A reorganização do Partido Comunista e a luta contra o nazi-fascismo

Desde o golpe de Vargas que instaurou o Estado Novo em novembro de 1937 a atuação do PCB tornou-se bastante restrita. Entre 1939 e 1941 a quase totalidade dos dirigentes comunistas estava na cadeia ou no exílio. Somente em julho de 1941, quando do início da ocupação nazista ao território da URSS, alguns grupos regionais de comunistas começaram um lento esforço de reorganização partidária.
A partir fevereiro de 1942 iniciaram-se os ataques de submarinos alemães aos navios brasileiros. Em março o governo decretou Estado de Emergência e depois aprovou o decreto sobre Indenização por Atos de Agressão Contra o Brasil. Isto foi considerado insuficiente pelos comunistas e democratas. Era preciso declarar guerra à Alemanha. O clima esquentou e começaram as grandes manifestações exigindo a participação na guerra ao lado dos aliados. O governo não pôde deter a maré antinazista. A luta de massa antifascista garantiu a ampliação dos espaços democráticos e possibilitou a rápida reorganização do Partido Comunista.

No Rio este trabalho estava bastante adiantado. Os comunistas cariocas haviam formado uma Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP). Esta foi a iniciativa mais consistente no sentido de recompor, ainda que provisoriamente, um núcleo dirigente nacional para o Partido. A CNOP carioca era dirigida por Maurício Grabois e Amarílio Vasconcelos.

Existia também o “grupo baiano”, formado por comunistas que haviam saído do nordeste para a região sudeste para ajudar a reorganizar o Partido, entre eles se encontravam Diógenes de Arruda Câmara, Armênio Guedes, Aydano do Couto Ferraz, Milton Cayres de Brito, Oswaldo Peralva e Carlos Marighella. Graças ao trabalho de Arruda estabeleceu-se o contato entre os grupos baiano e carioca. Foi isto que permitiu caminhar-se para a reconstrução de uma direção central do Partido. A estes dois grupos se incorporaram os jovens paraenses João Amazonas e Pedro Pomar que haviam realizado uma ousada fuga da prisão em Belém.

Neste difícil processo de reestruturação partidária várias opiniões divergentes se desenvolveram e se confrontaram nos meios comunistas. Todos os grupos estavam de acordo em que se devia concentrar ação política contra o inimigo principal: as potências nazi-fascistas e seus aliados internos, os “quinta-colunas”. Entretanto, existiam divergências sobre a política a se adotar internamente em relação ao governo Vargas. Surgiram basicamente três propostas de elaborações táticas conflitantes:
A primeira, defendida por um grupo encabeçado pelo dirigente histórico Fernando Lacerda, pregava a União Nacional em torno do governo Vargas e acreditava que a sua realização plena passaria pela não reorganização clandestina do Partido Comunista. Esta poderia ser um elemento que, na conjuntura, desestabilizaria a tentativa de unidade de todas as forças políticas contra o nazi-fascismo. O grupo de Lacerda usava o fechamento da Internacional Comunista como argumento para suas posições liquidacionistas. Aliaram-se a ele os irmãos Paulo e Pedro Mota Lima, Sillo Meirelles, Carlos Marighella e Roberto Morena.

Em uma entrevista à revista Diretrizes de 27 de maio de 1943, Fernando de Lacerda expressou suas idéias: “Desde que voltei ao meu país, sempre sustentei a mesma opinião. Na grave hora histórica que atravessa a humanidade e nossa querida pátria, não se trata de recompor quaisquer espécie de organismos ilegais (…) A criação ou reorganização de partidos ou quaisquer organismos ilegais, contra as leis em vigor — enquanto essas leis não forem consideradas pelo próprio governo como inadequada a seu esforço popular e à União Nacional anti-hitlerista — ajudaria a obra do Eixo e da sua quinta-coluna (…) Hoje as únicas organizações que favorecem nosso país e o nosso povo (…) são organizações abertas, amplas, legais, permitidas e autorizadas pelo governo de guerra ao eixo (…)”

O dirigente comunista Roberto Morena justificou sua posição tendo como referência a experiência de outros partidos comunistas no mundo. Afirmou ele: “O (PC) dos Estados Unidos, forte, de mais de 100.000 membros, organizados de forma leninista, com um líder como Browder, acaba de dissolver, transformado-se em círculos marxistas. O da Inglaterra, com cerca de 50.000 membros, se propunha, ainda antes da dissolução da IC, a formar com o Partido Trabalhista um partido único (…) com o programa único de lutar pela abertura de segunda frente imediatamente (…) O de Cuba, que tem mais de 30.000 membros, mudou seu nome para Partido Socialista Popular. O do Chile que possui mais de 40.000 membros, 4 senadores, mais de 15 deputados, dezenas de intendentes, uma célula de mais de 4.000 membros, etc., e que está em ação de formar o partido único (…) com o Partido Socialista e o Socialista dos Trabalhadores.”

A segunda proposta, defendida pelo grupo paulista liderado por Caio Prado Júnior, Heitor Ferreira Lima e Mário Schenberg, afirmava que a União Nacional não devia se dar em torno do governo Vargas. Segundo ela, os comunistas deveriam articular a luta contra o nazi-fascismo no exterior com a luta oposicionista pela derrubada do governo Vargas. A aliança principal deveria ser com os setores da oposição liberal. A reorganização do Partido Comunista não estava também no centro da ação política deste grupo.

Não foi casual que os comunistas paulistas participassem ativamente do processo de organização da União Democrática Nacional (UDN) e das primeiras articulações da candidatura oposicionista do Brigadeiro Eduardo Gomes. Caio Prado Jr. chegou a ver com simpatia o golpe militar que destituiu Vargas em 29 de outubro de 1945. O próprio nome da União Democrática Nacional foi proposto por ele em contraposição à palavra-de-ordem União Nacional. A palavra “democrática” impunha um limite claro á aliança proposta; ou seja, dela estaria excluída Getúlio Vargas.

A terceira proposta, defendida pelo CNOP, era que o centro da tática deveria ser de União Nacional, em torno do governo Vargas, contra o inimigo principal representado pelo eixo nazi-fascista e seus aliados. Não tinha por que, naquele momento, fazer oposição a um governo que encabeçava uma guerra contra aqueles que seriam os inimigos principais do proletariado e dos povos do mundo. O problema do novo regime a ser estabelecido deveria ser deixado para depois da guerra. Os principais defensores dessa tese eram Maurício Grabois, Diógenes de Arruda Câmara, João Amazonas, Amarílio Vasconcelos, Luís Carlos Prestes, entre outros.

Neste clima iniciou-se, em 27 de agosto de 1943, a II Conferência Nacional do PCB, mais conhecida como Conferência da Mantiqueira. Ela foi o marco da reorganização comunista, deu ao Partido um centro dirigente nacional e uma tática justa que correspondia à conjuntura nacional e internacional.

A Conferência realizou-se clandestinamente na fazenda de um militante, localizada na Serra da Mantiqueira no Rio de Janeiro e contou com a participação de 46 delegados das organizações partidárias dos Estados do Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Sul e Distrito Federal.
A tese defendida pelo CNOP predominou amplamente. Ela caracterizava a guerra mundial como uma “guerra de libertação dos povos nacionalmente oprimidos pelo fascismo”, “guerra de preservação da liberdade dos povos contra a ameaça de dominação fascistas”, “guerra de todos os povos pelo esmagamento do fascismo, sob o exemplo extraordinário da União Soviética, dirigidos por Stalin!”.

Os delegados reunidos definiram o governo Vargas não como um governo fascista, pois “deles participavam reacionários (…) mas igualmente homens que sinceramente lutavam pela democratização do País” e aprovaram a luta pela “união nacional em torno do governo” e o “apoio irrestrito à política de guerra e ao governo que a realiza”.

Na prisão Prestes escreveu uma série de cartas nas quais reforçava as teses da nova direção nacional eleita. Em março de 1944 redigiu uma carta que fazia críticas ao documento redigido por ex-membros da ANL no qual atacavam Vargas em nome da união nacional contra o fascismo.

“Não me parece justo, afirmou Prestes, o combate ao Estado Novo num apelo como este à unidade nacional (…) Estamos em guerra contra o nazismo. Esta guerra é para nós uma questão de vida e morte, é sem exagero uma guerra pela independência nacional. Esta unidade, praticamente, pode e deve ser alcançada em torno do governo constituído, que aí temos, e que, apesar de todos os seus erros e defeitos, já deu incontestavelmente grandes passos ao lado das Nações Unidas (…) Lutar pelas liberdades populares não significa, neste momento, fazer o combate doutrinário ao Estado Novo e à Constituição vigente, nem muito menos passar aos insultos generalizados aos homens do governo que enfrentam, na prática, problemas concretos de terrível complexidade e cada vez mais difíceis.”

Em outra carta de prisão deixou ainda mais clara a centralidade da luta contra o nazi-fascismo na estratégia do movimento comunista internacional: “O que há na América Latina, afirmou Prestes, são governos ditatoriais que nós, antifascistas, apoiamos ou combatemos, conforme a posição ou a política externa dos ditadores, a favor ou contra as Nações Unidas. Vargas está do lado de cá – nós o apoiamos; Farrel está do lado de lá — nós o combatemos (…) A política interna e todas as outras questões nós as subordinamos ao interesse máximo da luta contra o nazismo”.

Imediatamente após a Conferência da Mantiqueira houve uma inflexão tática para a direita. A revista Continental expressou esta mudança quando definiu a proposta de União Nacional como “um movimento de pacificação da família brasileira” e simplesmente retirava as bandeiras democráticas do seu programa mínimo. O Partido chegou mesmo a se colocar contra a luta em defesa da anistia aos presos políticos que alguns democratas já haviam iniciado. Após a Conferência de Teerã em 1944 a direção do PCB fez uma alteração na sua palavra de ordem passando a defender a “União Nacional sob a liderança do governo para a vitória e para paz”.

Os comunistas rapidamente retificaram as suas posições. Esta palavra de ordem foi retirada no ano seguinte e considerada um erro direitista. A luta pela União Nacional não devia mais se contrapor à luta pela democratização do Estado Novo e pela decretação da Anistia. Um dos títulos de um dos artigos de Prestes era justamente “Restabelecer a democracia durante a guerra”. Neste documento Prestes afirmou: “É claro (…) que nada poderá ser mais desastroso para o país do que chegarmos à vitória sobre o nazismo sem que previamente se tenham dado modificações substanciais no regime de opressão em que ainda nos encontramos (…) Ao contrário, se a democracia for restabelecida durante a guerra a união nacional em torno do governo permitirá uma transição dentro da lei e da ordem até a constitucionalização definitiva do país.”

Em fevereiro de 1943 os soviéticos derrotaram os alemães em Stalingrado e começaram sua ofensiva para libertação dos territórios ocupados pelas tropas nazistas. Em 1º de maio de 1945 os russos entraram em Berlim. O papel desempenhado pela URSS e pela resistência comunista em todo o mundo criou as condições para o crescimento, sem precedentes, da influência dos partidos comunistas no imediato pós-guerra. No Brasil o PCB atingiu o auge de sua influência e prestígio conquistando 10% dos votos para a presidência da República e elegendo 14 deputados federais e um senador. Isto foi resultado de uma política justa construída na Conferência da Mantiqueira.

*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)