A palavra é livre, felizmente, mas convém criar algum constrangimento para quem manipula despudoradamente o termo “ditadura” ao sabor de propósitos argumentativos, como se ele não tivesse um contexto semântico.

Em 26 de outubro, na página 3 da Folha de S.Paulo, o advogado criminalista Nélio Machado não se pejou de comparar a escuta telefônica usada pela Polícia Federal com a tortura sob o regime militar. Não se sabe de onde tirou a ideia de que…

“No passado, pela hediondez da tortura, repudiava-se a prova assim colhida, o que não ocorre com a interceptação telefônica, apesar de ambas obterem a autoincriminação por via oblíqua”.

Certamente houve casos em que os juízes militares (crimes políticos, enquadrados na esfera da “segurança nacional”, eram julgados em auditorias militares) repudiaram as provas extorquidas sob tortura, mas foram exceção, não a regra. Caso hoje bem conhecido é o de Dilma Rousseff, que a denunciou e não obstante foi condenada.

O advogado não diz uma palavra sobre a tortura em delegacias policiais, que, 23 anos após a promulgação da Constituição Cidadã, ainda é “método de investigação”.

No Estado de S.Paulo de terça-feira (27/12), o futuro presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivan Sartori, deu longa entrevista em que se combinam ponderações a favor do “devido processo legal”, que estaria ameaçado pelo empenho investigativodo Conselho Nacional de Justiça, e o reconhecimento de que “alguns colegas receberam [vencimentos atrasados] adiantado”. No título, Sartori “compara atos do CNJ aos da ditadura”.

Reação à “ditabranda”

São dois exemplos recentes de um fenômeno amplamente disseminado. Durante muitos anos, ocorreu o contrário: prevaleceu o temor de usar o nome verdadeiro.

Talvez a brincadeira impensada da Folha de S.Paulo em fevereiro de 2009, quando se referiu ao regime do golpe de 1964 como “ditabranda”, tenha deixado alerta o público leitor (pequena parcela da sociedade) e estimulado alguns a dizer e escrever “ditadura” – palavra que não entrava, por exemplo, nos textos do Jornal Nacional, quando referidos ao Brasil, e agora se tornou de uso corrente naquele noticiário.

Mudar o discurso conforme a direção dos ventos dominantes acontece em todos os países e em todos os tempos. No Brasil, esse tipo de cinismo contribui para a indistinção entre oposição e governo. No Império já se dizia: “Nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”.

Já que crimes cometidos por servidores públicos em nome da defesa do Estado não foram nem serão punidos, é preciso lutar para que pelo menos determinado vocabulário crítico, inspirado em valores morais e na defesa de direitos básicos, não degringole nem se banalize.

Banalizado, não significará coisa alguma, nem como referência histórica. Das gerações que foram oposição à ditadura de 1964 – em atos, palavras ou pensamentos –, a mais jovem vai chegando aos 50 anos de idade. Serão cada vez mais rarefeitas e suas vozes, menos ouvidas.

Fonte: Observatorio da Imprensa