Primeiro de Maio de 1950. Era domingo. As organizações operárias, dirigidas pelos comunistas, ocuparam um antigo parque da cidade gaúcha de Rio Grande, e realizaram uma grande festa popular. Havia barraquinhas e bandas de música. No ato, é claro, não poderiam faltar os discursos inflamados. Os oradores se revezavam, lembrando a importância daquela data, denunciando o arrocho salarial e os sucessivos ataques promovidos pelo governo do general Dutra contra os direitos e à liberdade de organização dos trabalhadores. Protestavam, também, contra os planos de guerra do imperialismo norte-americano. Conquistar a paz e o desarmamento nuclear eram as principais bandeiras dos comunistas naqueles anos sombrios nos quais o mundo parecia diante de uma guerra iminente. A humanidade corria perigo.

Crianças, homens, mulheres,
o povo unido cantava.
O povo simples da rua,
comovido se abraçava.

O mês das flores nascia
e o vento lembrava as flores
no perfume que trazia.

Foi num primeiro de maio,
de pensamento profundo.

“Uni-vos, ó proletários,
ó povos de todo o mundo”.

Alguns se queixavam dizendo que aquele Primeiro de Maio classista poderia ter sido bem maior, caso as autoridades locais não tivessem organizado, no mesmo dia e hora, um jogo entre o Esporte Clube Rio Grande e um renomado time carioca, o Vasco da Gama. Muitos operários, menos conscientes, haviam preferido acompanhar aquela partida futebolística. Mesmo assim, poderia ser contadas cerca de mil pessoas naquela combativa manifestação político-cultural.
Acabado os discursos, os participantes resolveram sair em passeata pela cidade. Pretendiam terminar seu ato na sede da tradicional União Operária, que havia sido fechada pelo governo no ano anterior. Era lá que os operários mais combativos se reuniam e organizavam suas lutas.
As intervenções ministeriais nos sindicatos, visando eliminar a presença dos “vermelhos”, levaram que os comunistas propusessem a criação ou o fortalecimento das organizações operárias autônomas – fora da estrutura sindical oficial. Acreditavam que essa era a única maneira de manter os trabalhadores minimamente organizados para a luta. A União Operária de Rio Grande era uma dessas muitas entidades que foram retomadas e reativadas pelos comunistas.

Foi quando a voz calma e séria,
no velho parque vibrou,
e um convite alvissareiro
o povo unido escutou:

“Amigos, a rua é larga.
Unidos vamos partir.
A nossa ‘União Operária’
nós hoje vamos abrir.”

No peito de cada homem
Um clarão aparecia.
Em qualquer parte do mundo,
uma estrela respondia.

“A casa de nossa classe,
fechada por que razão?
Amigos, vamos à rua,
e as portas se abrirão.”

A frente do cortejo destacava-se a figura da jovem tecelã Angelina Gonçalves. Suas mãos carregavam uma bandeira do Brasil. Ao seu lado caminhava sua filhinha Shirley de apenas 10 anos de idade. Eram seus dois grandes orgulhos.

Decididos, os passos ritmados
marcaram os primeiros movimentos.

Punhos fechados,
lenços agitados,
e o vento acompanha o movimento
da marcha triunfante.

“A Bandeira na frente, companheiros”,
e Angelina surgia, erguida fina,
tocada pela luz da tarde mansa,
como um vivo estandarte a caminhar.

No entanto, antes que pudessem chegar ao seu destino, um delegado do DOPS exigiu que se dispersassem. Os trabalhadores não se intimidaram, insistiram em manter a manifestação. Iniciou-se, então, um conflito violento entre eles e os soldados da Brigada Militar gaúcha. Angelina lutava bravamente tentando impedir que tirassem a bandeira de suas mãos. De repente, ouviram-se tiros. Seguiram-se gritos, gemidos e correria. O sangue escorreu pelas ruas.

“A nossa Bandeira,
nas mãos da polícia?”
E à luta regressa,
com febre no olhar.

E às mãos vitoriosas,
num breve momento,
retorna a Bandeira
batida de vento.

Um frio estampido
correu pelo espaço,
na rua vibrou.

Vacila a Bandeira,
vacila Angelina,
e a flor de seu corpo
na rua tombou.

No chão, ficaram os corpos sem vida de quatro valentes operários comunistas. Eram eles Euclides Pinto, pedreiro; Honório Alves de Couto, portuário; Osvaldino Correa, ferroviário e Angelina Gonçalves, tecelã. O vereador do povo Antonio Recchia, baleado na espinha, nunca mais voltaria a andar. Do lado da repressão, um soldado ficou ferido e logo morreria.
Inúmeros manifestantes feridos foram conduzidos aos hospitais e mantidos sob severa vigilância policial. Muitos preferiam ser tratados em casa. Não queriam correr o risco de serem presos. Os quartéis da Marinha e do Exército entraram em prontidão. A cidade de Rio Grande, que amanheceu em festa, agora, parecia uma praça de guerra.
No dia seguinte, a burguesia e o governo já sabiam a quem culpar por aquela tragédia: os comunistas. Um jornal local, cobrindo o enterro do soldado da Brigada Militar, estampou: “Compareceram ao sepultamento as principais autoridades e grande quantidade de povo, todos irmanados no mesmo sentimento de profunda dor, pelo golpe que os comunistas desferiram na cidade rio grandense, manchando-a do sangue rubro de suas ambições contra os interesses da nossa pátria e da democracia”. Invertiam-se os fatos, assassinava-se a razão. Vivíamos, então, o agravamento da guerra fria.

Morreram? Quem disse se vivos estão!
Não morre a semente lançada na terra.
Os frutos virão.

Morreram? Quem disse, se vivos estão!
As flores de hoje, darão novos frutos.
Meus olhos verão.

Dois anos depois, o jornal comunista Voz Operária destacaria a figura de Angelina: “ninguém melhor que ela, operária, para proteger a nossa bandeira das mãos dos inimigos, mãos de Dutra, mãos americanas (…) Humilde e brava Angelina, a bandeira te enxugou o suor e o sangue e sentiu quando parou teu coração”. A poetisa comunista Lila Ripoll dedicou aos mártires de Rio Grande os belíssimos poemas do seu livro Primeiro de Maio, que ilustraram esse singelo artigo.

Clique sobre os títulos abaixo para ler os poemas de Lila Ripoll dedicados aos mártires de Rio Grande

Primeiro de Maio Festejo

Passeata

Angelina

Amanhã