Na última segunda (4) o Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois recebeu a vista de duas ilustres senhoras que guardam uma história de imensa importância para a os comunistas e para a esquerda brasileira, Helenalda de Souza Resende Nazareth e Helenoira de Souza Resende Nazareth. As duas irmãs da “Preta”, “Fátima” ou Helenira, a guerrilheira paulista que tombou heroicamente nas selvas do Araguaia.

Helenalda e Helenoira, irmãs de Helenira Resende, em entrevista no estúdio da Fundação Maurício Grabois [Reprodução]

O CDM fez uma entrevista que tratou não só da vida militante de Helenira, pois cresce um volume precioso de informações sobre o pai delas: o Dr. Adalberto de Assis Nazareth. “O Maurício Grabois sempre que ia em Assis visitava o meu pai”, afirmou Helenalda para surpresa dos entrevistadores.

O Dr. Adalberto, negro, baiano do Recôncavo, de família de operário marceneiro, se destacou na vida estudantil e cursou Medicina na histórica faculdade da Bahia. Desde garoto ele queria ser médico. Mas era um sonho distante para um filho de operário nos anos 1920, tanto que chegou a ouvir o deboche racista: “O que é que esse negrinho quer ser médico?”

Dr. Adalberto de Assis Nazareth [Reprodução]

Junto com o curso de medicina, que era integral, ele trabalhava com o pai, “seu” Manoel. “Eles talhavam braços de cadeiras, que ainda existem por lá. Meu pai e o meu avô fizeram os santos e os bancos da Igreja Nossa Senhora de Nazareth.” Dr. Adalberto, enquanto estudante, não podia ir ao footing na rua Chile [ponto de encontros da juventude na época], pois ficava trabalhando enquanto seus colegas desfrutavam do lazer.

Formado foi trabalhar em Irará, cidade que concentrava um número grande de comunistas. “Ele passou na frente da Igreja e ouviu uma voz cantando ‘Ave Maria’, de Gounod que o impressionou. Ele, que era ateu, entrou na Igreja para saber quem era a dona daquela voz. E assim conheceu a minha mãe.” Depois de namorados e noivos, Dr. Adalberto foi para Cerqueira César, no oeste paulista, ajeitou a vida com emprego e casa; e voltou para casar e levar a esposa para a nova cidade.

Para Helenalda e Helenoira é difícil saber quando que Dr. Adalbert aderiu ao Partido Comunista do Brasil, mas sabem que o pai recebia em casa os amigos Jorge Amado e Maurício Grabois; e na eleição de 1948 ele foi candidato a vereador pelo Partido Comunista, sendo eleito. Mas nesse momento a ofensiva reacionária do governo Dutra impôs uma grave derrota aos comunistas. O Partido foi colocado na ilegalidade e os mandatos foram cassados.

“Às vezes quando minha mãe nos levava para a missa, tinha comícios do lado de fora. A gente ouvia a voz do meu pai lá fora. Quando meu pai falava o padre dizia: ‘Cantem bem alto para esconder a voz do comunista lá fora!’” Desde pequenas conviveram com a tensão imposta pelo anticomunismo. “Mas minha irmã Nice, a mais velha, dizia: ‘Quem cantar alto eu vou dar um beliscão!’ Ela ficava brava e não deixava a gente cantar. Já a Nilda [outra irmã] fugia de Igreja para ir para o comício ver meu pai. Meu pai dizia que de repente estava a Nilda, pequena, puxando a barra da calça dele.”

“Um dia meu pai chegou com um quadro do Prestes para colocar na sala de casa. Minha mãe não quis saber daquele quadro em casa, então ele levou para o consultório.”

Uma das principais características do Dr. Adalberto era sua relação de generosidade, proximidade e solidariedade com os trabalhadores de baixa renda da cidade. Ele não cobrava consultas para os pobres, recebia-os em horários quaisquer e, por isso, tinha a simpatia e amizade de dezenas e dezenas de trabalhadores que viam nele o que não viam em seus patrões ou na autoridade pública. Organizava peças de teatro também, “na minha casa sempre tinha ensaio de peças que o meu pai estava organizando.” As apresentações eram feitas no cinema da cidade, que o dono era o padrinho da Helenira. “Além disso meu pai também trinava o time de futebol dos meninos da cidade.”

“Quando nós fomos morar em Assis ― cidade maior que Cerqueira César e que tinha escola para todas as irmãs ―, a gente era orientada a dizer que nosso pai não era comunista, se fossemos perguntadas. Era para dizer que ele tinha saído do Partido. Mas a Elza Monnerat e o João Amazonas sempre disseram que o meu pai nunca tinha saído do Partido”, afirma, peremptória, Helenalda.”

Aos poucos as irmãs saíram de Assis e foram para a capital paulista para cursarem o ensino superior. Helenira, a mais nova, foi a última. Na escola, ainda, ela criou o grêmio estudantil ― sendo sua primeira presidente ― e, sob essa militância secundarista, participava dando apoio ao movimento sindical local.

“Ela entrava no movimento dos ferroviários que era forte.” Profissão de extrema importância para o movimento sindical como um todo, os ferroviários, sempre foram estratégicos em qualquer lugar, pois têm uma mobilidade grande, são uma categoria combativa e unida.

“Ela participava das campanhas eleitorais de prefeito e vereadores. Ela fazia discursos e falava na Rádio Difusora de Assis. “Às vezes meu pai estava ouvindo rádio e de repente ouvia a voz da Nira: ‘Meu deus, a Nira falando no rádio! Eu já falei que eu não quero’. Ele falava duro, mas tinha um certo orgulho de ouvir.”

Helenira, a Preta, tombou heroicamente nas selvas do Araguaia [Reprodeução]

“Então, quando ela vem para São Paulo, ela já está envolvida politicamente.” Helenira chega entre 1964 e 1965 na capital paulista com o intuito de ser uma crítica literária. “Em casa havia uma biblioteca com muitos livros. Inclusive livros que a gente não podia ler.” O curso universitário para essa profissão que estava disponível em São Paul era o de Letras, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP) da Universidade de São Paulo, na rua Maria Antonia.

Com o processo que resulta no golpe o Dr. Adalberto sofre um primeiro infarto, em 1964. Em 1965 outro, agora fatal. “Helenira dizia que os militares mataram o nosso pai.” Com o Dr. Adalberto ainda vivo, Helenira entrou na faculdade, começou a estudar e também a se envolver com o movimento estudantil. “Aí ele já não se opunha mais à militância de Helenira.” Nessa época ela era da Juventude Universitária Católica (JUC).

Em algum momento, que não se sabe, quando, entre 1966 e 1967, Helenira passa a compor os quadros da Ação Popular. “Ela era amiga da Catarina Meloni.” Não ficou muito tempo na AP e logo ingressou no PCdoB. O movimento estudantil tinha unidade contra a ditadura que havia se imposto com o golpe de 1º de abril, mas eram muitas as opiniões sobre as táticas para a derrota da ditadura. “Minha irmã sempre defendeu a luta armada! Tinha muitos colegas que vinham em casa e se discutia isso. Minha casa sempre estava cheia de estudantes.”

A experiência de Cuba, China, Vietnã e as guerras de libertação nacional na África e Ásia se colocavam como argumento de força em defesa da luta armada. E os que defendiam luta armada também se dividiam em diversas formas. A AP e o PCdoB de Helenira defendiam a Guerra Popular Prolongada, que deveria ter uma forte aproximação com o povo.

Quando mataram Edson Luís, em 28 de março de 1968, ela foi para o Rio de Janeiro. Ela já era candidata à diretoria da UNE. Nesse momento Helenira compunha, por São Paulo, uma comissão nacional estudantil do PCdoB junto com Aurélio Miguel (BA), Ronald Rocha e Adriano Fonseca (RJ), José Genoino (CE), que eram dirigidos por Ozéas Duarte e Diógenes Arruda Câmara. Helenira ajudava a dar pouso e esconderijo para os camaradas. “Ela deixou uma vez o Genoino uns tempos lá na casa da Helenoira.”

Para o 30º Congresso da UNE, em 1968, havia um enorme perigo de divisão da entidade. O PCdoB se aliou à AP para que se fizesse um movimento para que não se permitisse essa derrota contra a principal organização do movimento social brasileiro daquele momento. Em São Paulo, a UEE-SP foi dividia por ação de forças políticas minoritárias e isso poderia transbordar para a UNE. Com isso, o PCdoB criou o Movimento de Unidade e Ação (MUA) para defender a unidade das entidades estudantis. Helenira era uma das principais figuras de movimento e, por isso, chegou ao Congresso de Ibiúna com a indicação do PCdoB para compor uma das vice-presidências da entidade. Desde sua reorganização em 1962, o PCdoB não havia sido tão forte no movimento estudantil.

Helenira, de punho em riste, contrapõe posição em assembleia estudantil. De costas, em pé, José Dirceu. [Reprodução]

Mas pela organização descuidada do Congresso a polícia encontrou o conclave momentos depois de iniciados os trabalhos. Todos presos. Inclusive Helenira. Identificada, não teve a mesma sorte da maioria dos delegados. Helenira já havia sido presa. “Numa pixação nos muros do Mackenzie, aqueles que deviam tê-la informado que a polícia chegava não o fizeram. Foi presa e logo solta. Mas disseram que se ela voltasse não teria o mesmo destino.” Pois voltou, por conta de Ibiúna.

“Uns amigos nos perguntaram se eu queria conversar com o pessoal do PCdoB, que eles poderiam arranjar advogado pra gente. Eu não sabia que esses amigos eram do PCdoB e que a Helenira também já era do PCdoB. Eu topei e fui lá falar com o pessoa do PCdoB. Aí conheci o Pedro Pomar e o outro que estava lá, eu acho, era o Maurício Grabois. Eles me apresentaram a Dr.ª Pacheco, advogada do PCdoB. E nós fomos lá com ela.” Teve tratamento especial, inclusive, pelo famigerado Fleuri, pois não era reincidente, apenas. Era também filha do Dr. Adalberto. “Disseram: ‘Filha de peixe!’”

Helenira em foto após o Congresso de Ibiúna [APESP]

“Chegou pra gente um bilhete. Um carcereiro ficou amigo dela e topou enviar um bilhete para a família. Aí a gente pode enviar cigarros pra ela.” Fizemos algumas visitas, levamos nossa mãe para ver a Nira.” E continua: “Depois de um tempo, um dia antes do AI-5, a Dr.ª Pachequinho conseguiu um Habeas Corpus pra Helenira.”

“Com o clima pré-AI-5 a Dr.ª Pacheco orientou que ela entrasse na clandestinidade.” Não poderia mais levar uma vida normal. “E o PCdoB não tinha ainda um esquema montado de clandestinidade, então eu me responsabilizei pela segurança dela. Falei com a Madre Cristina do Sedes Sapientia e ela escondeu a Helenira. Num primeiro momento nem eu sabia onde estava a minha irmã, mas depois eu fiquei sabendo e pude ter contato com direto com ela. Ela ficou alguns dias num colégio que não existe mais onde hoje é o Parque Augusta.”

Numa semiclandestinidade, Helenira cumpriu suas tarefas. O foco era organizar o Congresso da UNE que não pode ser realizado por conta da chegada da polícia. Foram feitas plenárias nos estados que participaram, sobretudo, delegados que não haviam sido presos em Ibiúna, ou que não estivessem em seus estados de origem e, se possível, com identidade “fria”. Este último era o caso de Helenira.

A tentativa de plenária estadual em Curitiba foi flagrada pela polícia e Helenira foi presa pela terceira vez. “Ela foi presa com o nome de Eliana. Eu sabia por que ela me disse que se acontecesse outra coisa estaria com o nome de Eliana Barbosa.” Mas logo foi solta, pois as polícias estaduais não tinham como compartilhar informações e Helenira, como outros, conseguiu escapar ilesa como desconhecida da polícia.

A irmãs eram muito unidas. A última vez que elas viram Helenira foi no casamento de Helenalda. “Ela ficou escondidinha sem chamar a atenção pra ela. Nós nos falamos. Eu casei em 1969.”

“A Heleneide havia recebido um chamado da Helenira já na clandestinidade para comparecer num endereço no Rio de Janeiro. E lá ela disse que ia ficar sem aparecer para a família por um bom tempo, uns vinte anos.”

“Depois, lá por 1978, nós fomos participar do Comitê Brasileiro de Anistia e ficávamos lá ouvindo as pessoas. Nós não sabíamos nada de PCdoB, Araguaia, nada. Não falávamos nada por medo de falar e jogar a atenção da polícia na Helenira. Ali eu conheci todo o pessoal Criméia, Laura Petit, Genoino, Rioko.”

“Nas reuniões do CBA havia um momento em que se falava o nome dos desaparecidos e todos respondiam ‘Presente!’. Determinado, numa reunião no TUCA, dia tomamos coragem e dissemos o nome da Helenira. O Genoino e a Rioko estavam lá longe da gente… Vieram até nós e nos contaram tudo sobre o Araguaia.”

A Rioko eu conhecia, pois ela era uma das pessoas com quem eu conseguia informações sobre a Helenira logo depois do AI-5. Por esses encontros eu levava roupas limpas, pegava as sujas… dava um auxílio.”

“Aí nós entramos no movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos. Quando a ditadura acabou a gente esperava que haveria mais informações. Esperávamos que nos governos do Lula também tivesse maiores avanços nisso. A Erundina nos ajudou muito!”

A história da Guerrilha ainda não chegou ao fim. Os familiares ainda buscam informações, responsáveis pelo assassinato dos seus entes, os restos mortais para os devidos funerais. Há muita informação que paira na região, mas o medo silencia e as ameaças seguem soltas. Não há como unificar a nação sem o fechamento das feridas que ainda sangram nessas famílias.

A conversa com Helenalda e Helenoira, junto com Marta Costa (filha de Helenoira e sobrinha de Helenira) passou ainda por vários assuntos. Seguramente deixaram a impressão de um profundo orgulho da irmã desaparecida, mas também o sentimento de falta, de saudade… e de esperança.

Helenira faria 80 anos no próximo 11 de janeiro. Pelo seu ímpeto estaria, provavelmente, contribuindo com as lutas mais sentidas do povo, com a construção do socialismo. Helenira faz falta nos dias de hoje.

Helenira, presente!

Nuno Godolphin, Marta Costa (sobrinha de Helenira, filha de Helenoira, militante dos direitos humanos), Helenalda, Helenoira, Fernando Garcia e Felipe Spadari