Início dos anos 1970. O Brasil vivia a plenitude ditatorial travestida de “milagre econômico”. Após uma sangrenta aniquilação da guerrilha urbana, os generais encontravam uma resistência guerrilheira no Araguaia que se prolongaria por quase três anos. A censura se abatia implacável sobre a imprensa. A perseguição política se abatia, truculenta, sobre os patriotas e democratas.

No Rio de Janeiro, egresso de Fortaleza, mais que um refúgio ou um lugar ao sol, procurava um espaço de sobrevivência como estudante num período nebuloso da vida republicana. Foi naquele incerto ano de 1972 que cheguei ao JS (Jornal dos Sports), onde um convicto torcedor do América, o editor José Trajano Reis Quinhões, desempenhava seu primeiro cargo de comando. Fortuita e providencial sorte: hoje Diretor de Jornalismo do canal esportivo ESPN, Zé Trajano afirmava-se como uma referência do jornalismo brasileiro, de posições firmes e nitidamente ideológicas, resumidamente um rebelde, um indignado contra as injustiças. Ele me acolheu por indicação de seu colega Dácio de Almeida, naquele momento editor de esportes do JB (Jornal do Brasil), um amigo do repórter Walter Gomes.

Nas trevas, um clarão

O JS pertencia à família do pernambucano Mário Rodrigues Filho, de quem Nelson Rodrigues era irmão caçula. Tão realizador no campo esportivo que dava nome ao Estádio Maracanã, na verdade Estádio Mário Filho. Trajano me deu, numa das primeiras pautas, a cobertura de um jogo juvenil — Vasco da Gama x Flamengo, em São Januário —, quando Zico, irmão (logo) famoso de Fernando Antunes Coimbra, o nosso personagem Nando, convertia em alegria rubronegra seu enérgico futebol. Foi assim: nessa época de trevas, vez por outra pintava um clarão que iluminava a acuada esquerda; um técnico ou jogador que virava ícone ao revelar suas posições contra a ditadura.

Nando, um desses brilhos da noite, era irmão também de Eduardo Antunes Coimbra, o talentoso Edu. Ao longo da década de ’70, outros astros, a exemplo do célebre Afonso Celso Garcia, o Afonsinho, pioneiro ao conquistar na justiça o passe livre, e do mineiro José Reinaldo de Lima, que comemorava seus gols com o punho esquerdo projetado no ar, pontilhavam nossa cerceada alegria e irritavam os oficiais. E o futebol, manipulado como instrumento dos seus abusos, tornou-se um espaço da mesma luta entre idéias antagônicas em curso nas redações. A percepção dessa surda batalha era envolvente, em especial, aos que pisavam o fio da navalha, no limiar do simples perigo de viver.

O “nosso companheiro”

Eu estava há pouco tempo no JS, celeiro de “focas” que davam certo, quando o editor de esportes do Globo, Celso Itiberê, pediu ao “vermelho” Trajano dois repórteres. E lá fui eu, aterrissando no bunker onde morava a menina dos olhos do “doutor” Roberto Marinho — que, na maior cara de pau, requeria o tratamento de “nosso companheiro” aos seus “pares” jornalistas. Entre curiosas excentricidades, contadas em verso e prosa, estava sua célebre frase: “Dos meus comunistas cuido eu, general!” (quando o ministro da Justiça do plantão Castello Branco, general Juracy Magalhães, pediu a cabeça dos “marxistas d’O Globo”).

João Saldanha estava entre os considerados notórios esquerdistas d’O Globo, um fato que, além de nunca negar, reafirmava ao narrar seus périplos nas liças do Partido Comunista. Ao ponto de abrir a camisa ali ao lado da seção de esportes e exibir a cicatriz de um balaço que levara num congresso pacifista na sede da UNE, em 1949. (A redação da Rua Irineu Marinho era como um imenso galpão com as editorias separadas por medianas divisórias de madeira, com uma paisagem que convertia surpresa em rotina, com a cotidiana chegada em fins de tarde de figuras como Nelson Rodrigues, torcedor do Fluminense e colunista do jornal).

Tornei-me caroneiro do seu fusquinha após a Copa do Mundo de 1974, quando foi demitido do jornal (e da TV Globo) com a maior parte da equipe esportiva. Na ocasião, o “doutor” Roberto mandou-lhe um recado — queria conversar — e Saldanha responderia algo como: “Ainda estou na rádio Globo, que ele venha até aqui”. O reencontrei na redação da Última Hora, onde estava de volta e de onde partia a carona amiga até a altura dos Arcos da Lapa.

O “João sem medo”

Lá, eu acumulava emprego na editoria de esportes do (efêmero nesta fase, de Olímpio Campos) Diário de Noticias para suprir a perda do melhor salário d’O Globo, somando ainda com o freela do semanário Opinião, no Jardim Botânico (da equipe precursora do também semanário Movimento). Saldanha, ao seu modo e sem o poder de fogo do poderoso chefão Marinho, também sabia desafiar generais, como demonstrou o episódio da Copa de 1970, quando peitou o general Emilio Garrastazu Médici.

Saldanha, técnico da seleção brasileira que iria ao mundial de 1970 no México, enfrentara vários problemas de percurso na própria escalação do time. Depois de uma extenuante luta, conseguiu classificar a equipe para a copa e, na história conhecida, circulam os rumores que anunciavam a pretensão do general-presidente Médici de impor o nome do jogador Dario, o Dadá Maravilha, ao time titular. A boataria irritou o “João sem medo”, que pronunciaria um desaforo inimaginável naquelas circunstâncias: “O presidente escala o ministério dele que eu escalo o meu time”. João Saldanha foi demitido da seleção pouco antes da partida para o México, e substituído por Mario Jorge Lobo Zagallo.

Na verdade, mais do que sua rebeldia como profissional, pesaram na intervenção militar as convicções castrenses de que ele, comunista, poderia desfraldar no México uma lista de presos políticos em entrevistas coletivas, denunciando para a imprensa internacional as violações aos direitos humanos promovidas pelo regime, com suas práticas de torturas, vandalismos de toda a sorte, semeando as execuções sumárias de prisioneiros indefesos, perseguição de operários, camponeses, estudantes, intelectuais, sevícias de pais e mães diante dos filhos e filhas, e vice versa.

Barbárie no “milagre”

Naquele ano a seleção brasileira conquistaria o tri-campeonato mundial, tornando-se a primeira, desde a primeira copa, em 1930, a levar para o solo pátrio a taça Jules Rimet, além disso celebrizada como a melhor da história do futebol. Pela primeira vez, alguns brasileiros assistiriam uma copa pela TV. Uma vitória convertida em veículo de propaganda da ditadura militar, com a taça erguida pelo próprio Garrastazu. Era inimaginável — para os generais — a possibilidade de reedição patriótica da intragável situação na qual os comunistas surgiram aos olhos do povo como os principais protagonistas da FEB (Força Expedicionária Brasileira), que empreendeu, na Itália, a luta contra o eixo nazifascista na crista da Segunda Guerra Mundial.

Em 1970, um ano crucial da História do Brasil, Saldanha representou essa estrela brilhante nas trevas. No ambiente do “milagre econômico”, os porões do regime fomentavam a barbárie militarista com o sacrifício das liberdades e de inúmeras vidas, enquanto o hino “Pra Frente Brasil”, diversionista, abafava os gritos do suplício nas masmorras dos generais. Mas nenhum esforço castrense conseguiu empanar o brilho da Saldanha para tantos brasileiros que sabiam: a seleção vitoriosa foi protagonizada pela sua armação técnica, tática e pelas suas “feras”.

Glória e martírio

Uma glória que, entretanto, engrandecendo nosso futebol, contrastava com o martírio da família Antunes. Foi na leitura do depoimento de Nando que conheci aspectos dos dramas paralelos — que na época ignorava. Numa época em que, pelas circunstâncias, Saldanha não revelava que era padrinho de casamento de Carlos Nicolau Danielli, dirigente comunista torturado até a morte no DOI-CODI de São Paulo sob o comando do então major do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, do capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo e do “Capitão Ubirajara”, nome frio do delegado de polícia Aparecido Laerte Calandra. Seu afilhado, apesar das torturas, não admitiu que seus algozes arrancassem dele nenhuma informação.

No mesmo DOI-CODI em que, no Rio de Janeiro, Nando Antunes Coimbra foi encarcerado. Para mim, essa revelação significou a possibilidade de reescrever uma memória na qual seus irmãos Zico (que “começava nas divisões de base do flamengo”) e Edu (que “em 68, artilheiro do campeonato brasileiro, seria convocado para a seleção brasileira que disputou a Copa Roca na Argentina e a Taça Atlântico no Uruguai”) foram esportivamente marcados, perseguidos e prejudicados.

Fonte: Portal Vermelho