Lobato do Brasil
No dia 18 de abril de 1882 nasceu em Taubaté, interior de São Paulo, Monteiro Lobato. Filho de fazendeiro e neto de Visconde que aos dezessete anos ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Tudo indicava que seu destino seria se tornar mais um bacharel num país de bacharéis. No entanto, não tinha vocação para isto. O jovem Lobato gostava de escrever e desenhar, transformou-se em um exímio caricaturista. Afirmou um dia: “Fiz ato de presença na Academia (…) para obter diploma (…) em vez de aproveitar o miolo dos meus lentes, aproveitava-lhes as caras, como modelos vivos das minhas caricaturas”.
Os pensamentos do jovem filho da aristocracia eram confusos e mesclavam conservadorismo, das oligarquias rurais, e ideais progressistas que já circulavam na sociedade brasileira. Num discurso pronunciado na faculdade chegou a afirmar, para espanto de alguns presentes: “Atualmente só vemos um ideal bastante generoso, bastante amplo para acolher em seu seio tudo quanto a humanidade tiver de mais superiormente generoso, de mais finamente intelectual, de mais grandiosamente altruísta – o socialismo”.
Em 1911 morreu seu avô, o Visconde de Tremembé, e ele acabou herdando a fazenda Buquira. O jovem advogado, de repente, virou um latifundiário moderno. E é a partir de sua posição de classe que construiu uma interpretação sobre o Brasil, especialmente sobre o homem do campo. Naquela época considerava o caboclo um “piolho da terra”, “inadaptável à civilização”. Surgiu então um dos mais famosos personagens de Lobato, o Jeca-Tatu – “bichinho feio, magruço, arisco, desconfiado, sem jeito de gente”. Pelas suas mãos se consolidou na literatura e na política brasileira a visão do camponês como um ignorante e preguiçoso. Esta visão negativa iria se modificar durante as décadas seguintes.
Nasce o Saci
Lobato ao passear por um dos parques da cidade de São Paulo, percebeu a predominância de elementos do folclore europeu. Chamou-lhe a atenção os anõezinhos, nibelungos, vestidos com grossas roupas de frio sob o sol escaldante dos trópicos. Este fenômeno poderia ser notado no país todo, fruto da europeização da cultura brasileira.
Em 1916, nas páginas da Revista do Brasil, escreveu sarcasticamente: “Tendes sede? No bar só há chopps, grogs, cocktails, vermouths. Tendes fome? Dão-vos sandwichs de pão alemão e queijo suíço. Lá apita o trem: é a Inglesa. Tomais um bonde: é a Light (…) Descei num cinema: É Íris, Odeon, Bijou. Começa a projeção: é uma tolice de Pathé”. Estas eram provas do desenraizamento cultural que vivia o Brasil no início do século XX.
Ele defendeu então que os artistas plásticos substituíssem os faunos, sátiros e bacantes por caiporas, boitatás e outros elementos da cultura popular que jamais haviam sido retratados. Proclamou a necessidade de um “sete de setembro estético”.
O jornal O Estado de São Paulo, por proposta de Lobato, realizou uma grande pesquisa sobre o saci-pererê. Choveram cartas com descrições e estórias do personagem que os leitores haviam ouvido de seus país e avós. No início de 1918 Lobato sistematizou este rico material e lançou a obra Saci Pererê: resultado de um inquérito. A primeira edição esgotou rapidamente iniciando uma verdadeira febre do saci, com exposições temáticas, artigos etc.
Neste mesmo período Lobato se envolveu ativamente em uma campanha em defesa da melhoria das condições de saúde do povo brasileiro. Pouco a pouco ele mudou sua visão sobre a população rural. A preguiça não era mais o fruto de condições naturais, dos condicionantes da raça, e sim era produzida socialmente. Ela era conseqüência das más condições em que viviam submetidas as massas camponesas. “É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não”. E conclui: “O caipira não é assim. Está assim (…) Restaurai a saúde do povo. Curai-o, e todos os bens virão ao tempo pela natural reação do organismo vitalizado”. Lobato ainda não conseguia ver as raízes mais profundas da miséria dos camponeses que estavam ligadas à predominância do latifúndio.
Do encantamento americano ao nacionalismo
Em maio de 1927, Lobato seguiu para Nova Iorque, onde ocupou o cargo de adido comercial. Ali, se encantou com os métodos modernos de organização capitalista da produção, especialmente o fordismo. Na experiência norte-americana ele pensou ter encontrado os meios para tirar o Brasil do seu atraso secular.
Era preciso apostar na produção industrial em larga escala. Mas antes era preciso resolver dois problemas fundamentais da nossa economia: o da produção de Ferro e de Petróleo. A debilidade nestes ramos estava levando ao retardamento do progresso do Brasil. Com a vitória da revolução de 30 ele perdeu o cargo, mas continuou defendendo suas idéias junto ao novo governo revolucionário, dirigido por Vargas.
Visando solucionar o problema da produção nacional de gasolina e outros produtos derivados do petróleo, Lobato propôs a importação de óleo da União Soviética e isto poderia ser feito através de permuta com o café brasileiro. “O fato do Brasil não haver reconhecido o governo russo, afirma Lobato, não constitui impedimento para negociar com a Rússia”. Contra a proposta de se estabelecer relações comerciais com a URSS levantou-se a imprensa reacionária, interessada em manter o cordão sanitário contra o comunismo mesmo em detrimento dos interesses nacionais.
Enfurecido Lobato respondeu aos seus opositores: “O nosso governo não tem coragem de antepor o bem público, as verdadeiras necessidades do país, a felicidade e a prosperidade de 45 milhões de pobres diabos coloniais que somos, aos interesses dos grupos financeiros daqui, ligados ao Capitalismo Anônimo Internacional”.
O petróleo é nosso
Lobato iniciou então uma grande campanha para montar uma empresa petrolífera nacional. Lançou subscrição para a criação da Companhia Petróleo do Brasil. De início houve uma empolgação geral, milhares de brasileiros entraram nesta empreitada. Rebatendo aqueles que negavam a existência de petróleo no país afirmou: “praticamente todos os países da América já tiraram petróleo, menos o Brasil. Só o Brasil persiste em duvidar. E, no entanto, não existe no mundo país mais rico que o nosso em sinais superficiais de petróleo”.
A sua empresa sofreu todos os tipos de restrições e pressões do governo e dos grandes trustes internacionais. O empreendimento acabou naufragando. Em 1935 denunciou a política do Conselho Nacional do Petróleo, que em conluio com as grandes corporações estrangeiras, tinha como lema: “não tirar petróleo e não deixar ninguém tirar” e um ano depois lançou o polêmico O escândalo do Petróleo. Nele tornou a afirmar: “estou convencido de que os trustes estrangeiros de petróleo querem manter-nos na escravidão”.
Com o golpe que instaurou o Estado Novo, em 1937, ele se viu na contingência de suspender sua campanha em defesa do petróleo, passando então a travar uma guerra de correspondência. Continuou firme na sua posição de que existiria petróleo no subsolo brasileiro, contra a opinião unânime dos técnicos do governo e da grande imprensa a soldo do capital estrangeiro.
Em janeiro de 1939, a tese de Lobato se confirmou com a descoberta de petróleo em Lobato na Bahia.
Os nacionalistas haviam ganhado uma batalha, mas a guerra estava apenas começando. Nos anos seguintes pouca coisa mudou no que diz respeito à produção de petróleo. Os grandes trustes continuavam impondo obstáculos a implementação de uma indústria petrolífera no Brasil.
Um homem contra a ditadura
Em dezembro de 1940, no momento em que o Estado Novo se aproximava das potências nazi-fascistas, Lobato deu uma corajosa entrevista a BBC de Londres no qual afirmou: “Mas se tudo mudou no Brasil, não mudou a nossa velha admiração pelos ingleses (…) a humanidade tonteia diante dos valores da violência, que os partidos vitoriosos por assalto ao poder força, sobre o indefeso homem comum (…) A alma dos velhos tiranos (…) da antiguidade se moderniza na figura aparentemente nova do Ditador Total”.
Devido a esta entrevista e as críticas contundentes que dirigiu contra o Conselho Nacional do Petróleo, em 27 de janeiro de 1941, Lobato foi preso pela primeira vez. Depois de quatro dias incomunicável foi libertado, mas o processo contra ele continuou. Três semanas depois, em 18 de março, foi decretada a sua prisão preventiva.
Vinte dias depois a sentença de um juiz militar de primeira instância absolveu Lobato. Logo após a absolvição Lobato enviou uma carta irônica ao presidente do CNP na qual afirmava: “Sempre havia sonhado com uma reclusão desta ordem, durante a qual ficasse forçosamente a sós comigo mesmo e pudesse meditar sobre o livro de Walter Pitkin, A short introduction to the history of human stupidy (…) nesta prisão (…) tive o ensejo de observar que a maioria dos detentos é gente de alma muito mais limpa e nobre do que muita gente de alto bordo que anda solta”.
Não contente com esta provocação ao poder ditatorial enviou uma outra carta ao próprio Vargas, na qual afirmava: “Atirei no petróleo e acertei na cadeia, o que prova bem minha má pontaria” e continuou, “o verdadeiro amigo de um Chefe de Estado não é o que anda com retratinhos dele na lapela, mas sim o que desassombradamente o adverte dos crimes cometido em seu nome”. E concluiu, ironicamente: “Pelo amor de Deus, não mande esta carta ao Conselho do Petróleo”. Esta ousadia lhe custou muito caro.
Em 20 de maio o Tribunal de Segurança Nacional condenou Lobato a seis meses de prisão e em junho mandou apreender e destruir os exemplares do seu livro Peter Pan. Segundo o parecer do sábio tribunal, neste livro se divulgaria sub-repticiamente “doutrinas perigosas e práticas deformadora do caráter” da infância e da juventude brasileira. Peter Pan, a boneca Emília, o Visconde de Sabugosa, a Dona Benta e outros personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo passaram a ser considerados perigosos inimigos do regime.
Em 1945, quando se iniciou a abertura política, Lobato deu uma entrevista na qual afirmou: “a nossa ordem social baseia-se na miséria”. Elogiou Prestes, os comunistas e a URSS: “O que a Rússia fez nesta guerra, e o que está fazendo na ciência, na educação e em todos os setores da vida humana é o maior dos milagres modernos”.
Por suas posições progressistas foi convidado para compor a chapa de candidatos do Partido Comunista do Brasil. Mesmo recusando o convite, alegando problemas de saúde, deu todo o seu apoio as candidaturas comunistas e gravou uma mensagem especial de saudação para o grande comício do PCB no Anhangabaú.
Lobato também se solidarizou com o Partido Comunista quando da campanha reacionária, encabeçada por Dutra, pela cassação de seu registro e do mandato de seus parlamentares. Em sua defesa escreveu A Parábola do Rei Vesgo, lida no comício pró-legalidade no Anhangabaú em 18 de junho de 1947. Para o PCB redigiu ainda o folheto Zé Brasil.
Este texto representou o rompimento definitivo com a velha figura do Jeca Tatu, criada durante sua juventude. Nele apresentou o camponês como agente da transformação social e afirmou seu compromisso com a reforma agrária. O objetivo dos comunistas, diz um de seus personagens, era “fazer com que todos os que trabalham na terra sejam donos de um sítio de bom tamanho, onde vivam felizes, plantando muitas árvores, melhorando as benfeitorias” e continuou: “Quem é que guerreia (contra isso)?
Os que trabalham na roça, como você? Os que sofrem a injustiça do mundo, como você? Os que nas cidades ganham a vida nos ofícios ou como operários nas fábricas? Os que produzem tudo o que existem no mundo? Não! Os que combatem Prestes e as idéias de Prestes não são os que trabalham e sim os que vivem à custa do trabalho de outros”.
Três meses após a cassação dos mandatos comunistas, em 21 de abril de 1948, Lobato sofreu o seu primeiro espasmo vascular cerebral, que o inutilizou para o trabalho. No dia 4 de julho, quando estava dando os primeiros passos para a sua recuperação, um segundo espasmo fulminante lhe tirou a vida ao 66 anos de idade.
*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)