Entrevista de Augusto Buonicore com Ronald de Oliveira Rocha e Myriam de Oliveira Costa.

Buonicore – Quando ficaram conhecendo a União da Juventude Patriótica? Vocês já eram militantes do PCdoB na Guanabara?

Ronald – Éramos do Partido Comunista do Brasil – PCdoB – desde junho de 1968. Participamos da reorganização desse partido no Rio de Janeiro, na condição de membros da Dissidência – que surgira de uma cisão do PCB em 1966. Acompanhei o debate sobre a fundação de uma organi-zação de jovens, em conversas com Lincoln e outros camaradas, desde o início, quando essa pro-posta começou a ser ventilada. Depois da deliberação do Comitê Regional – CR –, recebi o informe imediatamente. Myriam também ficou logo sabendo da decisão, até porque foi indicada para com-por uma comissão com a tarefa de detalhar e realizar o projeto. Por isso, tem melhores condições para ajudar na recuperação histórica da União da Juventude Patriótica – UJP.

Myriam – No início de 1969, o PCdoB, no Rio de Janeiro, destacou alguns quadros para participarem da Comissão Estadual Provisória Organizadora, com o objetivo de construir uma agremi-ação revolucionária que congregasse os jovens independentes interessados e motivados em lutar contra o regime militar e pelas reivindicações populares, sem distinção de cor, classe, ideologia, re-ligião e concepção filosófica. Durante l969 e no início de l970, reunimo-nos inúmeras vezes para discutir e elaborar o Programa e o Estatuto, que seriam o ponto de partida da empreitada. A primei-ra redação foi de Lincoln, recebendo emendas. Em março de l970, criou-se, oficialmente, a UJP. Seus documentos básicos foram distribuídos para os militantes comunistas e os simpatizantes, dan-do início ao processo amplo de sua construção.

Buonicore – Como surgiu a idéia de criar a UJP? Foi uma iniciativa do Comitê Central ou do Comitê Regional?

Myriam – A iniciativa foi do CR, sendo posteriormente referendada pelo Comitê Central – CC. A idéia era dar uma resposta aos desafios postos na conjuntura, quando as entidades representa-tivas do movimento e os opositores ao regime estavam sendo duramente reprimidos, formando uma organização que unisse os jovens cariocas de diversos setores sociais, amplamente, mas com uma perspectiva estratégica democrática, antiimperialista e antilatifundiária.

Ronald – Após o auge dos movimentos de massas de 1968, o regime militar começou a tran-sitar para o fascismo e a repressão se intensificou. Diante do terrorismo de Estado desencadeado contra as lutas populares e sob o Ato Institucional no 5 – AI-5 –, as entidades estudantis passaram a encontrar sérias dificuldades para manter a mobilização no nível anterior e preservar sua ligação com as massas, o que deixou um grande contingente de ativistas sem opção de militância organiza-da. Ao mesmo tempo, não havia, para os jovens que estavam fora dos colégios e faculdades, uma alternativa de participação que pudesse desenvolver todo o seu potencial de lutas. Ademais, da pró-pria política do PCdoB se deduzia a necessidade de articular uma frente para ampliar e consolidar a base de sustentação do confronto nacional e antiditatorial que já se esboçava. A UJP veio para preencher tais lacunas.

Buonicore – Por que a experiência da UJP ficou restrita à Guanabara, sem estender-se para outros Estados da Federação?

Myriam – A idéia era desenvolver um projeto-piloto na Guanabara. Depois, a experiência seria ampliada para outros Estados. Infelizmente, com o aumento da repressão, membros da direção e um grande número de filiados foram presos – alguns mortos – ou tiveram que ir para a total clan-destinidade. Isso dificultou a continuidade do trabalho, que, com o tempo, foi muito atingido. A ini-ciativa, porém, deu certo, aliás muito certo. Apenas não teve tempo e condições de espalhar-se na-cionalmente.

Ronald – A UJP despertou um vivo interesse entre os dirigentes partidários e os jovens mili-tantes em todo o País, mas o pleno do CC não chegou a pautar o tema e avaliar sua generalização.

Buonicore – Quais eram os principais dirigentes dessa organização juvenil? Falem um pouco sobre eles.

Myriam – Inicialmente, a direção da UJP tinha quatro quadros: Lincoln Bicalho Roque, que adotava o nome de Mário e tinha a função de secretário político; Myriam Ribeiro Costa (meu nome de solteira), conhecida por Mariana, que desempenhava o cargo de secretária de organização; um companheiro que atuava na área de favelas, cujo nome legal desconheço (nem sequer me lembro de seu “nome de guerra”); e outro dirigente que, segundo ouvi na época, teria alguma ligação com Má-rio Alves (recentemente, fiquei sabendo que seria provavelmente filho de Salatiel, do PCBR, mas essa é uma dúvida que ainda estamos tentando esclarecer). Posteriormente, foi incorporado à dire-ção Carlos Henrique Tibiriçá (Caíque), conhecido por Artur, então estudante secundarista.

Ronald – Como nunca fui membro da UJP, uma vez que cumpria outras tarefas, desses ca-maradas, além de Myriam, apenas conheci Lincoln, que ingressou no PCB antes de mim e com quem militei muito proximamente a partir do primeiro semestre de 1966. Passamos, juntos, pela ex-periência da Dissidência, onde travamos a disputa contra as concepções militaristas. Depois, parti-cipamos, representando o setor “partidário” – e já em contato com a Maioria Revolucionária do CR do PCB –, do processo de unificação com o PCdoB, em cujo CC fomos integrados dois anos de-pois. Recentemente, Carlos Henrique reativou minha memória, referindo-se à sua presença no comício relâmpago que a União Nacional dos Estudantes – UNE – e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBES – realizaram em 1970 contra a farsa eleitoral e a invasão do Cambodja por forças militares imperialistas, quando ele próprio queimou a bandeira estado-unidense durante meu discurso.

Buonicore – Conheceram Lincoln Bicalho Roque? Qual era o seu papel na organização partidária e na UJP?

Myriam – Uma amiga comum, Izabel Picaluga, apresentou-me Lincoln no início de l966, assim que entrei no curso de Ciências Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil – FNFi. Em l967, militamos juntos na Dissidência. Tânia, sua esposa, também. Em 1968, essa organização fundiu-se com o PCdoB e Lincoln entrou no CR. Nossa relação se estreitou quan-do passamos a trabalhar no setor de pesquisa do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro – IFCS-UFRJ. Participávamos, então, de pesquisas diferentes, mas em salas próximas. Portanto, estávamos sempre em contato, no trabalho e na militância.

Lincoln era magro e de estatura mediana. Tinha pele moreno clara e cabelos um pouco cres-pos. Era estudioso, afetuoso, observador, “vivo” e dinâmico. Quando tínhamos opiniões diferentes, sobre alguma questão, discutíamos muito. Nesse caso, depois de tudo acertado, era como se nada ti-vesse acontecido. Não ficava mágoa. Trabalhávamos muito e com garra. Sempre vou lembrar-me dele como um grande companheiro.

Em certa ocasião, por exemplo, quando discutíamos o Estatuto, chegamos a um impasse: a UJP deveria ser oficialmente subordinada ao PCdoB, por menção estatutária, ou ser dirigida por es-se partido, sim, mas num quadro de autonomia política? Nesse ponto, solicitamos a presença do CR. Não sendo resolvida a divergência, apelamos ao CC, que decidiu pela segunda alternativa. Finda a discussão, ficamos, com sempre, unificados na ação.

Ronald – Quem acompanhou, em nome do CC, essa reunião polêmica da direção foi Carlos Daniele. Acho importante o registro desse fato, pois teve repercussão direta sobre o que viria ser a UJP.

Myriam – Apoiando a posição defendida por mim, diferente da opinião de Lincoln e Ar-mando Frutuoso, que falava pelo CR, Carlos Daniele ajudou a por um ponto final na controvérsia: a UJP deveria ser uma organização de frente única, dirigida pelo PCdoB, mas por meio da eleição democrática de seus dirigentes, e não uma espécie de Juventude Comunista, de antemão vinculada a esse partido e oficialmente subordinada às suas decisões. Tal orientação não emanava de princípios abstratos: baseava-se nas circunstâncias existentes no País e nas exigências da luta política em cur-so.

Buonicore – Como se organizava a UJP? Era clandestina ou semi-clandestina? Tinha reu-niões ou encontros abertos? Como se elegiam ou se indicavam as direções da entidade?

Myriam – A UJP era clandestina. Estruturava-se em núcleos, que, segundo o Estatuto, deve-riam ter no mínimo três e no máximo cinco membros. Tais coletivos de base formavam-se por área de trabalho, profissão, estudo, diversão, moradia, prática esportiva, atividade artístico-cultural e as-sim por diante. Suas reuniões se davam separadamente e não havia encontros abertos. O critério de segurança era muito observado e exigido. A primeira direção estadual foi indicada, provisoriamen-te, pelo CR, com a tarefa de exercer sua função até a realização do 1o Congresso. A partir daí, os membros da UJP elegeriam sua direção em todos os níveis, como ficou definido na reunião com o CC e passou a constar do Estatuto.

Ronald – Os critérios para a organização dos coletivos eram, de fato, muito flexíveis. Havia, também, militantes que preferiam, por vários motivos, manter uma ligação individual, o que era admitido em casos especiais, embora o Estatuto tenha deixado clara a vinculação do membro com “seu núcleo”.

Buonicore – Quantos militantes, aproximadamente, tinha a organização? Todos eram mili-tantes do PCdoB ou havia pessoas “de massa”?

Myriam – A UJP tinha militantes do PCdoB, que geralmente eram uma espécie de ponte en-tre a direção e os núcleos, assim como pontos de apoio iniciais para a construção. Foi o caso da A-driano Fonseca, do IFCS, que ajudou no início. Entretanto, compunha-se, por larga maioria, de mili-tantes independentes. Muitos não tinham a compreensão política suficiente para entrar no partido ou a disposição de fazê-lo. Boa parte nem era comunista. Outros, mesmo tendo uma consciência mais avançada, não queriam, por algum motivo, assumir compromissos partidários, mas estavam dispos-tos a participar de alguma forma da luta contra o regime militar e pela realização do Programa.

De março de l970, quando foi fundada oficialmente, a setembro de l972, a UJP cresceu ver-tiginosamente, chegando a ter cerca de 600 membros. Afirmo, com certeza, essa data e esse número de militantes porque, em meu último “ponto” com Lincoln, fizemos um balanço geral da situação.

Ronald – A rigor, a UJP era composta por militantes e ativistas avançados, pois todos ti-nham um nível de compromisso superior ao exigido em agremiações “de massa”. Embora o Pro-grama e o Estatuto fossem amplos e nem sequer exigissem a adesão ao socialismo, tinham defini-ções de cunho revolucionário: lutar “pela derrubada da ditadura militar” e a “conquista de um go-verno verdadeiramente democrático e popular”, que cumpriria tarefas antiimperialistas e antilati-fundiárias, para tanto sendo “preciso trilhar o caminho da luta armada popular, da guerra de liberta-ção nacional” (Normas Estatutárias, Introdução). Ademais, exigia-se que os membros concordas-sem “com seu Programa e Estatutos”, se dispusessem “a levá-los à prática” e pagassem “a contribu-ição estabelecida por seu núcleo.” (Normas Estatutárias, Art. 1o).

Logo, reunia membros estruturados revolucionariamente e não massas filiadas numa entida-de representativa ou num simples movimento inorgânico. Seu desenho tinha certa semelhança com o da Aliança Nacional Libertadora – lançada em março de 1935. Todavia, além de surgir em condi-ções histórico-sociais distintas, apresentava as singularidades de voltar-se apenas para a juventude, já começar na clandestinidade, consolidar núcleos e adotar um perfil político mais definido – Pro-grama e Estatuto. É possível que em outra conjuntura, sem a necessidade da clandestinidade para existir e sobreviver, a UJP pudesse vir a reunir parcelas avançadas de massa, ampliando-se para a-lém do universo militante.

Embora não estivesse aberta a outros partidos e correntes, a UJP era uma organização do ti-po frente única, pois não se reivindicava como um partido próprio e nem pressupunha todas as con-dições lenineanas clássicas de militância: faltavam-lhe a adesão ao marxismo como filosofia, a i-dentidade com o comunismo na condição de doutrina social, a defesa da revolução socialista como transição baseada no processo de apropriação social dos meios de produção, o caráter partidário e a explícita integração orgânica permanente dos membros à organização de base (além, pois, da sim-ples obrigação de pagar “a contribuição estabelecida”).

Buonicore – Existiam muitas bases (ou setores) da UJP no Rio de Janeiro? Quais eram e-les?

Myriam – Tínhamos bases estruturadas em faculdades, colégios, fábricas, bancos, bairros, favelas e jornais, bem como entre músicos, artistas, motoristas ou trocadores de ônibus etc.. Eram muitos núcleos, em locais e áreas os mais diversificados. Por isso, o trabalho de agitação e propa-ganda chegava rapidamente a todos os cantos da Cidade. Quando fazíamos a distribuição de “mos-quitinhos” (palavras de ordem carimbadas nos rolos de fita-cola), em 24 horas quase todos os ôni-bus estavam atingidos (na parte traseira dos bancos), o mesmo acontecendo com os banheiros dos cinemas e restaurantes.

Ronald – Foi visível o rápido crescimento da UJP. Virou a organização da “moda”. Na pre-paração do XXXI Congresso da UNE, em 1971, surgiam iniciativas em faculdades onde o PCdoB não tinha ligações e nossa chapa nem sequer imaginava haver algum movimento.

Buonicore – Que relação havia entre a UJP e as entidades estudantis? Existia dupla mili-tância, ou seja, lideres estudantis que eram ao mesmo tempo dirigentes da UJP?

Ronald – A relação era a mesma existente entre partidos e entidades de massas. O PCdoB atuava na UJP e diretamente no movimento estudantil. A UJP também agia nas entidades represen-tativas, mas fazia um forte trabalho de agitação e propaganda direta – maior até que o partidário – na cidade, incluindo nas faculdades. Havia dirigentes estudantis que eram ao mesmo tempo da UJP e das entidades, como também acontecia com militantes comunistas.

Myriam – É importante frisar que o PCdoB e a UJP tinham vidas orgânicas distintas, não se misturavam.

Buonicore – Qual era a base (ou setor) da UJP em que vocês atuavam e quais eram suas ta-refas ali? Quem mais participava dessas bases? (pelo Estatuto, possuíam entre 3 e 5 membros).

Ronald – Nunca militei na UJP. Minhas tarefas partidárias estavam delineadas com muita precisão: participar do CC (após 1970), militar na fração do PCdoB na UNE e dar assistência à fração do PCdoB na UBES (durante algum tempo). As condições de segurança exigiam severa vigilância e estrita observância da divisão de trabalho.

Myriam – Minha militância, a partir do segundo semestre de 1969, deu-se exclusivamente na direção estadual da UJP. Quando recebi essa incumbência, abandonei os compromissos antes as-sumidos nas entidades do movimento estudantil.

Buonicore – Vocês chegaram a distribuir o jornalzinho da UJP? Como era produzido? Quem escrevia as matérias e fazia as charges? Como era feita sua divulgação?

Myriam – A tarefa de publicar o jornal da UJP era minha e de Lincoln. Ele se responsabili-zava pelo editorial e ainda escrevia outras matérias. Eu tinha a função de produzir a seção que rela-tava as lutas do povo brasileiro desde o período colonial (Inconfidência Mineira, Conjuração Baia-na, Canudos, Contestado, insurreições indígenas, levantes escravos e outras). O objetivo dessa co-luna era, por meio de exemplos, despertar uma identidade histórica nacional e estimular a luta revo-lucionária. Às vezes, repassava-se tal atribuição ao núcleo de história do IFCS. As charges vinham de um companheiro da Faculdade de Arquitetura da UFRJ, de cujo nome não me lembro.

Por fim, eu “segurava” a revisão e a reprodução do jornal: datilografava as matérias em stencil para rodar os exemplares em mimeógrafo. Como não achávamos uma máquina com tipo pe-queno (as disponíveis na época possuíam letras grandes), resolvi encomendar outra para um conhe-cido que ia freqüentemente a Manaus. Assim, utilizando letras menores, passamos a escrever mais com o mesmo número de páginas.

Lincoln escrevia com extrema facilidade, mas não gostava de burilar seus artigos e demais matérias. Essa responsabilidade ficava, então, comigo. Quando necessário, recorria a Ronald, pois redigia bem e tinha experiência em “copidescagem”. Assim, apesar de não pertencer à UJP, ajudou na revisão final de vários números e do Programa. Depois de meu afastamento, não sei se foram feitos outros jornais.
Sua distribuição era tarefa dos núcleos. Como esses estavam presentes ou tinham ligações nos setores mais diversificados, chegava em muitos lugares e com rapidez. A orientação era ler o exemplar e passá-lo para frente ou deixá-lo em local visível. Nunca rasgá-lo ou guardá-lo. Numa época em que a censura silenciava todos os órgãos de imprensa, o jornal da UJP tornou-se um gran-de instrumento de informação, denúncia, agitação, mobilização e formação.

Ronald – Apesar de ajudar na revisão, nunca distribuí o jornal da UJP, pois a UNE publicava o Movimento, que exigia enorme esforço.

Buonicore – Quais as principais lutas travadas pela UJP nesse período?

Ronald – Como não era uma entidade representativa, a UJP evitava, como atividade central, encetar, direta e cotidianamente, formas de luta reivindicativas, gerais ou específicas, próprias dos movimentos das massas. O padrão procedimental era ajudar, por meio de seus militantes, a mobili-zá-las e organizá-las. Portanto, a ênfase de suas ações recaía sobre a informação, a denúncia, a agi-tação e a propaganda, não raro como campanhas. Cumpre registrar, também, que o simples fato de manter-se e construir-se, com seu caráter democrático, antiimperialista, antilatifundiário e solidário aos interesses populares, recrutando e formando jovens revolucionários no fogo da luta contra o re-gime militar, já representava um considerável aporte combativo.

Myriam – Acho que uma grande contribuição da UJP foi desenvolver campanhas incessan-tes contra a ditadura militar e seus crimes. Isso era feito através do jornal, do boletim, dos panfletos e dos “mosquitinhos”, assim como da reprodução de suas opiniões e políticas por meio do discurso e do trabalho de massas da militância. Sua imprensa, apesar de tosca se comparada às possibilidades e referências contemporâneos, foi um meio extraordinariamente valioso para divulgar a situação po-lítica e econômica do País, as lutas populares, as greves dos trabalhadores, as prisões generalizadas e os assassinatos de opositores ao regime, bem como as atividades das entidades representativas es-tudantis, como congressos e mobilizações contra a política educacional dos governos militares. Mostrou os desmandos e irregularidades na construção da Transamazônica e da ponte Rio-Niterói. Rompeu o cerco da censura ao divulgar, no seu jornal, a nota ao povo brasileiro feita pelo comando que seqüestrou o embaixador suíço e libertou setenta prisioneiros políticos. Combateu a guerra im-perialista na Indochina e apoiou o povo vietnamita contra os agressores. Expôs a sangria represen-tada pela dívida externa e a remessa de lucros. Apoiou as exigências camponesas de reforma agrá-ria. Fez campanha pelo Voto Nulo, contra a farsa eleitoral montada em 1970, e assim por diante.

Buonicore – O que vocês souberam sobre a vida e a morte de Joel Vasconcelos dos Santos? Parece que, além de dirigente da AMES e UBES, era militante do PCdoB e da UJP na Guanabara. Foi seqüestrado pela repressão e desapareceu em março de 1971 (o boletim informa sobre o seu desaparecimento, mas omite seu sobrenome e suas ligações orgânicas, talvez por motivo de segu-rança).

Myriam – Não conheci Joel e, certamente por motivo de segurança, não tive nenhuma in-formação detalhada sobre sua militância. Na época, a orientação era tornar públicos todos os casos de prisão, desaparecimento, tortura e morte. Tratava-se, além de solidariedade a todos os combaten-tes do povo, de uma maneira de divulgar e estimular a defesa das liberdades democráticas e a luta contra o regime militar.

Ronald – Também não me lembro de tê-lo conhecido pessoalmente.

Buonicore – Alguns afirmam que a UJP foi um celeiro para o recrutamento de guerrilheiros que lutariam no Araguaia. Isso é verdade? Vocês conheceram alguém da UJP que foi para a guer-rilha? Como se dava esse processo?

Myriam – Muitos militantes da UJP foram recrutados para o PCdoB. Já nesse partido, vários se colocaram à disposição para militar onde fosse necessário – só depois tornou-se público que o destino era o Araguaia. O CC examinava cada caso com muito rigor e também observava a lacuna que o candidato eventualmente deixaria no trabalho político que desenvolvia. Só depois resolvia quem seria ou não deslocado. Eu e Ronald, por exemplo, oferecemo-nos como voluntários, mas re-cebemos a orientação de permanecer em nossas tarefas.

Houve casos de casais em que o companheiro era do PCdoB e se tinha proposto a atuar no interior, mas a companheira era membro apenas na UJP. Nesses casos, recebíamos a orientação de intensificar as discussões políticas com a militante, visando ao seu recrutamento partidário o mais rápido possível e facilitando, assim, a transferência de um ou de ambos.

Ronald – A UJP, em si, não foi propriamente um celeiro para o recrutamento de guerrilhei-ros, até porque essa questão não era tratada e encaminhada na sua estrutura, seja por segurança, seja porque o deslocamento para o Araguaia era uma atribuição exclusivamente partidária e tarefa inde-legável dos membros do CC especialmente destacados para desenvolvê-la. Todavia, o PCdoB cres-ceu muito com o recrutamento de militantes oriundos da UJP, principalmente nos setores universitá-rio e secundarista, o que, indiretamente, facilitou o trabalho de mobilização militar.

Buonicore – Que razão levou ao fechamento da UJP no segundo semestre de 1971? Pelo menos essa foi a última referência que tive da organização. Pelo que sei, não ocorreu nenhuma grande queda nesse ano. As maiores baixas ocorreriam entre 1972 e 1973, após a eclosão da guer-rilha. Quem decidiu pelo seu fechamento?

Myriam – A UJP não encerrou seus trabalhos no segundo semestre de l97l e nem foi fechada por decisão de nenhuma instância. Até setembro de l972, quando tive meu último encontro com Lincoln após a prisão de meu marido e antes de sair da Cidade por questão de segurança, a UJP es-tava funcionando, embora com precariedade crescente.

É fato que a direção já enfrentava problemas, pois um de seus componentes (o presumido fi-lho de Salatiel) tinha sido afastado. Em junho de l972, Carlos Henrique “caiu”. Em setembro desse mesmo ano, após meu afastamento, Lincoln com mais um companheiro mantiveram o trabalho diri-gente e não sei se houve reposição de quadros. A partir dessa data faltam-me informações, mas é claro que as dificuldades aumentaram exponencialmente. Nem sequer sei se o jornal continuou sa-indo. Em março de l973, Lincoln foi preso e assassinado.

Portanto, o mais adequado é dizer que a UJP foi duramente reprimida e atingida pelo terro-rismo de Estado, resultando num processo de enfraquecimento e desmobilização progressiva, com a prisão e a morte de muitos de seus membros. Portanto, estava muito difícil encaminhar sua recons-trução naquele momento. Todavia, Carlos Henrique, recentemente, informou-me que, mesmo as-sim, permaneceram algumas ligações e reuniões, com a sigla subsistindo por alguns anos.

Ronald – Realmente, no segundo semestre de 1971 a UJP funcionou normalmente. Não a-companhei o que aconteceu após minha prisão, no dia 31 de agosto de 1972.

Buonicore – A UJP chegou a realizar algum Congresso?

Myriam – Acho que sim, mas nesse ponto minha memória fica inconclusa e, portanto, não posso afirmá-lo, com certeza absoluta: prefiro apresentar alguns fatos, narrar os indícios e costurar certas lembranças. Não há dúvida de que ocorreu o Congresso entre os secundaristas, em janeiro de 1971, Terezópolis, como informa Carlos Henrique, a quem coube providenciar o local. A existência desse fórum é também atestada na ata do interrogatório de um militante mais tarde preso, onde i-gualmente consta a pauta dos debates: situação política nacional, balanço da UJP, escolha dos dele-gados e eleição dos dirigentes.

Aqui começa a reconstrução da memória. A Plenária Estadual deve ter-se realizado no meio da segunda semana de fevereiro de 1972. Refiro-me a essa data porque houve uma reunião impor-tante, de dois dias e de caráter geral, na véspera de um acontecimento pessoal marcante. Não se tra-tava de um encontro regular da direção da UJP, pois tinha um número maior de participantes e con-tava com as presenças de Armando Frutuoso e Carlos Daniele. Outro indício relevante foi utilização de critérios de segurança mais rígidos: aparelho clandestino fornecido pela infraestrutura da instân-cia superior do PCdoB, pontos intermediários, transporte em carro desconhecido e entrada com o-lhos fechados. O hiato de um ano entre a sessão secundarista e essa provável Plenária Estadual de Delegados se explica pelo clima de repressão que teria forçado a direção a adotar cuidados especiais e adiar a sessão final.

Ronald – O acontecimento a que Myriam se refere, dois depois da provável conclusão do Congresso, foi nosso casamento civil, em 9 de fevereiro de 1972.

Buonicore – Vocês chegaram a ser presos (ou se exilaram) nessa época?

Myriam – Nunca fui presa. Eu e Ronald moramos, clandestinamente, numa casa do bairro Grajaú, onde permaneci até ir para o interior do Rio de Janeiro.

Ronald – Não me exilei, embora tenha saído do Brasil duas vezes durante o regime militar. Em 1970, viajei clandestinamente para Tirana, onde representei o PCdoB num encontro internacio-nal de jovens. Em 1979, fui à Segunda Fase da VII Conferência do PCdoB, também na Albânia, desta feita legalmente, adotando como cobertura uma pesquisa histórica em Lisboa. Quanto a pri-sões, sofri três. Primeira: em 1967, pelo DOPS-RJ, durante uma greve estudantil na FNFi. Segunda: em 1968, no Congresso de Ibiúna, pela Polícia Militar de SP. Terceira: em 1972, pelo DOI-CODI do 1o Exército, no Rio de Janeiro, sendo mantido durante dez dias na Rua Barão de Mesquita, leva-do para a OBAN, em SP, e condenado pela Justiça Militar com base na Lei de Segurança Nacional. Só reencontrei Myriam depois que minha pena terminou e se criaram condições para nosso retorno à legalidade.

Buonicore – Gostariam de dizer mais alguma coisa? Algum fato interessante ou curioso so-bre sua militância na UJP ou sobre outros militantes?

Myriam – A questão financeira sempre foi um ponto de estrangulamento nas atividades re-volucionárias. A UJP não fugiu à regra. Um episódio demonstra a criatividade de suas campanhas para arrecadar fundos: em certa ocasião reproduzimos centenas de exemplares de um jogo chinês, que versava sobre estratégia. Vendemos todos. Virou uma mania geral na esquerda.

Mas quero mesmo é falar um pouco sobre Lincoln. Eu admirava sua desenvoltura em escre-ver. Como éramos responsáveis pelo jornal, às vezes íamos para a Biblioteca do Real Gabinete Por-tuguês, no Centro, para discutirmos um pouco mais sobre as matérias. Não raro, ali mesmo ele redi-gia o editorial, num arranque só. Geralmente, escrevia à mão, no primeiro pedaço de papel que en-contrava. Ao entregar o rascunho, dizia: “pode ler, mexer, pontuar, mas sem mudar o conteúdo”. Eu sempre reclamava, porque queria o artigo pronto para datilografar. Mas ele falava: “isso é uma mis-são impossível”. E aí, ríamos muito…

Outras vezes, eu chegava com o jornal batido, mas havia lacunas e precisávamos introduzir um ou dois artigos pequenos para ocupar o espaço restante. Aí ele pegava o papel e em poucos mi-nutos eu tinha o que precisava, mas sempre sem burilar. Ele repetia o refrão: “isso é tarefa sua”. Pa-recia que tinha um banco de informações na cabeça: bastava puxar a pasta certa. Imagino, hoje, com a informática, com toda essa tecnologia, com dicionário eletrônico … seria uma máquina de produ-ção altamente eficaz!

Em agosto de 1972, em pleno clima de quedas, o quadro que cercava a UJP tornou-se muito sombrio. Lincoln disse-me que estava trocando de moradia com muita freqüência, não raro dormin-do de roupa e com sapatos calçados para o caso de alguma emergência. Na última vez em que nos encontramos, no início de setembro, após a prisão de meu marido, discutimos a situação. Estava sendo muito procurada, ou melhor, “caçada”, não só por causa de minha militância, mas também para ser usada como instrumento de chantagem contra Ronald, que estava sob tortura. Diante dessas circunstâncias, Lincoln sugeriu que saísse da cidade e me afastasse por algum tempo, até que a fase mais complicada passasse. Foi o que fiz. Posteriormente, soube que havia sido preso e assassinado.

Ronald – Há outro episódio digno de nota. Quando Edson Luís foi assassinado, na tarde de 28 de março de 1968, Lincoln estava entre os primeiros a chegar à Assembléia Legislativa, para on-de o corpo do jovem secundarista de 16 anos fora levado com a finalidade de evitar-se que os res-ponsáveis pelo crime o raptassem e coibissem o velório. Ainda éramos poucos quando o DOPS e a Polícia Civil – a PM, autora dos disparos, estava na defensiva e preferiu resguardar-se da repulsa pública – instalaram-se na Praça da Cinelândia. Chegou, então, a notícia de que se preparavam, com a cobertura das autoridades, para resgatar o corpo, tentando, assim, diluir a motivação do protesto em marcha. Seu pretexto foi a necessidade de autópsia, mas sua intenção era eliminar a prova física do delito. Nessas circunstâncias, decidimos abrir uma negociação com os responsáveis pela opera-ção repressiva, visando a ganhar tempo até que a mobilização da sociedade civil surtisse efeito e a correlação de forças mudasse em nosso favor. Lincoln, que não pertencia à direção de nenhuma en-tidade representativa de massas, assumiu a tarefa.

Foi deveras inusitado. Num ponto entre os campos em vias de confronto, um delegado, atra-vessando a rua, tinha que parlamentar com o notório estudante comunista, que deslizava pela esca-daria abaixo a passos miúdos. E assim, nesse sobe-e-desce, nesse vai-e-vem, entre gesticulações su-gestivas e argumentos inaudíveis, com intervalos para consultar as partes envolvidas, nosso diplo-mata “catimbou” e protelou a peleja enquanto os ponteiros dos relógios davam preciosas voltas e até que a crescente multidão humana tornasse impossível – ou com alto custo político – a pretensão da direita. A noite transcorreu como se estivéssemos numa trincheira. No dia seguinte, já com a pre-sença do conjunto do movimento popular, dezenas de milhares de pessoas, naquela longa caminha-da rumo ao Cemitério São João Batista, despediram-se de nosso colega e companheiro.

Buonicore – Que ex-militantes da UJP vocês conhecem e poderiam, eventualmente, dar en-trevistas?

Myriam – Acho que seria interessante entrar em contato com David Tygel, então do PCdoB, que deu uma colaboração enorme para a UJP, da qual era também membro. Fazia um bom trabalho entre os músicos, que nos ajudavam com finanças e locais para reunião. Muitas vezes, a direção se encontrava com segurança em residências de músicos bem conhecidos. Para nos dar cobertura, fazi-am-se ensaios nas mesmas horas e assim os militantes entravam no local sem chamar atenção. Além disso, rodamos muitos jornais da UJP na sua casa, em Santa Tereza. Outra pessoa é a Mônica Toli-pan, que era do Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica – DCE-PUC. Tem também a Lúcia, da Faculdade de Medicina da UFRJ.

Buonicore – Vocês ainda têm fotos ou documentos desse período?

Ronald – Pouquíssimos, e nenhum em grupo ou acompanhados. Tenho duas fotos, que res-gatei em cópias xerografadas nos Arquivos Públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo: uma discur-sando em 1970 no centro da cidade; outra sendo fichado no DOPS-SP. Recuperei, também, a foto do passaporte falsificado. Nada mais.

Myriam – Também só tenho fotos pessoais: uma da época em que ainda estava no IFCS e outra posterior, que consegui enviar a Ronald, então no Presídio do Hipódromo, SP, por intermédio de um visitante de sua família.