem, não usem a violência para derrubar o poder que se houvesse constituído expressão da maioria da população. Se não, o regime, o novo governo teria que se defender. Mas eu acho que, como base, nós vivemos uma fase, no Brasil, em que a questão da liberdade é essencial. É essencial para permitir a ampla organização do povo, é essencial para a conscientização do povo, é essencial para o confronto de idéias. Não se pode fazer isso cerceando o direito que os outros manifestam em suas opiniões. Eu acho que a fase em que nós vivemos tem que ser desse tipo. É preciso contestar, é preciso discutir esse direito que, muitas vezes, nós não temos. Eu, por exemplo, agradeço que a TV Cultura tenha me convidado para participar de um programa dessa natureza, mas o meu partido sempre foi discriminado, digamos assim, nesse meio de comunicação importante que é a televisão. Nas últimas eleições, por exemplo, para defender nossas idéias, nós tínhamos 46 segundos por dia e o partido do [Orestes] Quércia [governador de São Paulo pelo PMDB de 1987 a 1991] tinha 2080 segundos por dia. Na maneira que, no Brasil, trata-se é de permitir uma ampla discussão. E eu acho que essa discussão não será ruim para a democracia.
[sobreposição de vozes]
Augusto Nunes: Por favor, Hugo. Natali.
João Batista Natali: Apesar dessa profissão de fé… [hesita]
Augusto Nunes: Democrática.
João Batista Natali: …democrática e daquilo que se poderia chamar, dentro de jargão da esquerda, de “frentista” – o que eu acho bastante notável por parte do PC do B, que, normalmente, no momento, foi bastante avesso a esse tipo de coisa -, eu gostaria de fazer uma pergunta para o senhor. Se, além de político, o senhor fosse dicionarista, como o senhor definiria a palavra “dogmatismo”?
João Amazonas: A palavra…?
João Batista Natali: Dogmatismo.
João Amazonas: Ela por si mesma se define, porque dogmatismo é transformar em uma espécie de religião, em alguma coisa rígida, não é? Isso é um dogma: aquilo está estabelecido e aquilo é até o fim. Agora, o marxismo, para nós, não é dogma, é uma ciência; e a ciência, nós temos que trabalhar com a própria evolução. O marxismo não é acabado. Marx mesmo dizia, Lênin dizia, que Marx e Engels não fizeram mais do que assentar as pedras angulares da nova ciência social que surgia. Ela vai sendo construída no futuro, não é verdade? De modo que não pode… dogma é uma coisa má, não se pode partir de posições dogmáticas. E devo dizer aqui, com toda a franqueza, que nosso partido, também, que tem 67 anos de existência, muitas vezes, na sua trajetória, teve posições dogmáticas, porque o partido não nasceu revolucionário e marxista por completo. Não.
José Américo Câmera: O PC do B ainda segue a linha da Albânia fielmente?
João Amazonas: Esse problema de “linha da Albânia”… Por que nós vamos seguir a linha de Albânia? A Albânia é um país tão diferente do Brasil! Imagine você trazer a linha da Albânia para um país de 8,5 milhões de km², de 140 milhões de habitantes…
José Américo Câmera: O senhor falou em futuro. Eu perguntaria o seguinte: por onde o senhor acha que estão passando as águas do futuro hoje? Quer dizer, no plano político, inclusive no plano político internacional, considerando-se que a União Soviética e a China estão vivendo em um processo de retrocesso e, também, o Brasil, o que é, onde está a modernidade? Onde estão passando as águas da modernidade?
João Amazonas: Essas águas da modernidade estão geralmente contidas não é? Criam-se barreiras de areia tremendas para impedir que a água que corre, que os riachos que correm para o mar possam chegar ao seu destino. As barreiras são imensas por toda parte. Mas, afinal, elas vão sendo rompidas, porque aquilo que é ditado pelas próprias condições objetivas acaba se realizando. Por onde passam as águas? Eu acho que passam por uma grande organização do povo, por um grande debate mundial, pela denúncia de todo esse capitalismo em decadência – que não se procura ver, porque a imprensa na mão dos capitalistas procura expressar apenas o lado, digamos assim, “fulgurante” dessa sociedade. Mas isso é muito estreito, ela não apresenta, realmente, aquilo que existe no mundo. Nós vivemos no Brasil; se nós queremos colocar aqui em termos de nosso país, nós vivemos uma encruzilhada histórica. Pensemos se isso não é realidade. Ou este país continua marchando pelo caminho que vai e a degradação da sociedade, da nação brasileira vai se acentuando cada vez mais. Essa degradação está dentro de nossos olhos. Então, quando você sai na rua e é obrigado a tomar uma série de medidas para não ser assaltado, com a criminalidade em ascenso; quando você vê o ensino chegar ao ponto mais baixo a que já chegou depois que se criaram universidades no Brasil; quando você vê 40 milhões de famintos; quando você vê todos esses dados que eu acabei de expressar, você tem um quadro da degradação crescente e acentuada da sociedade brasileira. Eu acho que nós vivemos em uma encruzilhada. Ou nós temos a coragem cívica de romper com isso tudo, de abrir novos horizontes para o Brasil, novos caminhos, ou nós vamos assistir por algum tempo a essa agonia lenta da sociedade brasileira.
[sobreposição de vozes]
Kleber de Almeida: Só fazer uma pergunta rápida, aqui. Voltando um pouco a discutir essa questão do capitalismo, o senhor diz que não se deve pagar a dívida externa. Qual seria a posição do senhor diante dos riscos ou das pressões, melhor dizendo, que poderiam ser insuportáveis para o país, caso não se pague a dívida externa? O que o país deveria fazer?
João Amazonas: Você imagine, eu poderia responder o seguinte. O escravo queria ser liberto, mas o senhor de escravo cria tais condições que não permite a liberdade do escravo. Com isso, ele deixaria de lutar contra a escravidão? Eu acho que a economia brasileira está de tal maneira indexada com a economia dos Estados Unidos e a economia imperialista, está de tal modo subordinada, dependente da política dos Estados Unidos e da economia dos Estados Unidos, que trariam problemas para o Brasil; mas esses problemas seriam passageiros se nós operássemos de uma maneira a buscar alternativas também no plano mundial. Eu sei que a exportação brasileira, hoje, atinge 29 bilhões de dólares porque o mercado internacional controlado pelos grandes monopólios norte-americanos estão interessados, a fim de buscar os dólares para que a gente os entregue em detrimento dos interesses da sociedade brasileira. Eu sei de tudo isso e sei [que, diante] de qualquer medida mais enérgica, eles tomariam medidas drásticas nesse terreno. Mas eu penso que é possível a gente buscar outras alternativas. A própria necessidade de se criar um fundo dos devedores que demarcasse a todos devedores do mundo seria também uma forma de fazer uma pressão mais enérgica nesse terreno. Eu acho que o mundo necessita de alimentos e que o Brasil pode propiciar esses alimentos. Nós não somos a Albânia, nós não somos Cuba, países que têm muitas dificuldades para enfrentar uma economia, sofrendo uma pressão exterior; o Brasil é um vasto país que possui de tudo, uma imensa riqueza. Nós deveríamos procurar formas hábeis, nós deveríamos não tomar umas atitudes, digamos assim, pura e simplesmente emocionais para decidir questões dessa natureza; mas nós devíamos ser firmes na decisão de que este país precisa ser independente, de que este país precisa reverter o trabalho do seu povo em beneficio de seu povo, do bem-estar da população brasileira; e, nisso, nós devemos ser intransigentes. Essa que é a questão como eu a encaro.
Augusto Nunes: Nós encerramos aqui o programa Roda Viva com o presidente nacional do Partido Comunista do Brasil, João Amazonas. Nossos agradecimentos ao nosso entrevistado. Pôde se expressar com toda a liberdade, o senhor pôde testemunhar isso, durante praticamente uma hora e meia. Nossos agradecimentos aos entrevistadores e aos telespectadores que nos ligaram. O programa Roda Viva volta na próxima segunda-feira, entrevistando o ex-governador e candidato a presidente da República pelo PDT [Partido Democrático Trabalhista], Leonel Brizola, Boa noite!
João Amazonas de Souza Pedroso, nascido em Belém, em 1912, morreu em São Paulo, em 27 de maio de 2002, aos 90 anos, de pneumonia grave e outras complicações, após seis dias de internação. O corpo foi velado no salão nobre da Assembléia Legislativa e cremado. O último pedido de João Amazonas foi que suas cinzas fossem jogadas no sul do Pará, onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia.
Fonte: Memória Roda Viva
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Entrevista exclusiva de Edíria Carneiro Amazonas;