A posição que os comunistas brasileiros assumiram em relação ao segundo governo Vargas causa perplexidade em grande parte dos estudiosos brasileiros. A sua definição como “títere do imperialismo norte-americano” soa estranho aos nossos ouvidos, já acostumados com a caracterização deste como antiimperialista e até mesmo como democrático e popular.

Um estudo mais profundo do conjunto das medidas implementadas durante este governo nos conduz a afirmar que existiam graves limitações na análise dos comunistas. O segundo governo Vargas não era subserviente ao imperialismo norte-americano. Por outro lado, não era também de caráter essencialmente antiimperialista. Era, na verdade, um governo burguês permeado por inúmeras contradições e em permanente disputa entre as correntes entreguistas e nacionalistas. No entanto, no decorrer do tempo, a correlação de forças entre as duas tendências se deslocou num sentido favorável ao nacionalismo.

O importante é constatar que esse resultado não estava dado desde o início do processo. Em alguns momentos a luta pareceu perdida para as correntes que defendiam um projeto de desenvolvimento nacional autônomo. A correlação de forças pró-nacionalismo foi sendo construída através de acirrada luta política – que se traduziu, ainda, numa luta de idéias entre os defensores de programas econômicos distintos e contrapostos. Foi sendo redefinida também nos choques permanentes entre os interesses do país e os interesses do imperialismo norte-americano, que se colocava contra qualquer tipo de alternativa industrialista.

Tendo em vista as etapas dessa luta, podemos, grosso modo, dividir o governo Vargas em duas fases distintas. Uma primeira fase – entre 1951 a 1953 – marcada pela política de conciliação com as correntes entreguistas e com os interesses geopolíticos norte-americanos e, uma segunda – entre 1953 e 1954 –, em que predominou uma atitude mais decidida no sentido de dar curso à construção de um modelo de desenvolvimento nacional autônomo. Nesse momento entrou em conflito aberto com o projeto do imperialismo, e de seus aliados no país, e acabou sendo derrubado por um golpe de Estado.

O pêndulo para direita

A candidatura Vargas se gestou fora dos grandes partidos, como PSD e UDN. O seu surgimento estava ligado às necessidades de certos setores da burocracia de Estado (militares nacionalistas) e da burguesia industrial – que advogavam uma ativa política pró-industrialização. Esta última ainda se encontrava dividida. Setores importantes alimentavam desconfianças em relação à política social varguista e sua tentativa de incorporar os trabalhadores urbanos.

No entanto, a principal base de sustentação da campanha de Vargas, e responsável direta pela sua estrondosa vitória eleitoral, era as massas populares. Os trabalhadores, cansados da política excludente e antioperária do general Dutra, se voltaram para aquele que se propunha reintegrá-los na arena política como “cidadãos”. Ele obteve 48,7% do total de votos, seguido pelo Brigadeiro Eduardo Gomes com apenas 29,7%.

A composição do primeiro ministério foi uma tentativa de construir a unidade das diversas frações da burguesia, sob a direção dos setores industrialistas. Dele participavam o general nacionalista Estillac Leal e João Neves da Fontoura, conhecido por suas posições abertamente pró-imperialistas. No ministério destacavam-se ainda dois representantes do empresariado paulista Ricardo Jafet, presidente do Banco do Brasil e o banqueiro Horácio Lafer, Ministro da Fazenda. Ao PTB, partido pelo qual havia sido eleito Vargas, coube apenas o Ministério do Trabalho.

Governar com forças tão díspares era uma equação difícil de ser resolvida. Logo, em março de 1951 o governo estabeleceu uma política cambial restritiva, criando dificuldades para a importação de mercadorias julgadas não essenciais. Medidas como essa acarretaram uma forte oposição das frações comerciais da burguesia e de seus aliados: as classes médias tradicionais. Estas se tornaram porta-vozes do liberalismo econômico e da oposição ao intervencionismo estatal. Sua expressão política foi a UDN.

O conflito de interesses atingia também a área econômica. Os dois representantes dos empresários paulistas viviam as turras. Horácio Lafer era um grande industrial com vínculos com o capital estrangeiro e no Ministério da Fazenda defendeu uma política econômica contencionista. Jafet, ligado ao setor de metalurgia, pelo contrário, defendia o crédito fácil. As divergências eram mais amplas. Podiam ser observadas, por exemplo, no processo de aprovação do decreto-lei de controle sobre a remessa de lucros ao exterior. Este nasceu sob inspiração direta do presidente do Banco do Brasil e tinha por finalidade estancar a sangria de divisas. Mas, o ministro da Fazenda se esforçou para que ele não fosse posto em prática. A lei se tornou letra morta e acabou sendo anulada em janeiro de 1953. Neste mesmo mês Jafet se demitiu criticando, entre outras coisas, as manobras, visando esvaziar o Banco do Brasil em benefício de grupos financeiros privados.

Esta composição nitidamente conservadora foi duramente criticada pelos nacionalistas e comunistas.
Afirmou o dirigente comunista Diógenes Arruda Câmara: “Se Dutra só pode manter a ditadura através do acordo-interpartidário, Getúlio forma um ministério de ‘conciliação nacional’, visando a união sagrada das forças reacionárias”. Segundo Maria Celina de Araújo, “Na prática, as metas esboçadas na campanha fracassaram em grande parte, não se traduzindo em política efetivas do Governo. Apesar da manutenção de um discurso nacionalista, constata-se que o Brasil teve que ceder efetivamente aos interesses norte-americanos, particularmente ao capital estrangeiro e aos recursos naturais do país (…) Essas contradições (…) tornam os governo vulnerável a crítica de todos os lados”.

Portanto, o que caracterizou os dois primeiros anos do governo Vargas não foi a tentativa de romper com o imperialismo norte-americano e propor uma alternativa de construção de um capitalismo nacional. Ocorreu, sim, uma tentativa de conciliação com as forças conservadoras e pró-imperialistas. Isto acarretou a primeira grande crise governamental e a saída de Estillac Leal.

Sob a Guarda Norte-Americana – O Acordo Militar e a Guerra na Coréia

O início do governo Vargas se deu numa conjuntura internacional de agravamento da guerra fria que exigia um alinhamento imediato do país ao lado de um dos dois contendores: URSS e EUA. As classes dominantes latino-americanas, e seus respectivos governos, já haviam se definido – colocando-se sob a guarda do imperialismo norte-americano. A Guerra da Coréia, recém-iniciada, começou adquirir contornos dramáticos. O perigo de uma nova guerra mundial – agora nuclear – estava colocado no horizonte imediato da humanidade.

Na Conferência dos Chanceleres Americanos, realizada em março de 1951, o representante brasileiro, João Neves da Fontoura, deixou clara a posição brasileira diante do novo quadro internacional. Segundo ele, os EUA estavam convocados “a opor o escudo de sua consciência democrática e das suas possibilidades materiais aos atentados que se preparam nas trevas”. Atacou a fidelidade dos comunistas à URSS e à sua negação da idéia de pátria. Por isto mesmo “representariam um perigo para a segurança interna das nações latino-americanas”. Concluiu conclamando o combate internacional às “ideologias subversivas” e aos partidos que operavam sob o comando de “potências estrangeiras”. Sinais evidentes de que os comunistas brasileiros, vivendo na ilegalidade, não deviam esperar nenhuma complacência do novo governo.

Por outro lado, o representante brasileiro, acenando com o perigo comunista, convocou a um maior investimento de capitais americanos no processo de industrialização do país. O professor Moniz Bandeira constatou, corretamente, que as palavras do representante brasileiro espelhavam “o estado de ânimo da burguesia brasileira, na qual a solidariedade de classe (cooperação com os Estados Unidos no caso da guerra contra a União Soviética) não excluía a luta pelos seus próprios objetivos de desenvolvimento (montagem de indústria de base e de meios de produção)”. Vargas procurava tirar vantagens econômicas dessa subordinação político-militar.

Naquele momento, o principal interesse dos norte-americanos – além do apoio militar na Coréia – era o acesso aos minerais estratégicos necessários à sua indústria bélica. Isto exigia a eliminação de todos os entraves burocráticos existentes na legislação brasileira. O Ministério das Relações Exteriores se mostrou favorável à eliminação destes obstáculos, mas solicitou como contrapartida “créditos bancários (…) para as medidas de execução de um programa racional de industrialização”. Insistiu também para que os norte-americanos instalassem empresas visando à industrialização das matérias primas estratégicas, especialmente as areias monazíticas.

Em abril de 1951 o presidente norte-americano Harry Truman solicitou que o Brasil enviasse tropas para a Coréia. O Conselho de Segurança Nacional decidiu-se pelo envio de mensagem ao Congresso que sugeria a “utilização de bases, portos e passagem de tropas pelo território nacional”, e propôs iniciar um processo de “preparação psicológica do povo tendo em vista organizar e manter intensa ação anticomunista de contrapropaganda e contra-sabotagem”. O general Góis Monteiro ficou encarregado de elaborar planos visando, entre outras coisas, “à participação das forças armadas brasileiras na defesa do continente americano e à formação de uma grande unidade a ser colocada à disposição da ONU, com o emprego inicial, na Europa”.

A pressão americana sobre o governo brasileiro para o fechamento de um acordo militar recrudesceu após a explosão da terceira bomba atômica soviética em outubro de 1951. Essa pressão resultou no estabelecimento do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos. Através deste o Brasil aderia, incondicionalmente e indiscriminadamente, a toda e qualquer ação de guerra que os Estados Unidos empreendesse em defesa do chamado mundo livre. Ele continha cláusulas econômicas que obrigavam o país a adotar medidas de proteção aos produtos e capitais norte-americanos e a vender manganês, urânio e areias monazíticas a um preço abaixo do seu valor no mercado internacional.

A discussão sobre o conteúdo do acordo se deu às margens do Ministério da Guerra, encabeçado por Estillac Leal. Isto acarretou sua demissão. No confronto entre as tendências internas do governo a ala nacionalista perdeu o seu maior representante. Em 2 de junho de 1952 o governo ainda firmou um outro acordo – secreto – pelo qual a força-aérea norte-americana ficou autorizada a fazer fotos do território brasileiro, com o objetivo de elaboração de um plano estratégico de defesa continental. A indignação dos setores nacionalista chegou ao seu ápice. O governo balançava perigosamente para a direita. Neste momento, a opinião dos comunistas de que o governo Vargas não seria nada mais que um “títere do imperialismo norte-americano” não parecia tão estapafúrdia assim.

A saída de Estillac Leal do Ministério da Guerra deixou o campo completamente livre para que os setores mais conservadores das Forças Armadas assumissem todos os principais postos dentro do governo, reforçando ainda mais o perfil conservador do governo. Acirrou-se o movimento de “caça as bruxas” dentro da forças armadas, com a indiferença de Getúlio Vargas. Um dos resultados foi a derrota acachapante da chapa situacionista, encabeçada pelo ex-ministro, no Clube Militar. Este passou a ser um dos articuladores do golpe que ocorreria alguns anos depois.

A própria campanha em defesa do monopólio estatal do petróleo, que tinha ampla hegemonia dos setores militares nacionalistas, foi reprimida pelo governo. Ocorreu, por exemplo, ato de violência policial contra a II Convenção Nacional de Defesa do Petróleo, realizada em julho de 1951. A campanha O
Petróleo é nosso! era associada à ação solerte dos comunistas.

Vargas, na mensagem ao Congresso Nacional na abertura da sessão legislativa de 1953, afirmou: “Ainda no campo da segurança pública ha que registrar a usual ação preventiva e repressiva do governo contra as atividades subversivas, no curso da qual se empenhou o Ministério da Justiça e Negócios Internos, em colaboração com as autoridades militares em reprimir a prática de atividades subversivas nas Forças Armadas, especialmente nos contingentes sediados no Distrito Federal. Um inquérito policial-militar foi aberto e procedeu-se várias diligências, tendo-se formado, no Exército, na marinha e na Aeronáutica, a presunção de culpabilidade de dezenas de indiciados, sendo vários oficiais”. Portanto, a chamada esquerda militar foi sacrificada, pelas mãos de Vargas, no altar da guerra fria. A ala nacionalista passou a ter reforçada a sua desconfiança em relação ao presidente.

O governo proibiu a realização de manifestações e encontros do movimento de partidários da Paz. Em março de 1952 os comunistas tentaram organizar a Conferência Continental Pela Paz, mas ela foi proibida. No mesmo ano, em sua mensagem anual ao Congresso Nacional, Vargas afirmou: “Na mesma linha de ação subversiva vale destacar as iniciativas e os movimentos conhecidos como ‘ação pró-paz’, que constituem o mais recente disfarce da atividade comunista. Os movimentos ‘pró-paz’ (…) conseguem, de um lado, submeter à influência do comunismo setores da população que repudiariam sua ação ostensiva. Por outro lado, dificultam a repressão das autoridades, porque visam, nominalmente, a propósitos perfeitamente legais. Não obstante, esses movimentos têm sido cuidadosamente fiscalizados pelas autoridades e, ainda recentemente, o Ministério da Justiça decidiu proibir a realização do I Congresso Continental da Paz”. Este teve que se realizar em Montevidéu. Não sem razão o PCB relacionou a decisão governamental à pressão política norte-americana.

As contrapartidas econômicas foram pífias. Em julho de 1951 foi constituída uma comissão mista Brasil-Estados Unidos e em dezembro de 1953 foi extinta unilateralmente pelo governo norte-americano. As relações se azedaram com a eleição do general republicano Eisenhower. Ela representou a consolidação dos setores da grande burguesia industrial e dos grandes financistas que tinham interesses em manter a divisão internacional do trabalho e que, portanto, não tinham qualquer interesse em investir na industrialização dos países periféricos.

A Campanha do Petróleo é Nosso!

Em dezembro de 1951 o projeto criando a Petrobrás foi enviado ao Congresso Nacional. O projeto governamental a estabelecia como empresa mista – que aceitava a participação de capital privado nacional e estrangeiro. Por isto foi alvo de um duro ataque dos setores nacionalistas. O Clube Militar, ainda nas mãos da esquerda, qualificou o projeto como “profundamente nocivo à soberania nacional e à segurança militar de nossa Pátria”. A Convenção Nacional de Defesa do Petróleo denunciou-o como “impatriótico e de índole entreguista”. Em janeiro de 1952, o deputado nacionalista Euzébio Rocha apresentou um substituto excluindo o capital privado da exploração do petróleo nacional.

A pressão nacionalista fez o governo recuar e estabelecer o monopólio sem a participação do capital estrangeiro, mantendo o caráter misto – admitindo a presença do capital privado nacional. O recuo do governo isolou os nacionalistas radicais. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em setembro de 1952. No Senado o projeto foi alterado favoravelmente aos trustes norte-americanos. No entanto, as emendas privatistas foram derrubadas e o projeto estabelecendo o monopólio estatal foi aprovado em julho de 1953. A lei criando a Petrobras foi assinada por Vargas em 3 de outubro de 1953.

Esta foi a maior vitória das forças nacionalistas coligadas e uma derrota importante do imperialismo norte-americano. O governo, naquele momento, estava em conflito aberto com os setores antiindustrialistas e entreguistas da burguesia brasileira e em pleno processo de radicalização da sua política nacionalista.

(continua)

Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)