Centro Popular de Cultura da UNE: Crítica a uma crítica (Parte 2)
Populista e Autoritário?
Como já vimos no artigo anterior uma das principais acusações contra o projeto cultural do CPC da UNE foi de que ele teria sido populista e autoritário. Mas, afinal, o que é a ideologia populista, que parece impregnar, como uma praga, todos os movimentos políticos e sociais na década de 1950 e início dos anos 1960?
Segundo Francisco Weffort, o principal teórico do populismo no Brasil, a ideologia populista seria uma ideologia de fundo pequeno burguesa que tenderia, necessariamente, a obscurecer “a divisão real da sociedade em classes com interesses sociais conflitivos e a estabelecer a idéia do povo (ou da Nação) entendido como uma comunidade de interesses solidários”. O professor Armando Boito Jr., por sua vez, afirmou que a ideologia populista possuiria como essência o que poderia se chamar de “culto do Estado Protetor”. Portanto ela seria uma espécie de ideologia estatista e, por isso mesmo, bloquearia a constituição das classes que a incorporam em forças sociais autônomas.
Levando-se em conta as características centrais apresentadas por estes dois autores, dificilmente poderíamos enquadrar, sem problemas, o projeto político e cultural do CPC dentro da rubrica: populismo. As principais obras, embora se insiram em uma temática nacionalista, dificilmente poderíamos dizer que este fosse um nacionalismo que acobertasse a existência de contradições de classe no interior da nação. Pelo contrário, a grande maioria das obras reconhece a existência da luta de classes e a sua centralidade na compreensão do processo político e cultural brasileiro. A própria questão nacional é permeada pela luta entre os diversos interesses conflitantes na sociedade brasileira. O nacionalismo do CPC não era um nacionalismo burguês e sim antiimperialista.
É verdade que o intelectual e o artista do CPC propuseram se colocar ao lado do povo, mas, para eles, o povo não era uma entidade metafísica. Eles tinham uma concepção determinada (marxista) de povo e distinguiam dentro dele as diferentes classes sociais e procuravam se colocar dentro da perspectiva de uma delas: o proletariado. Se foram felizes, ou não, no seu intento já é outro problema.
Emblematicamente a peça que deu origem ao CPC tinha o nome de A mais-valia vai acabar, seu Edgar.
Quanto à ideologia estatista podemos dizer que se ela existiu. E deve ter existido em algum grau, mas ela não foi o núcleo central da concepção cepecista. O CPC jamais reivindicou a sua incorporação ao Estado, existiu inclusive resistência quanto a mantê-lo com verbas públicas. O CPC mantinha as suas atividades com a venda de seus espetáculos a entidades e através da cobrança de ingressos. Como afirmou o primeiro presidente do CPC: “o nosso público, que iria usufruir nossa criação cultural, é que deveria pagar por ela, pois só assim tiraríamos, como de fato tiramos, o Estado da jogada e não ficaríamos, como os sindicatos, atrelados ao Estado pelo umbigo da dependência econômica”. Continuou, “intuitivamente, ou, quem sabe, forçado pelas circunstâncias, o CPC constituiu-se como órgão da sociedade civil, foi criado e sustentado por ela o tempo todo”.
E por fim, o CPC não foi um instrumento de desorganização das classes médias, ou dos trabalhadores; pelo contrário, foi um canal de organização e expressão dos interesses da categoria social dos estudantes universitários, em especial da jovem intelectualidade. O papel organizador do CPC está ainda para ser estudado.
E quanto ao autoritarismo do CPC?
Sem dúvida, o documento inicial possuía uma retórica autoritária e elitista, em especial quando tratava dos diversos tipos de arte não-elitista. A desqualificação da cultura produzida diretamente pelas populações despossuídas era evidente. Estas são, sem dúvida, as passagens mais problemáticas do texto de Estevam Martins. Era forte também a visão messiânica dos artistas e intelectuais cepecistas.
Mas, este mesmo autoritarismo e elitismo eram matizados em passagens do mesmo livro A Questão da Cultura Popular. Em outros textos cepecistas a distinção entre cultura popular, cultura do povo e cultura popular revolucionária praticamente desaparecia.
Uma pergunta fica: será que devemos julgar todo um movimento, em especial da proporção que adquiriu o CPC, a partir de um ou de alguns documentos programáticos? A resposta é não. O movimento desencadeado pelo CPC foi bem maior que os seus manifestos e programações.
Pelo contrário, tendo em vista o autoritarismo e o elitismo das classes dominantes nativas, o CPC trouxe verdadeiro ar democratizante no sufocante cenário cultural brasileiro de então. Nada mais democrático, nos marcos da cultura brasileira, que a busca da unidade artista/povo.
A popularização da arte, mesmo dentro dos limites impostos pela estética cepecista, deve ser considerada positiva. A apresentação de peças teatrais, recitais de poesia e shows de música popular nas universidades, sindicatos, praças públicas e favelas garantiram uma maior democratização do conhecimento produzido pela intelectualidade brasileira. Outro aspecto democratizante foi a possibilidade do aparecimento de inúmeros jovens artistas que sem o canal aberto pelo CPC não poderiam ter se projetado local ou nacionalmente.
A integração de velhos compositores populares, provindos dos morros cariocas ou do norte/nordeste, praticamente desconhecidos do grande público (Cartola, Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, João do Vale, etc.), e artistas provindos das classes médias urbanas (Vinícius de Moraes, Carlos Lira, Sérgio Ricardo etc) revigorou a música popular brasileira, democratizando-a. O movimento real de valorização da arte produzida pelos compositores populares, do samba de morro, do samba enredo, da literatura de cordel (sempre menosprezados pelas nossas elites culturais) não poderia ser entendido apenas lendo ao Anteprojeto de Manifesto do CPC da UNE de 1962.
Existem aqueles que afirmam que teria ocorrido, de fato, seria uma instrumentalização dos compositores populares pelo CPC. Esta teria sido a maneira encontrada para atrair o público que, no final, acabaria recebendo as “mensagens prontas” do CPC. Acredito que esta é uma visão simplificada do fenômeno. Se, no limite, podemos falar em instrumentalização ela ocorreu numa via de mão dupla, na qual todos se beneficiaram, especialmente a música popular brasileira.
Luís Werneck Vianna, que foi secretário da célula comunista no interior do CPC, fazendo um balanço da experiência chegou a mesma conclusão: “A sociedade brasileira registrou a presença do CPC porque ele foi capaz de resgatar o tema da cultura popular, valorizando e integrando essa cultura a partir de uma aparelho que tinha existência nacional, que era a UNE (…) A valorização da cultura popular a nova relação da intelectualidade com a cultura popular. Esse, sim, foi um grande atributo específico do CPC”.
Portanto, não parece justa a afirmação de Marilena Chauí de que o CPC não pôde tomar o povo real como parceiro político e cultural, pois, como já demonstramos, uma das grandes contribuições do CPC (a que ficou!) foi ter constituído uma parceria importantíssima para a cultura brasileira, em especial para a MPB, entre os compositores populares e os jovens artistas pertencentes as classes médias urbanas.
É exagero ver na concepção e na prática do CPC um desprezo pelo povo realmente existente. Foi com o povo real ao qual o CPC procurou se vincular e nessa tentativa sofreu vários e justificados tropeços.
Justamente por essa tentativa ousada ele foi perseguido e fechado após o golpe de 1964. Uma das grandes tarefas que a ditadura procurou realizar foi impedir que qualquer laço fosse estabelecido entre os artistas/intelectuais de esquerda e as massas trabalhadoras.
E ao contrário do que dizem os seus críticos, os intelectuais cepecistas optaram pela constituição de uma “comunidade de destino” com o povo brasileiro; na medida em que esta “comunidade” pôde ser estabelecida num país onde era, e ainda é, tão grandes as discrepâncias sociais. Também não é correta a afirmação de que o artista cepecista queria ser individualizado, e fugir do anonimato característico do artista do povo. Nenhum movimento cultural da história do país teve no seu interior um sentimento tão forte de negação da “obra de autor”. E por isso mesmo foi muito, e corretamente, criticado por vários intelectuais da época, especialmente pelos cineastas do Cinema Novo.
Num depoimento bastante crítico em relação ao CPC, Cacá Diégues afirmou: “No CPC reinava a idéia da grande catedral socialista onde cada um colocava seu tijolo anônimo”. Na mesma linha afirmou Mostaço, “o que menos interessava ao CPC era a autoria, sendo privilegiada a participação anônima”.
Muitas obras foram produzidas coletivamente, entre elas a mais famosa o Auto dos 99%, na qual os autores não eram divulgados. Muitas dessas peças, até hoje, têm os seus autores desconhecidos.
Algumas foram alteradas após críticas e sugestões do próprio público. Mesmo os casos de censura, como a feita pela diretoria da UNE contra A Vez da Recusa, de Estevam Martins, eram encarados com naturalidade e não como uma ofensa ao autor. Afinal, segundo eles, o autor pouco importava, o importante era a mensagem.
Outra característica do teatro cepecista, uma herança do teatro de Arena, foi ter eliminado, ou reduzido, a rígida divisão de trabalho dentro da produção teatral. Todos exercitavam a produção de texto, a interpretação e os demais trabalhos necessários à montagem do espetáculo.
O CPC da UNE também foi responsável direto pela proliferação de movimentos de cultura popular em todo o país. Em quase todos os estados brasileiros foram formados CPCs. Um amplo movimento cultural se expandiu pelas principais cidades do país e não se restringiu apenas ao movimento universitário, formaram-se dezenas de CPCs organizados por estudantes secundaristas, por entidades sindicais e populares.
Ao lado da UNE volante, existiu uma UBES volante, UEEs volantes e na sua rota iam nascendo novos CPCs. A direção de uma parte dessas entidades estava nas mãos de organizações políticas que não se afinavam com a força política hegemônica no CPC da Guanabara. Existiam muitos CPCs sob a direção de Ação Popular, organização da esquerda católica que dirigia a UNE. A leitura do documento do CPC de Belo Horizonte poderá demonstrar a pluralidade de concepções que existiam no movimento de cultura popular.
O documento do CPC de Belo Horizonte divulgado no I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, “O que é cultura popular”, expressa uma visão que destoava das posições apresentadas no anteprojeto de Manifesto do CPC da UNE. Afirmava o documento: “queremos ressaltar que a cultura popular não pode consistir numa certa tendência que há de se elaborar intelectualmente o que o povo tem que querer, na sua luta de libertação. Tal atitude tem característica de uma imposição paternalista, provavelmente sem resultados conseqüentes. Linha de doação ou imposição de uma conscientização, onde o povo não foi provocado para refazer e repensar a partir de seus próprios meios de comunicação.
Parece-nos prematuro procurar definir a cultura popular, uma vez que somente agora ela atinge uma dinâmica de elaboração”. Mais à frente afirmava que a superação dos condicionamentos sócio-econômicos “só poderá ser feito em moldes humanos se houver participação do povo, exprimindo-se dentro dos quadros de sua cultura”. Apesar das possíveis divergências, todos reconheciam que o motor do movimento havia sido o CPC da UNE.
Embora seja difícil medir o enraizamento da grande maioria dessas entidades culturais que se formaram naquele ano, é possível constatar uma certa tendência a expansão. Os dados demonstram que o movimento tinha uma base social real e respondia a uma necessidade ligada a necessidade da efetiva democratização da cultura brasileira.
Enfim, se o CPC tivesse apenas o lado autoritário, como afirmaram seus críticos de esquerda, não teria tido a expressão que teve. Não teria colaborado para essa proliferação, descentralizada, de centros de cultura. Não teria feito história, teria sido uma seita de artistas e intelectuais sectários.
Como disse, corretamente, o professor Manoel Berlinck: “Afirmar (…) como querem alguns, que o CPC foi um movimento autoritário, inserido na República Populista (…) é ser, no mínimo, insensível. Esses não percebem que não é sentado que se caminha e que se faz o caminho ao andar”.
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*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)