A tortura na quadratura do cĂrculo
Ao decidir condenar o Estado brasileiro por nĂŁo ter investigado crimes contra a ditadura Militar, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA voltou a tocar na maior ferida da transição pactuada nos anos 1980. Trata-se do “toma lá dá cá” costurado pela Aliança Democrática e as Forças Armadas, no qual a Nova RepĂşblica seria velha o suficiente para nĂŁo escarafunchar o passado – sobretudo o passado de militares – e seu envolvimento em torturas, mortes e desaparecimento dos oponentes daquele regime. Da polĂtica de conciliação que pouco concilia, mas muito compromete, ainda nĂŁo conseguimos nos desvencilhar a contento, apesar dos incontestáveis avanços nos dois governos de Lula.
Foram inĂşmeras as ocasiões em que, sempre que se buscou retomar o tema, a balança dos acordos recĂprocos nĂŁo se moveu. Afinal a Lei da Anistia, de agosto de 1979, sempre foi a ponta da meada com que se teceu, posteriormente, o acordo dos antigos com os novos governantes. AtĂ© hoje sucessivas gerações tateiam no espaço pĂşblico Ă procura de sinais que lhe permitam encontrar respostas para suas mĂşltiplas interrogações. A de maior centralidade seria a que indaga se Ă© possĂvel consolidarmos um regime democrático sem que, em todos os nĂveis e sob todas as suas formas, seus princĂpios se realizem para todos.
Os defensores da tese de que governos democráticos podem e devem rever instrumentos legais herdados de um regime de força, muitas vezes, seguem um caminho moral e outro, jurĂdico. Moralmente, ao entenderem que torturadores devam se sentar no banco dos rĂ©us, tentam impedir que novos crimes dessa natureza venham a ser cometidos no futuro. Já do ponto de vista jurĂdico, a prĂłpria lei possibilita uma interpretação que permite satisfazer Ă s exigĂŞncias do sistema interamericano.
Ao introduzir o princĂpio da conexidade, que fixa que Ă anistia concedida a um preso polĂtico corresponde o perdĂŁo ao seu eventual algoz, o regime militar acabou colocando a si mesmo em uma situação paradoxal. Como explicou em diversas oportunidades o advogado Luiz Eduardo Greenhalg ”o dispositivo inicialmente nĂŁo beneficiava os envolvidos em seqĂĽestros, atentados pessoais ou crimes de sangue. Ao nĂŁo anistiar essas pessoas, a lei, pelo seu fundamento de conexidade, tambĂ©m nĂŁo pode conceder anistia a quem os tenha torturado”. Ou seja, ao contrário do entendimento recente do STF, nem todos os militares envolvidos na repressĂŁo estavam anistiados. Mas a questĂŁo Ă© mais esdrĂşxula do que parece.
Um exercĂcio de lĂłgica elementar Ă© o suficiente para pĂ´r abaixo a “criativa” construção jurĂdica dos porões. AlguĂ©m que tenha cometido um crime polĂtico de opiniĂŁo, anistiável pelos preceitos legais da ditadura, e tenha sido torturado precisaria ter, entĂŁo, do outro lado da linha de conexĂŁo, a figura do torturador para que ele tambĂ©m fosse anistiado. Como o regime militar nunca reconheceu a existĂŞncia de torturadores, a conexĂŁo deixaria de existir e a tortura ficaria no campo do crime comum – no qual nunca houve e nĂŁo há Lei da Anistia.
O novo ciclo que se inicia com a presidente Dilma precisa aprofundar a questĂŁo da inviolabilidade dos direitos humanos. O entulho autoritário, no Brasil, apenas cresceu durante a longa noite dos generais. Suas raĂzes, no entanto, sĂŁo seculares, fincadas fundas nas estruturas coloniais, escravistas e aristocráticas, herdadas ao longo de uma histĂłria em que o Ăşnico fenĂ´meno permanente foi o uso prepotente, e quase sempre inepto, do poder.
As mudanças estruturais forjadas nos Ăşltimos anos já nĂŁo contemplam uma histĂłria fechada na quadratura do cĂrculo que a direita levianamente insinua como realista e sensata. Foi para romper com esse cenário que ganhamos as eleições de Outubro. O paradeiro dos desaparecidos está em fronteiras nĂtidas. Nelas, independentemente de arranjos internos, crimes como a tortura sĂŁo imprescritĂveis.
Fonte: Carta Maior



