Capítulos da História da Ação Popular (3ª Parte)
Ação Popular Marxista-Leninista e a aproximação com o PCdoB
A III Reunião Ampliada da Direção Nacional, realizada em maio de 1971, aprovou o Estatuto e o Programa-Básico da organização, que agora passava a se chamar Ação Popular Marxista-Leninista, AP-ML. Elegeu-se o primeiro Comitê Central e o Biro Político. A definição pelo formato de comitês, em substituição às formas de comandos (“linha orgânica pequeno-burguesa”), já fora tomada depois do VI CEP em outubro de 1970.
O novo programa deixou de caracterizar o país como semifeudal ou semicolonial – que era uma aplicação mecânica do modelo da Revolução Chinesa, que a AP havia importado através do Esquema de seis pontos. O Brasil passou a ser considerado um país capitalista, mas ainda com resquícios de relações semifeudais. “Os alvos da revolução nacional, democrática e popular do Brasil são três: os imperialistas, principalmente os imperialistas norte-americanos; os grandes capitalistas ligados aos imperialistas e os latifundiários”. “A essência da estratégia da nova Ação Popular é a conquista de um governo democrático popular e revolucionário, dirigido pela classe operária e seu partido, através da luta armada”. Defende a guerra popular prolongada como caminho da revolução brasileira. Com isso a AP dava um passo a mais no sentido da aproximação e da unificação com o PC do Brasil. Nesta reunião elegeu-se o primeiro Comitê Central. Novamente Jair Ferreira de Sá, agora representante da minoria, foi reconduzido ao posto de primeiro secretário.
Neste processo, no entanto, a maioria fez outras concessões à minoria. A principal delas foi, justamente, em relação às chamadas “questões de partido”. A resolução da III RADN afirmava que a AP-ML continuaria lutando “pela construção de um partido proletário no Brasil, de tipo inteiramente novo, marxista-leninista-maoísta”, embora se devesse levar em conta a existência de um “partido marxista-leninista, o PC do Brasil”.
A partir daí afirmava: “tomando por base os princípios e as posições desse Programa Básico (…), propõe ao Partido Comunista do Brasil e a todas as forças e revolucionários verdadeiramente marxista-leninistas que façamos os máximos esforços para encontrar (…) o caminho através do qual o proletariado do Brasil poderá acelerar e levar a revolução brasileira até a vitória, com a arma indispensável de um partido proletário de tipo inteiramente novo, marxista-leninista-maoísta, correto, unificado e poderoso”. Alguns dirigentes da AP pensavam unificar neste partido de tipo inteiramente novo elementos do PCBR, o PCR e a Ala Vermelha.
O maoísmo estava mais forte do que nunca no interior da AP-ML. “A nova Ação Popular, dizia o documento, guia-se pelos princípios científicos universais do marxismo-leninismo-maoísmo (…). O maoísmo ou pensamento Mao Tse-tung é (…) a terceira etapa do marxismo, o marxismo-leninismo de nossa época revolucionária em que o imperialismo caminha para a ruína completa e o socialismo avança para a vitória em escala mundial (…). A teoria da continuação da revolução sob a ditadura do proletariado para prevenir a restauração do capitalismo e levar a revolução socialista até o fim é a contribuição teórica mais importante do camarada Mao Tse-tung e o marco da nova etapa do marxismo-leninismo (…). O camarada Mao Tse-Tung é o líder incontestável do proletariado do mundo inteiro, é o dirigente mais provado e experiente do movimento comunista internacional em nossos dias (…) defendendo e desenvolvendo o marxismo-leninismo em todos os domínios e de maneira genial e criadora”. Resumindo: para esta nova fase do imperialismo – e da teoria que serviria para interpretá-lo (o maoísmo), seria preciso um Partido de tipo inteiramente novo. Estes três elementos eram inseparáveis na lógica política da AP-ML.
Desde 1967, a organização vinha divulgando textos como o Livro Vermelho de Mao Tse-tung e Salve a vitória da Guerra Popular de Lin Piao. Duas pequenas obras que alimentariam as chamas da Revolução Cultural chinesa e constituiriam as bases teóricas e políticas do maoísmo em todo o mundo.
Na reunião do Bureau Político, realizada em julho de 1971, Duarte Pereira defendeu a necessidade de unificação em torno do PCdoB, o partido criado em 1922 e reorganizado em 1962. A questão do polo principal para ele estava superada. Em torno dessa ideia compôs-se uma sólida maioria: composta por Duarte Pereira, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Renato Rabelo. Decidiu-se, então, convocar uma reunião extraordinária do Comitê Central para discutir a proposta. Este fato levou a um agravamento da luta interna. A minoria abominou a tese de Duarte e, prevendo uma derrota, rejeitou a convocação de uma nova reunião do CC, argumentando problema de segurança.
Neste ínterim começa a se delinear uma diferenciação no seio da maioria. Duarte mantinha a defesa da unificação da AP em torno do PCdoB, mas pensava com isso estar contribuindo para a construção de um partido de tipo inteiramente novo. Esse continuava sendo um grave obstáculo à unificação comunista, tendo em vista que o PCdoB não aceitava que o pensamento de Mao Tse-tung representasse uma terceira etapa do marxismo e nem a proposta de construir um partido de tipo inteiramente novo.
Na reunião extraordinária do Comitê Central ocorrida em novembro de 1971 na Paraíba, Aldo Arantes, Haroldo Lima, Renato Rabelo apresentaram um documento pró-unificação que foi aprovado pela maioria, inclusive por Duarte Pereira. O autor foi Haroldo Lima. A minoria, representada por Paulo Wright e Jair Ferreira de Sá, conseguiu o apoio apenas do líder camponês Manoel da Conceição. A maioria afirmava a existência de uma identidade programática com o PCdoB e defendia a unificação tendo-o como polo principal, como havia proposto Duarte. Mas houve uma nuance, pois ela dizia que o PCdoB já era um partido da “terceira etapa” desde a sua reorganização em 1962, pois ele havia colocado no centro da sua política o combate ao revisionismo contemporâneo, encabeçado pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS). De fato, o PCdoB foi um dos primeiros partidos do mundo a se posicionar contra o chamado revisionismo de Kruschev. Algo reconhecido pelos próprios comunistas chineses.
Estabelecia o documento: “A justa compreensão do princípio do partido único e suas consequências, e, portanto, a justa compreensão de que num país onde já exista um partido da classe operária as demais forças marxista-leninistas que surjam devem fortalecê-lo, aliada à posição da existência no país de um partido revolucionário da classe operária, com unidade fundamental com a Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil, situa para todos os verdadeiros marxista-leninistas a tarefa inadiável de colocar na ordem do dia a luta para levar até o fim o movimento de proletarização da organização e criar as condições para a sua incorporação ao Partido Comunista do Brasil”.
Definida a linha geral pela integração ao PCdoB, foi decidida, por proposta de Duarte, a convocação de um congresso da AP, onde seriam resolvidas as divergências no seio da maioria e desta com as posições do PCdoB; feito um balanço dos dez anos de existência da organização, procurando extrair lições; e aprovados os passos a serem dados visando à unificação com o PCdoB. O principal opositor a essas decisões, Jair Ferreira de Sá, contra a sua vontade, continuou em seu posto na direção. Uma situação que logo se tornaria insustentável.
Um fato inusitado criaria certa confusão no debate interno. Logo após a reunião do Comitê Central da AP, que dera ampla vitória aos defensores da unificação com o PCdoB, foi publicado no jornal A Classe Operária de novembro de 1971 o artigo “A Proposta da AP”. O texto sem assinatura, mas escrito por Pomar, fez duras críticas em relação às decisões aprovadas pela AP em maio e julho que diziam respeito à unificação visando construir um partido de tipo inteiramente novo, tendo por base o marxismo-leninismo-maoísmo.
Em relação ao Documento-Base afirmou Pomar: “nele o marxismo-leninismo foi sacrificado em benefício das interpretações trotskistas e pequeno-burguesas da realidade e da revolução”. Através dele “dificilmente poderiam os atuais dirigentes da AP chegar a uma tese marxista-leninista sobre o papel do partido proletário e a decisões justas”. Continua: “tais opiniões são absurdas, idealistas e nocivas”. Não tendo ciência dos últimos debates no interior do Biro Político e no Comitê Central da AP – e da proposta vitoriosa de Duarte a favor da incorporação-, deixava a entender que a força anti-PCdoB havia sido vencedora.
Logo em seguida – possivelmente em dezembro – haveria uma nova reunião entre as duas direções, mas acabou sendo cancelada por decisão do PCdoB. A minoria procurou utilizar o artigo para obstaculizar ao máximo a unificação. A maioria, pelo contrário, buscou não fazer alarde sobre ele, argumentando que o dirigente que havia escrito o artigo não estava devidamente informado sobre os andamentos das discussões no interior da direção da AP. De fato, Carlos Danielli, que mantinha contato mais permanente com a organização, estava em missão fora do país, participando do VI Congresso do Partido do Trabalho da Albânia. Quando ele voltou restabeleceram-se as relações normais e começaram a delinear a maneira que se daria o processo de integração da AP no PCdoB.
Um documento entregue por Danielli à Duarte Pereira – possivelmente em agosto de 1972 – estabelecia algumas tarefas que caberiam às duas organizações. Nele, entre outras coisas, se afirmava: o PCdoB, “deve considerar positivo o processo que se verifica na AP. Vê com simpatia e interesse a tendência revolucionária aí surgida e apóia essa tendência. O PCdoB condena as tendências anti-proletárias que visam transformar AP noutro partido ou adotar a linha neotrotskista. (…) O PC do B crê que seria útil uma carta de sua direção à Maioria da AP com o objetivo de ajudar no processo em curso da unificação”. Esse texto foi discutido numa reunião em que estiveram presentes Danielli e os dirigentes da maioria da AP: Duarte Pereira, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Renato Rabelo. Tudo se encaminhava para a resolução dos problemas ocasionados pelo artigo de novembro. Mas um dos pontos da proposta apresentada – a carta da direção do PCdoB à maioria marxista-leninista da AP – acabou não sendo cumprido, possivelmente devido ao assassinato de Carlos Danielli, ocorrido logo depois.
Diante do aumento da violência terrorista da ditadura, a direção da Ação Popular lança uma campanha que tinha como slogan “A força do povo é maior que a repressão”. Dentro deste esforço foi produzido o Livro Negro da Ditadura Militar, trazendo um detalhado relatório sobre repressão, prisões, torturas, mortes e desaparecimentos ocorridos no Brasil dos generais. Na sua elaboração, que levou três anos, se envolveram inúmeros militantes, como Carlos Azevedo, Bernardo Joffily, Jô Moraes, Divo Guisoni, Raquel Guisoni, sob a supervisão de Duarte Pereira e depois de Renato Rabelo e Haroldo Lima. A capa que trazia uma caveira usando quepe de general foi feita por Elifas Andreato. A obra, produzida clandestinamente, veio à luz em julho de 1972 – com duzentas páginas divididas em 26 capítulos.
Os últimos episódios da luta interna
A luta interna se agravou e a maioria passou à ofensiva. Em março de 1972 foram lançadas as Contribuições ao Estudo Científico da Sociedade Brasileira, de autoria da maioria marxista-leninista do Birô Político da Ação Popular, cuja redação final foi dada por Haroldo Lima. Em 26 de setembro de 1972, o Birô Político divulgou o documento Defender a organização, liquidar o fracionismo neotrotskista e avançar na preparação do congresso e formalizou a destituição de Paulo Wright (João) e Jair Ferreira de Sá (Dorival) de todas as suas funções dirigentes. Dizia o texto: “João e Dorival não aceitaram o desenvolvimento das posições do CC em torno da questão do partido (…), passam a uma posição claramente antipartido e se lançam furiosamente contra o partido da classe operária, o PCdoB. Defendem a necessidade de um novo partido, criado com base em organizações e grupos que eles intitulam marxistas”. A primeira secretaria é assumida por Duarte Pereira.
Neste período, influenciados pelo artigo de Pomar, militantes e bases inteiras da AP começaram a ingressar no PCdoB. O caso mais grave ocorreu na Bahia onde João Batista Drummond, um dos principais dirigentes da AP no estado, aderiu ao Partido e levou vários militantes com ele. A minoria e Duarte Pereira protestaram, dizendo que a direção do PCdoB estava sendo desleal ao tentar desorganizar a AP, que decidiria sobre o assunto no próximo congresso. A própria maioria considerou isso um erro tático, pois enfraquecia suas posições pró-unificação e jogava água no moinho da oposição. Contudo, não se alterou a correlação de forças no interior do Comitê Central da AP e o processo de unificação seguiu adiante.
Em 1º de outubro de 1972 foi lançado novo documento: Nas fileiras da Nova Ação Popular não há lugar para fracionistas e recalcitrantes. Jair Ferreira de Sá e Paulo Wright seriam novamente chamados de trotskistas e expulsos da organização. A grave acusação estava assentada no fato de sustentarem que o Brasil já era um país plenamente capitalista, sem relações produção de tipo semifeudal ou coisa que o valha. Pior do que isso, consideravam que o país se tornara uma potência imperialista. Assim, segundo a maioria, teriam borrado “a linha divisória fundamental entre países opressores e países oprimidos, traçados por Lênin” ao se iludirem com a propaganda triunfalista do regime militar. Duarte Pereira foi categórico ao afirmar que a expulsão não se deveu às suas posições políticas equivocadas e sim pelas práticas fracionistas que vinha adotando, colocando em risco a unidade e a segurança da organização.
Dois acontecimentos vieram a apressar os passos da integração ao PCdoB. O primeiro foi a eclosão da resistência armada no Araguaia, em abril de 1972. Aquilo que acreditavam ser o início da tão sonhada guerra popular despertou enormes simpatias nas fileiras da AP. O segundo fato foi a dura repressão que se abateu sobre a direção do PCdoB, matando Carlos Danielli, Lincoln Oest, Luiz Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque. A euforia do Araguaia somou-se à indignação pelos assassinatos dos dirigentes comunistas.
Em nota ao PCdoB, publicada no Libertação em maio de 1973, o Comitê Central da AP afirmava: “Se a barbárie fascista intimida os covardes, enche de mais resolução os autênticos revolucionários. A sanha terrorista desencadeada pela ditadura Médici contra o PC do Brasil e o sangue derramado por quatro de seus destacados dirigentes tornam mais inabalável a nossa firme convicção de que a todos os marxista-leninistas do Brasil cabe buscar fortalecer, prontamente, o PC do Brasil. Conduzir a Ação Popular a este objetivo tornou-se para nós, mais justo e urgente”.
A Ação Popular também havia tido os seus mártires na luta contra a ditadura. Morreram sob torturas: Jorge Leal Gonçalves Pereira, Raimundo Eduardo da Silva e Luiz Hirata. Rui Frazão seria morto logo após sua incorporação ao PCdoB – e João Batista Drummond assassinado durante a Chacina da Lapa em 1976.
Incorporemo-nos ao PCdoB
Em dezembro de 1972, saíram duas circulares do Birô Político da AP – Avançar na unificação marxista-leninista das fileiras da Ação Popular e Avante – que não apontavam para uma unificação imediata com o PCdoB. Segundo elas, não havia ainda unidade política e ideológica suficiente para a “incorporação orgânica entre a Ação Popular e o PCdoB”. E a tarefa central seria “a luta ideológica preparatória ao II Congresso (…). Até o segundo congresso a Ação Popular manteria sua unidade e independência orgânica em relação ao PCdoB, continuando a recrutar para a sua organização, com base no seu programa básico e nas resoluções da Reunião extraordinária do Comitê Central de novembro de 1971”.
Em janeiro de 1973 sairia o documento Vitória do Marxismo-Leninismo dando um balanço da luta contra o grupo trotsquizante de Dorival e João recém-expulso. Segundo ele, o afastamento dos dissidentes havia criado “as condições político-ideológicas necessárias à incorporação orgânica com o PC do Brasil, verdadeiro e único partido da classe operária em nosso país”.
Neste documento não se falava mais de uma nova etapa do imperialismo, nem do maoismo como uma terceira etapa do marxismo ou da necessidade de um Partido de tipo inteiramente novo. Pelo contrário num dos seus parágrafos, sucintamente, se afirmava: “E o segredo organizativo é a substituição da ideia de Lênin pela de Trotsky, acerca do tipo de partido necessário para dirigir a revolução na época histórica do imperialismo e da revolução proletária, época que continua, e de como se construir partido”.
Sobre essa mudança teórica, fundamental no processo de unificação, escreveu Duarte Pereira: “Tendo recebido a incumbência de dar forma final à chamada ‘Tese da Unificação’ (…) consegui, então, identificar a raiz de nosso erro: a mudança na correlação de forças não alterava o conteúdo básico de nossa época histórica, que continuava (e continua) sendo a luta entre o sistema capitalista-imperialista e a revolução proletária em andamento, processos estudados pelo marxismo e pelo leninismo”. Por isso, “nem a base a base teórica, nem as formas de organização dos partidos proletários marxista-leninista precisavam se revestir de características inteiramente novas para dar conta desses desafios”. Continua ele: “Desatado o nó da época histórica incorretamente caracterizada, foi possível reavaliar o sistema das três posições, o que, proposto por mim, foi aceito pelos demais integrantes da ‘maioria’ do CC da AP.” A Ação Popular começava romper com certas concepções maoistas, que haviam frutificado durante o período da Revolução Cultural.
Contudo, o problema de se convocar o II Congresso da AP continuava dividindo a maioria. Aldo Arantes, Haroldo Lima e José Renato Rabelo consideravam que não seria mais o caso de esperar a sua realização para se decidir sobre a incorporação ao PC do Brasil. Isso agora passava a ser um ato burocrático, tendo em vista o início da guerra popular e a operação de extermínio levado a cabo contra a direção do PCdoB.
Haroldo e Aldo esclareceram a sua posição: “A organização (AP) deveria ser conduzida até o 2º Congresso”. Porém, “os novos crimes dos fascistas contra o partido do proletariado provocaram grande indignação e fizeram que o desejo do pronto ingresso no Partido se estendesse por todas as bases. A realização de um congresso se mostrava arriscada e, sobretudo, prescindível (…). Se as condições políticas do país não fossem de fascismo é possível que ainda se justificasse um congresso (…) para fechar o balanço da AP e de sua atividade”. Mas este não era o caso. (Haroldo & Arantes: 1984:156).
Duarte Pereira, pioneiro na defesa da unificação em torno do PCdoB, discordou dessa proposta, que considerava açodada, pois, segundo ele, se furtava de analisar mais profundamente as diferenças que existiram entre as duas organizações até recentemente, como a avaliação do papel de Stalin no processo de construção do socialismo. A AP, a exemplo dos comunistas chineses, tinha uma posição mais crítica em relação a esse dirigente soviético. “O que aproximava a AP da experiência revolucionária chinesa, principalmente o pensamento Mao-Zedong, era que ela via nessa experiência e nesse pensamento a ênfase anti-dogmática e anti-burocrática, uma crítica de esquerda ao chamado stalinismo”, afirmou ele. Outro ponto em que existiam diferenças de opinião era o relativo a caracterização da sociedade brasileira, considerada pelo PCdoB ainda como semi-feudal e semi-colonial, subestimando assim os avanços do capitalismo no campo.
Para Duarte, mudanças teóricas importantes haviam sido feitas (em relação à nova fase do imperialismo e do marxismo e da necessidade de um partido de tipo inteiramente novo), sem terem sido suficientemente compreendidas e incorporadas pelo conjunto dos militantes. Por isso, manteve-se firme na sua posição em defesa da realização de um congresso, no qual se faria um balanço da experiência dos 10 anos da AP – a sua evolução política e teórica – e seriam discutidas as condições da unificação. Suas posições foram derrotadas e no dia 17 de maio de 1973, o Birô Político da Ação Popular Marxista-Leninista aprovou o documento Incorporemo-nos ao PC do Brasil.
Mesmo ali ainda pode ser lido: “Deve-se cumprir ainda, secundariamente, algumas tarefas para encerrar com ampla vitória a vida da Ação Popular. Trata-se de elaborar, debater e aprovar a tese para incorporação. Alguns passos práticos, como o da forma de realizar o II Congresso, serão esclarecidos posteriormente”. Contudo, o II Congresso nunca se realizaria. Nos estertores da AP, com o afastamento de Duarte Pereira da maioria, a direção principal coube a Haroldo Lima que ultimou os preparativos para a incorporação dos militantes à nova organização.
Os dirigentes da AP então marcaram uma reunião com a direção nacional do PCdoB visando informar sobre as decisões tomadas por eles. Para essa missão foram escalados Haroldo Lima e Renato Rabelo – o outro membro da maioria, Aldo Arantes, estava em missão na China. Em nome do PCdoB participaram dois veteranos combatentes: João Amazonas e Pedro Pomar.
O que mais marcou os dois representantes da AP foi a afirmação de João Amazonas, corroborada por Pomar: “no Brasil é um ato de coragem querer entrar para um Partido como o PCdoB. Com o início da Guerrilha do Araguaia, nós todos estamos condenados. Entrar agora é colocar o nome na lista dos condenados à morte. E é o que vocês estão fazendo; recebam nosso abraço pela coragem com que estão se comportando”. O que não sabiam que logo em seguida começaria também uma caçada sangrenta aos remanescentes da AP-ML que praticamente eliminaria sua direção.
Mesmo sem reivindicarem, Renato Rabelo, Haroldo Lima e Aldo Arantes passaram a integrar a Comissão Executiva do PCdoB. Outros quadros da direção da AP foram cooptados para o Comitê Central, como Péricles de Souza, José Novaes e Ronald de Freitas. Também ingressou naquele organismo João Batista Drummond, que havia entrado no partido antes da conclusão do processo de incorporação. Por questão de segurança, nos estados foi montada uma segunda estrutura para integrar o pessoal que vinha da AP. Em muitos casos, os membros provindos da AP eram em número maior do que os que já eram do PCdoB. Esta medida, embora desse um pouco mais de proteção, criava o risco de surgirem duas políticas distintas. Coisa que, no geral, acabou não acontecendo. Duarte Pereira – aquele que havia proposto a unificação em torno do PCdoB – não ingressou com os demais membros da maioria. Ele se colocou como candidato a membro do PCdoB, mas sob condição de poder continuar o debate sobre suas posições teóricas e políticas. Coisa que as condições da época não permitiram.
A minoria expulsa, entre o final de 1972 e início de 1973, buscou manter viva a Ação Popular Marxista-Leninista. Nesta tentativa desesperada acabou rompendo as regras de segurança, que tanto caracterizaram a antiga AP, e isso levou à “queda” e ao assassinato de vários de seus quadros mais importantes. Ainda em 1973, foram mortos Paulo Stuart Wright, Honestino Monteiro Guimarães, José Carlos da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, Umberto Albuquerque Câmara Neto, Eduardo Collier Filho e Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira. Sobreviveram ao massacre Jair Ferreira de Sá e Manoel da Conceição.
Encerrando um ciclo e começando outro
Estranhamente, após o artigo de Pedro Pomar, a direção do PCdoB faria silêncio sobre o processo de incorporação. Não existem referências a esse importante fato nos exemplares d’A Classe Operária publicados entre 1973 e 1976, quando ocorreu o grosso dos ingressos. Tanto a incorporação dos marítimos (1966) quanto a da maioria revolucionária do Comitê Regional da Guanabara (1968) foram rapidamente anunciadas e comemoradas. O jornal Libertação, agora sob direção do PCdoB, continuou sendo publicado como órgão da Ação Popular Marxista-Leninista até 1975. As razões disso, muito provavelmente, estão ligadas aos problemas de segurança.
Contudo, sabemos que Aldo Arantes e Haroldo Lima foram escalados para escrever um balanço da experiência da Ação Popular e do processo de incorporação. Isso deve ter sido feito entre 1974 e 1976. No final deste ano, o documento intitulado Vitória do Marxismo-Leninismo: Ação Popular incorpora-se ao PCdoB – que teve na sua elaboração a contribuição de João Amazonas – estava pronto para ser aprovado pelo Comitê Central.
A repressão impediu que isso fosse realizado. O texto foi apreendido durante a operação que resultou na Chacina da Lapa, na qual foram assassinados Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drummond. Uma cópia foi encontrada por Haroldo Lima e Aldo Arantes depois que saíram da prisão. A segunda parte do texto, tratando das lições da incorporação, acabou sendo publicada como apêndice em seu livro sobre a história da Ação Popular. Ali pode-se ler: “A incorporação da AP ao PC do Brasil foi (…) uma inequívoca vitória do marxismo-leninismo e uma flagrante derrota do revisionismo. Reforçava a tendência geral de aglutinação em torno do PCdoB e apontava para os marxista-leninistas de outras origens o caminho provado que devem seguir para ajudar na construção do partido proletário no Brasil”.
Finalmente, no 6º Congresso do PCdoB foi aprovado o primeiro documento oficial trazendo um balanço da incorporação. Segundo ele, o processo não poderia ter sido mais positivo. Diz o texto: “Aspecto positivo da incorporação da AP foi o reforçamento político e orgânico do Partido, pelo grau de combatividade e nível político de grande número de quadros que haviam se formado nas difíceis condições de luta contra o fascismo. Esse reforço deu-se em nível regional e no Comitê Central, na reestruturação de 1975”. Continua: “A incorporação dos militantes e dirigentes da Ação Popular foi a que se revelou mais correta e a que mais benefícios trouxe ao partido”.
* Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
Agradecimentos
Agradeço ao Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois pela cessão das entrevistas de Aldo Arantes, Haroldo Lima, Renato Rabelo, Péricles de Souza, Ronald Freitas, Bennardo Joffily, Vital Nolasco.
Agradeço a Haroldo Lima, Aldo Arantes e Duarte Pacheco Pereira pelas entrevistas concedidas e a ajuda dada para o aprimoramento do texto. Os erros e imprecisões que persistirem devem-se única e exclusivamente ao autor dessas linhas.
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Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.