A conferência de fevereiro de 1962 e a reorganização do PCdoBrasil
No dia 18 de fevereiro de 1962 teve lugar na rua do Manifesto, bairro do Ipiranga, na cidade operária de São Paulo uma conferência extraordinária do Partido Comunista do Brasil. Participaram dela delegados de vários Estados. Entre eles estavam dirigentes históricos do Partido como João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Kalil Chade, Lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Elza Monnerat, entre outros. O evento aparentemente modesto revestiu-se de uma grande importância histórica para o povo e os trabalhadores brasileiros. Tratava-se naquela ocasião de reorganizar o Partido Comunista do Brasil que estava sendo ameaçado em sua existência por um surto revisionista de direita. Poucos ainda tinham consciência da importância daquele “ato fundador”. Para muitos, aquela parecia obra de alguns poucos sonhadores, sem grande futuro. Passados 42 anos da sua realização podemos dar conta da grandeza daqueles homens e mulheres comunistas e do ato que realizaram. Por isto gritamos em alto e bom som: Viva o 18 de fevereiro!
O XX Congresso e o pomo da discórdia
Em fevereiro de 1956 realizou-se o XX Congresso do PCUS, no qual Krushev apresentou um “relatório secreto” denunciando o “culto à personalidade” e os crimes de Stálin. Mais do que isto o XX Congresso abriu uma nova fase na política do PCUS na qual predominaria o reformismo. As notícias deste Congresso chegaram ao país através da imprensa burguesa e inicialmente foram negadas pela direção comunista — acusadas de serem falsificações promovidas pelo serviço de inteligência norte-americano.
Depois de vários meses o líder da delegação brasileira, Diógenes Arruda, presente naquele congresso voltou ao Brasil trazendo a informação oficial e somente no final de agosto conseguiu se reunir o Comitê Central para discutir a questão. Abriu-se uma crise profunda no interior do Partido. Surge uma forte corrente liquidacionista, encabeçada por Agildo Barata.
Em outubro foi aberto à revelia da direção partidária um debate através da imprensa comunista, num claro desrespeito ao centralismo-democrático. Em nome da liberdade de opinião tudo era permitido.
Ocorreu uma forte resistência aos desvios direitistas. A imprensa partidária sofreu intervenção e o próprio Agildo Barata foi expulso. Com ele saíram vários intelectuais. Alguns deles formam um grupo nacionalista não proletário, intitulado Corrente Renovadora do Marxismo Nacional. Diógenes de Arruda Câmara publicou o artigo “Renovar o Partido e Derrotar o Antipartido”.
Derrotado o liquidacionismo e as correntes de direita no interior do Partido, iniciou-se uma nova luta interna. Esta seria ainda mais acirrada e teria conseqüências maiores e mais duradouras. Duas concepções iam se consolidando no partido: uma reformista e outra revolucionária. A luta interna se desequilibra com a adesão de Prestes às teses reformistas do XX Congresso e sua tentativa de aplicá-la acriticamente ao Brasil.
Em agosto de 1957, por suas posições contrárias às teses reformistas que ganhavam corpo no interior da direção do Partido, João Amazonas, Maurício Grabois, Diógenes Arruda, Sérgio Holmos foram destituídos da comissão executiva e do secretariado do Comitê Central. Os seus lugares foram ocupados por Giocondo Dias, Mário Alves, Carlos Marighela e Calil Chade. Na mesma reunião foi aprovado o documento A Atividade antipartidária de Agildo Barata. Assim o Comitê Central, sob o comando de Prestes, dava uma no cravo e outra na ferradura: expulsava os liquidacionistas de direita e isolava a esquerda partidária.
Duas concepções, duas orientações políticas — a grande cisão comunista
O afastamento da esquerda do secretariado e da comissão executiva foi necessário para que Prestes conseguisse uma tranqüila maioria, o que lhe permitiu aprovar as teses reformistas e mudar o rumo político do Partido. No início de 1958, numa reunião do Comitê Central, João Amazonas e Maurício Grabois foram os únicos a votar contra o documento que ficaria conhecido como Declaração de Março e que fora elaborado por uma comissão “ultra-secreta”, criada pelo próprio secretário geral.
Este documento consolidou a guinada à direita do PCB. Entre outras coisas ele apregoava a possibilidade da transição pacífica do capitalismo ao socialismo no Brasil. Começava, assim, se consolidar duas tendências no interior do Partido: uma reformista e outra revolucionária. Estas duas tendências opostas iriam se enfrentar duramente nos debates preparatórios do V Congresso do PCB. Neste debate destacou-se o artigo de Maurício Grabois: “Duas Concepções, duas orientações políticas”.
Graças ao domínio que tinha sobre a máquina partidária, a influência de Prestes, e o apoio recebido do PCUS, a corrente reformista ganhou o Congresso e conseguiu aprovar as suas teses. Foi decidido também o afastamento de João Amazonas, Maurício Grabois, Diógenes Arruda e Orlando Pioto do Comitê Central. Os reformistas, então, tomaram a iniciativa.
Em 11 de agosto de 1961 o jornal Novos Rumos, órgão oficial do PCB, publicou um novo programa e estatuto, que segundo a comissão executiva deveria ser registrado no Tribunal Superior Eleitoral visando à legalização do partido. Entre as propostas de alteração incluía-se a mudança do nome da organização, que passaria a se chamar Partido Comunista Brasileiro. O novo programa apresentado era ainda mais recuado do que a Declaração de Março e as Resoluções do V Congresso. Dos estatutos retirava-se qualquer referência ao internacionalismo proletário e ao marxismo-leninismo. Esta foi a gota d’água.
A resposta da corrente revolucionária foi imediata. Enviou uma carta ao Comitê Central, assinada por cem comunistas, criticando os desvios de direita e exigindo que se retirassem os documentos ou se convocasse um novo congresso para discutir a mudança do nome e as modificações no programa e nos estatutos do Partido. Segundo a Carta dos 100, “as mudanças feitas no nome, no Programa e nos Estatutos (…) objetivam o registro de um novo partido e, por isso, se suprime tudo o que possa ser identificado com o Partido Comunista do Brasil, de tão gloriosas tradições (…) os militantes (…) não aceitarão que se liquide o velho Partido, e a ele permanecerão fiéis, mantendo bem alta a bandeira de suas melhores tradições”.
Retomando a bandeira
No final de 1961 a direção do PCB expulsou Amazonas, Pomar, Grabois, Ângelo Arroyo, Carlos Danielli, Calil Chade, José Maria Cavalcante entre outros. Diante da impossibilidade, por vias da democracia partidária, de mudar os rumos que tomava a direção do PCB, os membros da corrente revolucionária resolveram dar o passo decisivo no sentido de romper com os reformistas e reorganizar o Partido Comunista do Brasil. João Amazonas, como em 1943, estava novamente à frente desse esforço.
Em fevereiro do ano seguinte realizou-se V Conferência (extraordinária) do Partido Comunista do Brasil. Os delegados presentes resolveram reeditar, sob direção de Pedro Pomar, o jornal A Classe Operária como órgão oficial do Partido. Amazonas recorda aquela histórica conferência: “Ângelo Arroyo foi eleito membro do Comitê Central e da Comissão Executiva. Empenhou-se na reestruturação orgânica no bairro da Mooca. Abriu modesta livraria, numa área de fábricas, divulgando A Classe Operária, livros e folhetos revolucionários. Pomar ficou como redator-chefe de A Classe Operária”. Compunham o novo Comitê Central oito membros do antigo órgão dirigente e diversos militantes experientes com mais de 20 anos de atividade partidária.
A Conferência aprovou um Manifesto-Programa, que apontava os principais responsáveis pela miséria do povo: “a espoliação do Brasil pelo imperialismo, em particular o norte-americano, o monopólio da terra e à crescente concentração de riquezas nas mãos de uma minoria de grandes capitalistas”. Por isto, o Partido Comunista do Brasil que “se orienta pelo marxismo-leninismo e que objetiva o socialismo e o comunismo, considera que, na presente situação, a principal tarefa do povo brasileiro é a luta por um governo revolucionário, inimigo irreconciliável do imperialismo e do latifúndio, promotor de liberdades, cultura e bem-estar para as massas”.
Amazonas relatou as dificuldades encontradas em 1962 durante processo de reorganização partidária: “Naquela época, mesmo entre os que se opunham ao revisionismo, se levantaram objeções à reorganização do Partido. Tais objeções se baseavam fundamentalmente em dois argumentos. O primeiro consistia na afirmação de que o grupo de Prestes controlava a máquina partidária, detinha seu patrimônio e exercia influência em importantes organizações de massas. O segundo se estribava na consideração de que Prestes e seus adeptos poderiam corrigir sua orientação, abandonando o revisionismo e adotando uma linha revolucionária. Deste modo, os que faziam estas objeções diziam ser inviável a reorganização do Partido. Nenhuma das objeções mostraram ter razão de ser”.
Para ele, a Conferência de 1962 “representou a continuidade do velho Partido Comunista do Brasil, fundado em 1922, em nosso meio. O povo brasileiro, em especial, o proletariado, pode contar com o Partido na luta decisiva pela transformação da sociedade. O período em que se deu a reorganização do PC do Brasil foi marcado pela atitude corajosa e revolucionária dos militantes que empreenderam profunda luta teórica e grande ação política em defesa do Partido e dos princípios do marxismo-leninismo. Representou, ao mesmo tempo, a tomada de consciência de que o movimento revolucionário corria sério risco, agora não mais de fora pela ação das forças da reação, mas de dentro.
O rompimento com a direção do PCUS, principal partido comunista do mundo, e com a maioria reformista da direção do PCB, encabeçada por Luís Carlos Prestes, mostrava bem a ousadia desses revolucionários fieis a seus princípios. Foram muitos os que afirmaram que esta pequena organização não teria futuro e que esta teria sido uma obra de loucos. A conjuntura, amplamente favorável a proliferação de ilusões reformistas, parecia confirmar estas opiniões.
Mas a história, sempre implacável, construiria um outro caminho para além do senso comum e das aparências. O golpe militar de 1964 representou uma derrota das teses advogadas então pelo PC Brasileiro, que entrou num processo de crise e de desagregação. Em pouco tempo o PCdoB passou de algumas poucas centenas de membros para alguns milhares, organizados em quase todos os estados brasileiros. Ao longo dos anos PCdoB aumentou sua influência entre as massas e foi adquirindo projeção política nacional e internacional, sem nunca abrir mão de seus ideais socialistas e revolucionários. Sua história demonstrou — e demonstra — que uma organização como esta mais do que uma possibilidade é uma necessidade deste grande e complexo processo de emancipação do Brasil e das massas trabalhadoras.
*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)