Centro Popular de Cultura da UNE: Crítica a uma crítica (Parte 1)
“Para aqueles que como nós passaram pela experiência histórica do populismo, as expressões ‘cultura popular’ e ‘cultura do povo’ provocam certa desconfiança e vago sentimento de mal-estar”.
Marilena Chaui, Cultura e Democracia
Uma introdução necessária
Há 40 anos, sob as cinzas da sede da UNE, extinguia-se uma das principais experiências culturais realizadas pela esquerda brasileira: o Centro Popular de Cultura. As chamas da reação e do fascismo destruíram o palco, o figurino e obrigaram os jovens artistas, como Francisco Milani, a pularem o muro para escapar da fúria dos atacantes. O ódio e a ação destruidora dos golpistas são provas mais do que evidentes do papel avançado e progressista que representava aquele movimento cultural. Infelizmente na década de 1970 e 1980 procurou-se desconstruir esta visão e assim terminar a tarefa que a ditadura tinha se proposto a realizar a ferro e fogo. Agora o ataque à memória do CPC da UNE partiria da própria “esquerda renovada”, capitaneada por intelectuais do recém-criado Partido dos Trabalhadores.
Este artigo buscará, modestamente, rebater as críticas infundadas produzidas por estes intelectuais e colocar a experiência do CPC no seu devido lugar na história de resistência do povo brasileiro. Aqueles jovens travaram combates importantes no front cultural – ou seja, no campo ideológico da luta de classes.
Uma luta na qual as trincheiras eram os palcos, os folhetins e as armas se reduziam, muitas vezes, a estrofe ingênua de um poema de Ferreira Goulart: “O gravador mostra a noite/ cobrindo a feição do dia/ O poeta recolhe o mote/ mas não canta, denuncia/ que a exploração do trabalho/ provoca fome a anemia,/ mata a mulher e seu filho,/o homem e sua alegria./ O poeta convoca os homens/a reconstruir o dia”.
A luta de idéias no brasil e as críticas ao CPC da UNE
No final da década de 1970 constituiu-se uma opinião bastante crítica às experiências do movimento nacional, democrático e popular, hegemonizado pelos comunistas e nacionalistas, no início da década de 1960. Tudo, ou quase tudo, que foi produzido foi taxado de populismo. Nada escapou a devastadora onda crítica: ISEB, CPC, PCB, sindicatos etc. O centro desta nova produção foi, sem dúvida, a Universidade de São Paulo (USP).
A respeito do Instituto Superior de Estudo do Brasil (ISEB) afirmou a filósofa uspiana Maria Sylvia Carvalho Franco: “A distorção do idealismo, aliada a um empirismo vulgar tem, no interior do discurso do ISEB (…) a função de ratificar seu conservadorismo e seu autoritarismo: sustentam uma ideologia de classe com base na primazia da consciência dos que monopolizam o saber e o poder (o cientista, o filósofo, o industrial, o burocrata) cujas representações são qualificadas de autênticas e verdadeiras porque estariam refletindo a imagem do processo histórico e seus limites”.
Para a autora, mesmo quando os isebianos buscavam incorporar o marxismo em suas análises, seria com objetivo de fortalecer os argumentos conservadores e autoritários de suas posições teóricas e políticas. Por isso, continuou, é “preciso uma considerável paciência para atravessar a espessa camada de jargão filosófico, com mimetismo de conceitos que têm suas raízes na dialética e numa teoria revolucionária, para chegar ao conservadorismo e ao autoritarismo de Álvaro Vieira Pinto”. O preconceito contra um dos principais filósofos nacionalistas brasileiros é evidente.
Assim o ISEB, segundo ela, estava orientado “para montagem da dominação ideológica da burguesia ‘moderna'” e teria cumprido o “seu papel de legitimar o progresso econômico, convencendo o trabalhador a fazer de sua existência trabalho e só trabalho, fazendo-o crer que sua sujeição fosse liberdade, integrando-o ao capitalismo”.
Sobre a coleção “Cadernos do Povo Brasileiro”, publicada pela editora Civilização Brasileira sob direção de intelectuais ligados ao ISEB, afirmou outra renomada filósofa da USP, Marilena Chauí: “percebe-se que sua pedagogia é antes persuasão do que discussão e esclarecimento (…) os autores não dizem explicitamente de onde e a partir do que estão falando, apresentando-se como se fossem portadores de uma fala universal cujas premissas são evidentes (…) cada um deles se enuncia como conclusão da verdade”. O povo brasileiro era apresentado pelos autores como “inconsciente, alienado, passivo, desorganizado, em suma, figura acabada da falsa consciência carecendo por isso de uma vanguarda que o oriente e conduza. Essa imagem faz com que os autores se dirijam ao povo como dirigentes dele, uma vez que na definição de vanguarda todos são unânimes em incluir os intelectuais e, portanto, a si mesmos”.
Embora o alvo principal desses autores fosse a produção teórica do ISEB, eles voltam a suas baterias também contra outra organização, considerada a filha caçula da ideologia isebiana (e pecebista): o Centro Popular de Cultura da UNE (CPC). Esta relação (ISEB-CPC) não era de todo equivocada, mas mereceria ser relativizada.
A experiência do CPC, como lembrou o professor Renato Ortiz, “estava teoricamente vinculada à filosofia isebiana, embora fosse uma radicalização à esquerda dessa perspectiva”. Essa radicalização à esquerda levou que se alterasse um dos conceitos centrais para ISEB, o de alienação. Deslocando o ponto de referência de Hegel (no ISEB) para Marx e Luckás (no CPC).
A maioria das críticas feitas ao CPC se concentrou no documento escrito por Carlos Estevam Martins em 1962: Anteprojeto de Manifesto do CPC. O autor, na época, era um jovem sociólogo oriundo das fileiras do ISEB e foi eleito o primeiro presidente do CPC. Para muitos esta era uma prova cabal da relação orgânica entre o ISEB e o CPC – dois lados de uma mesma moeda, farinha do mesmo saco populista e autoritário.
A respeito da relação intelectual/povo proposto no documento “Anteprojeto de Manifesto do CPC”, afirmou Marilena Chauí: “para poder respeitar o povo, o artista do CPC não pode toma-lo nem como parceiro político e cultural, nem como interlocutor igual: oscila, assim entre o desprezo pelo povo ‘fenomênico’ (que, no entanto, é descrito como o povo realmente existente) e a invenção do povo “essencial”, o heróis do exército de libertação nacional e popular (que existe apenas na imaginação). Sem o fantasma do ‘bom povo’ por vir, o artista do CPC não teria sequer tido a lembrança de ‘ir ao povo’ e sobretudo de ‘optar por ser povo'”.
E ao se referir à opção cepecista pelo povo afirmou: “Os artistas do CPC não optaram por aquilo que outros, cristãos, costumam chamar de ‘comunidade de destino’, isto é, a partilha da existência em comum numa prática construída em comum, tanto assim que a arte do povo é caracterizada pelo anonimato do artista. Optaram por ser vanguarda do povo, condutores, dirigentes, educadores (…) No fundo, o missionário do CPC quer ser individualizado sem o anonimato do artista do povo e sem a pasteurização do artista de massa. Como vanguarda, parece conseguir os dois intentos”. Em outro texto Chauí afirmaria: “Esse iluminismo vanguardista e inconscientemente autoritário carrega em seu bojo uma concepção instrumental da cultura e do povo e uma de suas expressões lapidares encontra-se no Manifesto do CPC, de 1962”.
Seguindo a trilha aberta por Chauí, afirmou Heloísa Buarque de Hollanda: “Ao reivindicar para o intelectual um lugar ao lado do povo, não apenas se fez paternalista, mas terminou (…) por escamotear as diferenças de classes, homogeneizando conceitualmente uma multiplicidade de contradições e interesses”, continuou a autora: “A linguagem do intelectual transvestido em povo traiu-se pelos signos de exagero e pela regressão estilizada a formas de expressão provinciais ou arcaicas”.
Para Edelcio Mostaço, a experiência do CPC foi “populista enquanto formulação teórica de sua práxis artística (…) que de resto integrou-se ao populismo da frente nacionalista preconizada pelo PCB”. O CPC era portador de “uma prática artística e cultural simplista e simplória (…) expressão mais límpida do populismo reformista que constituiu a prática política não só dos partidos legalizados como, de resto, de toda esquerda conivente com a frente nacionalista”.
Na minha opinião estes autores pagavam o seu pesado tributo ao tempo histórico que viviam: o tempo da negação absoluta das experiências passadas que, segundo eles, foram responsáveis pela derrota política e moral dos trabalhadores em março de 1964.
Este foi um tempo marcado pela acirrada disputa política entre as novas correntes da esquerda, que vinham se projetando no cenário político nacional a partir da década de 1970, e as correntes da esquerda tradicional, especialmente o PCB. A “nova esquerda” ganhava impulso com as greves dos operários no ABC, e passava a se organizar no Partido dos Trabalhadores, considerado a expressão político-prática da negação do populismo brasileiro. “Nova esquerda”, “novo sindicalismo”, “novos movimentos sociais”.
Negação absoluta — portanto, não-dialética — do passado do movimento operário e socialista brasileiro.
Outra das particularidades desta “nova esquerda” brasileira foi a subestimação, e mesmo negação, da chamada questão nacional tão cara às organizações tributárias de uma certa tradição do movimento comunistas internacional. A luta nacional, e antiimperialista, passou a ser considerada um instrumento que serviria apenas para subordinar os trabalhadores à ideologia e à política da burguesia e da burocracia do Estado ao encobrir a contradição fundamental da sociedade capitalista moderna: a contradição entre o operário e o burguês.
Na cultura desta nova esquerda brasileira secundarizada também ficava a chamada questão democrática. A centralidade de suas atenções recaiu, fundamentalmente, sobre a luta econômica dos trabalhadores assalariados, o verdadeiro campo da luta de classes moderna. Esta corrente tinha um forte viés economicista, embora negasse e afirmasse combater tal concepção.
Outra noção contra a qual se batiam os porta-vozes dessa “nova esquerda” era a de vanguarda, considerada por muitos um verdadeiro “palavrão”. Tratava-se agora de re-valorizar o papel desempenhado pela ação espontânea das massas trabalhadoras até então sufocada pelas direções burocratizadas dos sindicatos oficiais e dos partidos da esquerda tradicional, stalinistas e reformistas. A corrente autonomista ganhou relativa força no interior do PT. As teses autonomistas (negação da vanguarda, valorização do espontaneismo e antiteoricismo) ganharam guarita entre as jovens lideranças operárias petistas. As teses autonomistas, engendradas pelos intelectuais da “nova esquerda”, encontraram assim os seus portadores materiais: o “novo” sindicalismo brasileiro.
Portanto, esta negação radical do passado só poderá ser plenamente entendida quando analisada à luz das lutas políticas em curso naquele momento, a luta pela hegemonia entre dois projetos bastante distintos.
Passados mais de 20 anos os resultados deste embate são bastante confusos. Quais foram os vencedores? Quais foram os vencidos? O PCB, enquanto organização expressiva da esquerda brasileira, foi derrotado politicamente nos diversos embates ocorrido no decorrer da década de 1980. O PT foi vitorioso, e hoje é o maior partido da esquerda brasileira, mas as teses que seus intelectuais defendiam na polêmica com os intelectuais pecebista são cada dia mais fracas, quase residuais, no interior do próprio partido. Pelo contrário, adquiriu cada vez mais força no seu pensamento, e na sua prática política, as chamadas questões nacionais e democráticas; ganhou força o reformismo parlamentar, a valorização do sindicato oficial. Ressalve-se que ao colocar maior força a denominada questão nacional, o PT não se propõe a ser uma força antiimperialista – e nisto se distancia muito dos comunistas. Seus adversários, de direita e de esquerda, falam agora de um neo-populismo petista.
O fantasma renasce, mas poucos são aqueles que parecem interessados em exorcizá-lo. Portanto, somente agora é possível fazer um balanço mais equilibrado, menos apaixonado, dos difíceis e conturbados anos 60 e das alternativas culturais que a esquerda brasileira procurou construir.
Especificamente no que se refere às críticas da “nova esquerda” ao projeto cultural do CPC, podemos afirmar que o grande limite delas está no fato de ter tentado reduzir toda experiência cepecista a um único documento: o Anteprojeto de Manifesto do CPC, redigido por Carlos Estevam Martins, que, como o próprio nome diz, foi apenas um “anteprojeto”.
Os críticos, em geral, não analisaram nem mesmo outros textos importantes para compreensão do que foi o CPC-UNE, como o livro de Ferreira Gullar, “Cultura Posta em Questão”, o livro Carlos Estevam Martins “A Questão da Cultura Popular”, do qual o Anteprojeto era apenas um apêndice, os prefácios da série “Violão de Rua” (especialmente o último), redigidos pelo poeta comunista Moacyr Félix, o texto “Do Arena ao CPC” de Oduvaldo Vianna Filho entre outros.
A leitura do conjunto destes textos poderia demonstrar que não havia uma unidade absoluta, sem contradições, na compreensão do que deveria ser definido como “cultura popular”, ou sobre quais os caminhos para a construção de um projeto de cultura nacional e popular para o país. Poderia demonstrar que o projeto cepecista era ele próprio perpassado de contradições, muitas delas engendradas pela própria prática cultural, intensa e rica, de seus integrantes.
As coisas tendem a se tornar ainda mais complexas quando passamos a estudar atentamente o conjunto da produção cepecista — teatro, poesia, cinema, música — e a ação cultural dos jovens que compuseram os CPCs em todo o Brasil. A única conclusão a que podemos chegar é de que, no fim de tudo, foram os aspectos positivos (democráticos, socialistas e até revolucionários) que prevaleceram e são estes aspectos que devem ser resgatados pelas jovens gerações de artistas e intelectuais brasileiros que ainda alimentam o velho sonho de ter um Brasil soberano e mais justo para o seu povo.
(continua)
(bibliografia no final)
*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)