A Guerrilha do Araguaia renasce a cada dia
“Homens que foram o sonho, quando o sonho fugia dos homens”
Trecho de poema de um morador da região do Araguaia.
Neste dia 12 de abril, após exatamente 32 anos do seu início, a resistência armada do Araguaia assume definitivamente o seu lugar na história do Brasil. A saga daquelas dezenas de jovens comunistas que, ao lado dos camponeses pobres, lutaram até a morte contra a ditadura militar, em defesa da liberdade e da democracia, já compõe a lista dos feitos heróicos do nosso povo. Ela está lado a lado e divide as honras, com a luta do povo de Palmares, dos inconfidentes, dos balaios, dos sertanejos de Canudos e do Contestado, dos abolicionistas, dos jovens tenentes da década de 1920, dos revoltosos de 1935. Histórias escritas com sangue, suor e muita esperança. Esperança na possibilidade de construir um Brasil mais justo para seu povo.
A Guerrilha do Araguaia, como as lutas populares que a antecederam, teve que romper os grilhões do esquecimento e o silêncio imposto pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira: os senhores de escravos do passado e do presente. Teve que vencer as mentira e os preconceitos. Mas, como cantou o poeta, o carro alegre da história atropela indiferente todos aqueles a negam. A Guerrilha renasce a cada dia nos depoimentos das mulheres e dos homens que viveram de perto aqueles acontecimentos e vai adquirindo, definitivamente, a dimensão de epopéia. A revista Época, afirmou recentemente que ela foi “o mais organizado foco de combate ao governo desde Canudos”. Neste mesmo número revelou mais detalhes dos últimos dias de muitos dos guerrilheiros.
A cada dia que passa surgem novas informações que ajudam a montar um grande mosaico da ação do valente povo da floresta naqueles tenebrosos dias da ditadura. De um lado, aparecem os depoimentos de centenas de camponeses pobres que nos dão conta do carinho que a população tinha para com aqueles guerrilheiros, denominados “paulistas”. Este carinho não era casual e estava ligado à dedicação e à presteza daqueles jovens em atender à população – curando suas doenças, fazendo partos, ensinando a ler e escrever, prestando ajuda nos momentos da colheita, dando ânimo nos momentos de maiores dificuldades. Ou seja, fazendo aquilo que o Estado brasileiro nunca havia feito por eles.
A guerrilheira, e educadora Áurea Valadão criou a primeira escola no povoado de Boa Vista e deu aulas para centenas de crianças de Caiano e Xambioá. O médico guerrilheiro João Carlos Haas Sobrinho, atendia com carinho e gratuitamente. As enfermeiras Jana Barroso, Luzia Augusto Garlippe e Suely Yomico também se transformaram em médicas dos camponeses pobres.
Os comunistas Ciro da Cunha Brum e Paulo Roberto Pereira Matos montaram uma farmácia em Palestina e ali davam assistência gratuita. Paulo também ajudava no nascimento das crianças e no tratamento das doenças. Até mesmo a valente Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, embora fosse geóloga, “muitas vezes andou muitas horas na mata, de noite, para ajudar uma criança a nascer”. Por isto até hoje seus nomes são lembrados com carinho nos povoados onde passaram.
Um camponês em lágrimas contava: “uns ajudavam o outro, nas coisas da casa, na minha roça, e eles trabalhavam o tempo todo, sempre arrumavam algo para fazer.
Sinto falta daquela amizade”. Outro lhe dedicaria um poema que dizia: “Homens que foram o sonho, quando o sonho fugia dos homens”.
Tudo isto explica o apoio recebido pelos guerrilheiros no confronto que tiveram com os militares. O Frei dominicano Gil Vilanova, que viveu na região durante a Guerrilha, afirmou: “Todas essas pessoas eram simpáticas aos guerrilheiros. Todas. Eles eram muito bons. O povo dava apoio moral e fornecia viveres (…) Muitos entraram com eles (…) Depois de uma vitória relativa que guerrilheiros tiveram (…) muitas pessoas da mata entraram na luta armada”.
O Advogado e ex-deputado do PCdoB Paulo Fonteles, assassinado pelo latifúndio, declarou: “Hoje creio já podemos afirmar que uma grande parte da população apoiou a guerrilha com informações, alimentação e calçados (…) E outra parte, menor, porém expressiva participou da ULDP, integrando-se na própria luta guerrilheira. Por isto a guerrilha durou tanto tempo.”
A reportagem da revista Época mostrou como era respeitada a memória do guerrilheiro Osvaldão, o mais temido pelos militares. No dia de finados de 2003 um morador da região colocou uma vela no cemitério de Xambioá e declarou: “essa vela aqui eu vou acender para meu amigo Osvaldo Orlando da Costa, que morreu há quase 30 anos”.
Logo em seguida dezenas de velas se acenderam numa homenagem ao guerrilheiro morto. A Assembléia Legislativa do Pará, in memorian, lhe concedeu o título de cidadão do Pará.
Por outro lado o seu assassino, recrutado pelo Exército, que recebeu como prêmio uma gleba de terras, teve que conviver até o fim de seus dias com o desprezo dos demais moradores. Viveu de favores dos militares e quando morreu afirmou sua mulher: “pedimos ajuda ao exército, mas no hospital que eles indicaram não quiseram atender”. O Exército acabou pagando-lhe um enterro barato. Para este não será construído nenhum monumento e nenhuma escola ousará receber o seu nome.
A Guerrilha do Araguaia enche de orgulho o povo da região. A cidade de São Domingos das Latas, que teve parte da sua população presa durante o conflito, passou a se chamar São Domingos do Araguaia e o novo brasão da cidade passou a incorporar as armas dos guerrilheiros. Está em curso o projeto de construir um memorial dedicado à Guerrilha em Xambioá.
Se de um lado chegam mais e mais informações sobre a abnegação e o heroísmo daqueles homens e mulheres; de outro, chegam os detalhes macabros de como eles foram aprisionados, torturados e exterminados friamente e de como foi martirizada a população que tanto respeito demonstrava por eles.
Até o final de 1973 ainda se sabe um pouco da atuação dos guerrilheiros, graças ao relatório de Ângelo Arroyo e o depoimento dos poucos sobreviventes. Depois disto os guerrilheiros aprisionados passaram a ser exterminados. A ordem era para que não houvesse sobreviventes. O objetivo era impedir que eles pudessem ser testemunhas daquele importante acontecimento. A conspiração do silêncio exigia que todos fossem assassinados e seus corpos desaparecessem. E assim foi feito.
Chocou particularmente a descrição recente da prisão e assassinato da última guerrilheira presa em outubro de 1974, Walkíria Afonso Costa. Ela foi presa quando pedia comida. Ela estava fraca, doente, mancando e completamente indefesa. Foi executada a sangue-frio com três tiros de espingarda de cano longo. A guerrilha já havia sido derrotada e ela não representava mais perigo nenhum para a ditadura militar. Mesmo assim ela foi morta. Um ex-soldado que servia na região afirmou: “Eu nunca pensei que alguém pudesse fazer um negócio assim com uma menina daquela”. Foi executada friamente como o foram Áurea, Jana, Maria Célia, Telma Regina, Lúcia Maria, Luzia, Dinaelza, Dina, Suely Yumiko, Maria Lúcia Petit, Helenira Rezende entre outras. O sangue destas mulheres regou o solo do Araguaia onde se levantará a luta de novas gerações de combatente pela reforma agrária e pelos ideais daquelas guerrilheiras. Outro soldado indignado diante do que viu afirmou: “Eu não imaginava que alguém pudesse fazer aquelas coisas. Quem faz aquilo não sabe o que é Deus, não tem amor a mãe, aos filhos.”
Também no Araguaia a história se repetiu. Os inimigos vencidos tiveram suas cabeças cortadas e seus corpos mutilados, como ocorreu com Zumbi, Filipe dos Santos, Tiradentes, Lampião e os homens de Antônio Conselheiro. Um dos camponeses que foi obrigado a servir de mateiro para o Exército contou o que viu: “não quero morrer com esse peso na consciência, sem contar tudo o que vi”. “Falando sobre a execução de Adriano Fonseca Fernandes Filho ele afirmou: “Ele foi morto pelo raimundinho com um tiro de espingarda no peito (…) Depois, o mesmo raimundinho cortou a cabeça do Chicão (…) Ajudei a carregar a cabeça dele num saco pelo meio da mata”. Entre os últimos combatentes a tombar estava Osvaldão. Seu corpo sem vida foi amarrado a um helicóptero militar e carregado por sobre as cidades onde era conhecido e depois colocado em exposição em Xambioá. Com estes atos desumanos buscavam assim intimidar o povo e afastá-lo da luta, mas isto de nada adiantou.
A população também foi martirizada. Os camponeses eram forçados a servir de mateiros para o Exército. Vilarejos inteiros foram esvaziados. Estabeleceu-se o toque de recolher e todos os suspeitos de manter contatos com os guerrilheiros foram presos e submetidos a interrogatórios que envolviam torturas físicas e mentais. Não escaparam nem mesmo padres e freiras.
Escreveu o jornalista Fernando Portela: “Em Xambioá, cavaram-se buracos próximos ao acampamento e os homens foram pendurados de cabeça para baixo, amarrados com cordas em estacas afiadas à beira dos buracos. Levavam empurrões, socos e choques elétricos. E havia um médico entre os ‘especializados’. Quando um homem desmaiava, recebia uma injeção para reanimar e sofrer consciente”. Vários morreram em conseqüências dos maus tratos sofridos e alguns enlouqueceram. A quase totalidade não havia participado da guerrilha, mas teve o azar de ter vendido mantimento, transportado, cortado o cabelo ou conversado, em algum momento, com um dos componentes da guerrilha. Ou mesmo ter feito um comentário positivo ou complacente sobre os jovens “paulistas” que viviam e lutavam contra o governo. Naquela época, e naquele lugar, qualquer sinal de simpatia por eles era visto como um perigoso ato de contestação ao regime, tão perigoso quanto pegar em armas.
Referindo-se aos conflitos armados no Araguaia o ex-ministro da ditadura, coronel Jarbas Passarinho, afirmou cinicamente: “Foi uma guerra suja, uma guerra porca. Então a convenção de Genebra foi pro diabo, desapareceu a convenção de Genebra”. Se existiu uma guerra suja foi exclusivamente por conta das forças de repressão que atuaram no Araguaia, que maltrataram a população civil e torturavam e executavam pessoas desarmadas e indefesas – muitas delas doentes e sem nenhuma capacidade de resistência.
A guerrilha mesmo derrotada deixou marcas profundas na alma do povo da região. Ascendeu nele a chama da revolta. No final da década de 1970 e durante toda a década de 80 o sul do Pará tornou-se palco de uma sangrenta luta entre os posseiros pobres e os latifundiários. Nestes anos tombaram em defesa da reforma agrária os líderes camponeses Expedito Canuto, João Canuto e Gringo, além do advogado comunista Paulo Fonteles. Não foi sem motivo que durante a visita ao sul do Pará dos familiares dos mortos e desaparecidos da guerrilha, em 1980, um posseiro afirmou emocionado: “a semente que eles plantaram nós estamos colhendo, continuando a luta que eles iniciaram”.
Hoje existem ainda 61 guerrilheiros desaparecidos. Pela primeira vez na nossa história foi negado ao inimigo derrotado o direito a uma sepultura onde suas famílias pudessem velar e colocar suas flores. O Brasil exige que estes fatos sejam esclarecidos. É preciso que as Forças Armadas brasileiras, neste novo momento que vive o país, contribuam para que este episódio da nossa história recente venha a público. É necessário que elas forneçam as informações sobre a morte e desaparecimento daqueles jovens guerrilheiros e restituam-lhes o direito a um túmulo. Não há nesta exigência nenhum espírito de revanchismo e sim de justiça.
Esta é uma das condições para que haja uma reconciliação plena entre as Forças Armadas e o conjunto da Nação. Dessa maneira, as Forças Armadas poderão cumprir em melhores condições suas responsabilidades constitucionais de defesa da soberania nacional, hoje, mais uma vez, ameaçada pelas aspirações hegemônicas do imperialismo norte-americano.
Os comunistas têm consciência de que só com a união de todos em torno de um projeto nacional e democrático é possível enfrentar os graves desafios da nacionalidade e construir um país desenvolvido, soberano e justo socialmente.
*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)