A frase inesperada congelou a plateia colorida de azul, branco e marrom cáqui que lotava na segunda-feira, 12 de dezembro, o Salão San Martín, o espaço nobre do Edifício Libertador, sede do comando do Exército em Buenos Aires.

Perfilados diante do ministro da Defesa, Arturo Puricelli, os brigadeiros, almirantes e generais do Alto Comando das Forças Armadas argentinas ouviram, crispados, a sentença súbita e cortante da autoridade que subvertia o rígido protocolo castrense:

Forti: “Juro por la pátria, mi madre y los 30 mil desaparecidos”
— ¡ Juro por la pátria, mi madre y los 30 mil desaparecidos!

— improvisou o advogado e diplomata Alfredo Waldo Forti, 61 anos, ao prestar o juramento de praxe para renovar seu mandato como Secretário de Assuntos Internacionais da Defesa. Nenhum militar aplaudiu, mas nenhum protestou.

Todos respeitaram a frase atrevida de Forti, que dava ali o seu corajoso testemunho pessoal diante da corporação fardada que legou à Argentina, no período da chamada ‘guerra suja’ de 1976 a 1983, o desonroso título de ditadura mais sangrenta entre os regimes militares que sufocaram a democracia no Cone Sul do continente, na segunda metade do Século 20.

Forti e sua mãe são símbolos dessa violência — ele como sobrevivente, ela como um nome a mais na multidão de desaparecidos políticos no período da repressão militar. A bela morena Nélida Azucena Sosa de Forti, ex-integrante dos Montoneros, o movimento guerrilheiro da esquerda peronista, tinha acabado de embarcar no voo 284 da Aerolíneas Argentinas que sairia do aeroporto de Ezeiza rumo a Caracas, na manhã de 18 de fevereiro de 1977.

Fugindo do clima político cada vez mais fechado do país, desde o golpe militar desfechado um ano antes, Azucena levava consigo os seis filhos, de 6 a 16 anos, incluindo Alfredo, o mais velho. Já com os cintos afivelados para a decolagem, tiveram que desembarcar, chamados de repente para resolver ‘problemas de documentação’.

A mãe e as crianças foram recebidas por agentes armados da polícia de Buenos Aires, subordinada ao Primeiro Corpo de Exército. Com os olhos vendados, foram colocadas em dois carros e levadas para o Pozo de Quilmes, um quartel da Brigada de Investigações da polícia localizado numa cidade da região metropolitana, ao sul da capital.

Uma semana depois, as crianças reapareceram, vendadas com lençol e amarradas na árvore de uma praça no Parque Patrícios. Azucena ainda foi vista por um prisioneiro de Quilmes na primeira semana de março, até ser transferida para a chefatura de polícia de San Miguel de Tucumán, sua cidade de origem, 1.300 km a noroeste de Buenos Aires.

A ordem de prisão e transferência para Tucumán partiu do general Antonio Domingo Bussi, que comandava a repressão mais feroz à guerrilha rural mais ativa do país na menor província da Argentina.

Azucena foi vista com vida, pela última vez, no centro clandestino de detenção conhecido como Arsenales, na saída norte da cidade, onde funcionava a Companhia de Arsenais Miguel de Azcuénaga, da V Brigada de Infantaria. Era um típico campo de concentração, cercado por duas cercas de alambrado separadas por uma faixa de terra vigiada por soldados e cães e altas torres de sentinelas.

Alfredo Forti e seus cinco irmãos nunca mais tiveram notícias de Azucena. No final da década de 1990, advogado com banca em Washington e consagrado assessor político dos governos do Peru, Equador e Guatemala, ele descobriu que dividia casualmente o mesmo voo da Aerolíneas com o algoz de sua mãe, Bussi, então um septuagenário general reformado.

Naqueles tempos, a refeição era servida com talheres de metal, não de plástico. Em pleno voo, Forti deixou sua poltrona e foi até onde se sentava o general. Sem se apresentar, inclinou-se sobre ele, entreabriu o paletó e lhe disse:

— Estás vendo esta faca? Não tenho problema nenhum em cravá-la cinco vezes em você. Mas a formação que recebi de minha mãe me diz que esta não seria a maneira certa de resolver as coisas. Eu quero te ver apodrecer no cárcere! — amaldiçoou Forti, deixando para trás, tremendo, o homem que fazia a Argentina estremecer na década de 1970.

Caso americano

O nome de Bussi fazia abalar o prestígio da Argentina até nos Estados Unidos, no auge da ditadura. O National Security Archive da Universidade George Washington revelou, em 2002, o conteúdo de 4.600 documentos secretos do Departamento de Estado que abordavam violações de direitos humanos no país.

O telegrama 04997 que a Embaixada em Buenos Aires enviou a Washington, no dia 29 de junho de 1978, relacionava os nomes de 103 pessoas das quais o governo norte-americano exigia informações. Um dos “casos de direitos humanos de interesse para os Estados Unidos” era o nº 71-77-5, de Nélida Azucena Sosa de Forti, com o status de “desaparecida”.  

Azucena e milhares de compatriotas começam a desaparecer quando emerge, no mapa argentino, a sinistra figura do CCD. É a sigla dos Centros Clandestinos de Detenção, instalações secretas das Forças Armadas para executar o mesmo plano que Adolf Hitler, em 1941, batizou poeticamente de Nacht und Nebel (Noite e Névoa): um projeto de Estado para o desaparecimento de opositores ao regime.

Os generais argentinos, como seus confrades nazistas, programaram a eliminação física dos dissidentes numa operação que começava com os sequestros, geralmente sob o manto da noite, e depois se completava pela névoa do desaparecimento sem pistas, sem rastros.

Havia método na loucura, como bradava Hamlet. Os CCD, apesar das diferenças, tinham uma estrutura básica e eficiente: uma ou duas salas de tortura, espaço amplo e indecente para receber os presos e alojamento decente para abrigar os guardas e torturadores.

Todos tinham serviço médico e, em alguns casos, até um capelão para atender a consciência pesada dos mantenedores da ordem.

Inspiração brasileira

Começaram em meados da década de 1970 como pequenas casas ou porões clandestinos e, à medida que endurecia o regime, cresciam os CCD, espalhados pelos maiores quartéis do país, todos engolfados no turbilhão da tortura.

Em 1976, ano do golpe de 24 de março, 610 CCD assombravam o país. Havia 68 deles só na província de Buenos Aires, 13 apenas na capital — incluindo os temidos CCD da ESMA, a temida Escola de Mecânica da Armada, e do Campo de Mayo, o maior quartel do país.

A província de Tucumán, onde reinaria o general Bussi, tinha 16 CCD, a metade deles apenas na capital, San Miguel, terra onde nasceu a cantora Mercedes Sosa e onde desapareceu Azucena. Era um número espantosamente grande de terror disseminado por um único país.

Os CCD excediam, em número, aos DOI-CODI da ditadura no Brasil (1964-1985), um país três vezes mais extenso, quase cinco vezes mais populoso e assolado por um regime de arbítrio três vezes mais longevo do que a da ditadura na Argentina (1976-1983).

A receita brasileira surgiu bem antes, em 1969, com a modelar OBAN, a Operação Bandeirante do II Exército, em São Paulo, que inovou unindo inteligência e violência das Forças Armadas, da Polícia Militar e dos policiais mais truculentos das delegacias da capital, onde despontou a liderança do delegado Sérgio Fleury, que se tornaria o símbolo internacional da repressão brasileira como estrela maior do DOPS.

Um ano depois, a fórmula de sucesso foi definitivamente militarizada, sob o comando do Exército, com a criação dos Destacamentos de Operações de Informações, os DOI do serviço sujo, que saíam às ruas para combater, sequestrar e torturar os militantes da guerrilha urbana.

Eram coordenados pelos Centros de Operações de Defesa Interna, os CODI. Nascia a marca mais letal do regime brasileiro: os DOI-CODI, parceria macabra que se estendia pelos dez mais importantes comandos militares do país, nas grandes capitais.

Essa dezena de repartições públicas do terror, na estimativa do historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de Como eles agiam — os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política (ed. Record, 2001), abrigava cerca de 1.000 pessoas diretamente envolvidas com a repressão e a tortura — a quinta parte do efetivo do SNI, 5.000 arapongas, no auge do Governo Figueiredo

. Antecipando os CCD argentinos, os militares brasileiros ainda montaram sete centros clandestinos de tortura em cinco Estados diferentes.

Hilton e Sheraton

Um sítio em Sergipe, um apartamento em Goiânia, uma casa no Recife, três locais em São Paulo (uma casa na avenida 23 de Maio, um sítio em Atibaia e uma chácara em Parelheiros, na zona rural paulistana) e a ‘Casa da Morte’, uma residência de aspecto acolhedor, com varanda e lareira na sala, numa rua tranquila de Petrópolis, na serra fluminense.

O lugar, como um superlativo dos horrores comandados pelo CODI, ganhou um cifrado apelido dos militares que o frequentavam: “Codão”.

Os DOI-CODI mais importantes estavam nas duas maiores cidades brasileiras. O do Rio de Janeiro, instalado no quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, registrou 735 denúncias de torturas, segundo o projeto Brasil Nunca Mais.

Num espaço de 21 meses, entre julho de 1972 e março de 1974, quando o I Exército era comandado pelo general linha-dura Sylvio Frota, morreram ali 29 presos.

O maior e mais notório DOI-CODI do país era o de São Paulo, com 250 homens da PM e da polícia civil, integrado ainda por 10 oficiais do Exército, 25 sargentos e cinco cabos sob o comando de seu fundador, o major Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Ele redesenhou o 36º Distrito Policial, uma decadente delegacia a cinco quadras do ginásio do Ibirapuera, para instalar ali o DOI-CODI que se tornou o símbolo mais sangrento do regime: passaram por lá 2.541 ‘subversivos’ e 51 ‘terroristas’ morreram trocando bala com sua equipe barra-pesada, na heroica versão do próprio Ustra.

Nos 40 meses em que o major reinou ali, entre 1970 e 1974, houve 502 denúncias de tortura (uma a cada 60 horas) e 40 mortos (um por mês) nos interrogatórios, segundo levantamento da Arquidiocese de São Paulo.

O centro de torturas de Ustra ficava na esquina da rua Tutóia com Tomás Carvalhal. Quando um preso era levado para lá, os agentes do DOI-CODI brincavam com a fama do lugar: “Agora você vai conhecer o Tutóia Hilton“, diziam. O que era Hilton, no Brasil, era conhecido como Sheraton na Argentina.

O CCD Sheraton funcionava na subcomissária de polícia de Villa Insuperable, em La Matanza, o mais populoso dos municípios da região metropolitana de Buenos Aires, onde vivem 13 milhões de pessoas, a maior aglomeração do continente, abaixo só de São Paulo.

Era um prédio de dois andares, com a garagem e as celas no térreo e a sala de tortura no andar superior, situado a quatro quadras da avenida General Paz, uma movimentada via de 24 km de extensão que margeia a capital ao norte e a oeste.

Um CCD chegou a funcionar em 1975 na maior siderúrgica do país, a Acindar, presidida por José Alfredo Martinez de Hoz, a versão portenha de Delfim Netto, o poderoso ministro da Economia ao longo dos cinco anos do brutal governo do general Jorge Videla.

A patota dos Falcon

Talvez para amenizar a sombra que pairava sobre os CCD, os generais da névoa argentina lhes outorgavam codinomes ou apelidos singelos, quase inocentes, que camuflavam sua lúgubre destinação:

El Campito, La Perla, Los Plátanos, El Banco, El Chalecito, La Casita de Los Mártires, El Olimpo, El Motel, La Escuelita para Mudos. Como os DOI brasileiros, os CCD argentinos contavam com seus grupos de busca e apreensão, os GT (ou grupos de tarefas), conhecidos como patotas.

A eles cabiam a captura dos subversivos, circulando pelas ruas das cidades nos temidos sedã Ford Falcon azul ou verde, quatro portas, que formavam a frota da repressão.

Os presos eram detidos, encapuzados, algemados e levados ao CCD para a tortura, praticada pela mesma patota, durante um ou dois meses. Após este período, os detidos simplesmente desapareciam, sumiam.

Como toda ditadura, a argentina recriava o idioma para ocultar sua maldade. Ninguém era preso, apenas chupado, eufemismo militar para quem era preso. Entre os repressores, os CCD eram conhecidos como chupaderos.

Da mesma forma, ninguém morria. Os detidos que eram desaparecidos passavam apenas por um translado. Não importava a forma final utilizada, fosse fuzilamento em massa, fossa comum, incineração de cadáver ou uma tumba com a lápide NN (no nombrado), todos eram apenas transladados.

Quem tivesse o azar de ser sugado por um chupadero dos CCD dificilmente escaparia do translado. No CCD El Olimpo, num bairro do lado oeste, a 100 metros da agitada avenida Rivadavia que atravessa Buenos Aires, foram chupados cerca de 700 homens e mulheres. Menos de 50 saíram vivos dali.

Na ESMA, a escola de morte da Marinha na capital argentina, passaram mais de 5.000 presos, dos quais sobreviveram pouco mais de cem. O CCD El Campito foi instalado no coração do maior quartel argentino, o Campo de Mayo, a 30 km do centro de Buenos Aires. Ali sobreviveram apenas 43 dos 5.000 detidos chupados pela repressão.

Ele tinha um requinte a mais: o hospital militar utilizado para os partos clandestinos nas prisioneiras.

Após o nascimento, o bebê era chupado para famílias dos militares e a mãe, usualmente, era submetida ao translado inapelável. Cerca de 500 bebês, sequestrados de pais desaparecidos, fazem parte desta tétrica estatística argentina.

O primeiro CCD do país surgiu, por ironia, na terra natal da transladada Azucena. Em 1975, ainda antes do golpe de Videla, o Exército aproveitou o prédio inacabado de uma escolinha na saída oeste da cidade de Famaillá, a 40 km da capital de Tucumán, San Miguel, para instalar o seu primeiro centro clandestino, que passou à história como La Escuelita.

Das oito salas de aula, sete viraram celas e a última, o local de tortura. A menor província do país estava agitada, como foco guerrilheiro escolhido pelo grupo trotskista ‘Exército Revolucionário do Povo’ (ERP) para confrontar o regime da presidente Isabelita Perón, aproveitando a geografia montanhosa da região aos pés dos Andes.

A sanha de Isabelita

O governo lançou a ‘Operação Independência’, para reprimir a guerrilha do ERP, sob a chefia do general Acdel Edgardo Vilas, comandante da V Brigada de Infantaria de Montanha, baseada em Tucumán.    

Linha duríssima, ele confiava mais na bala do que na lei: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco da agulha do que condenar um subversivo num tribunal”, avisava Vilas. Pela agulha do CCD de Famaillá passaram, nas contas do general, 1.507 pessoas, mas cálculos mais realistas falam em mais de 2.000 pessoas.

La Escuelita já operava com força quando a presidente da República visitou o Comando Tático de Famaillá, a cinco quadras dali, para insuflar a sanha assassina dos militares: “Temos que matar e aniquilar a todos os guerrilheiros”, ordenou Isabelita, com ímpeto chupadero, meses antes dela mesmo ser transladada do poder pelos companheiros de armas de Vilas.

 “Temos que matar e aniquilar a todos os guerrilheiros”, ordenou Isabelita

Uma investigação posterior de parlamentares apurou que, sob o comando do general, Tucumán assistiu a 123 sequestros de opositores — dos quais 14 foram assassinados e 77 simplesmente desapareceram, transladados. Quando o general Antonio Domingo Bussi chegou para assumir o comando, no final de 1975, lamentou-se com seu antecessor: “Vilas, você não me deixou nada por fazer!…”.

Modéstia de Bussi. Entre 1976 e 77, o general fez três vezes mais do que Vilas: aconteceram 371 desaparecimentos na província — 194 deles supostos militantes Montoneros ou meros simpatizantes.

Numa comissão de investigação parlamentar, Osvaldo Humberto Pérez — que foi chupado pelo CCD Arsenales e, ao contrário de Azucena, sobreviveu — contou que ali, no espaço de um ano, foram fuziladas entre 800 e 1.000 pessoas. Em abril de 1976, o lugar ganhou o reforço de 40 soldados enviados desde Campo de Mayo.

Um deles, Omar Eduardo Torres, depondo na década de 1980 perante a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), presidida pelo escritor Ernesto Sábato, contou como era a vida (e a morte) no CCD Arsenales, subordinado diretamente ao general Bussi.

— Uma vez vi como um preso desnudo era enterrado vivo, só com a cabeça fora do buraco, com a terra em volta molhada para ser compactada com os pés. O preso ficava lá 48 horas. O buraco provocava cãibras dolorosas e infecções na pele.

Por duas vezes presenciei fuzilamentos ali, e quem efetuava o primeiro disparo era o general Antonio Bussi. Depois ele fazia com que todos os oficiais de maior hierarquia atirassem também.

O local das execuções estava localizado a uns 300, 400 metros da Companhia de Arsenais, montanha acima. Estendiam um cordão de segurança a uma distância de 20 metros e outro a uns 100 metros do local.

Os disparos eram feitos com pistolas calibre 9 mm ou 11.25 mm, sempre entre as 23h e 23h30. A cada 15 dias se assassinavam entre 15 a 20 pessoas — relatou o soldado Torres.

A coisa certa

O ex-soldado Domingo Jerez garantiu ao juiz Carlos Jiménez Montilla, em fevereiro de 2010, que testemunhou o general Bussi matar a bordoadas a dois homens em um campo de concentração em Timbó Viejo, localidade ao norte de San Miguel, na rodovia 305. “Vi quando colocaram o cano de um fuzil na vagina de uma mulher grávida”, contou o soldado.

Bussi trocou La Escuelita pelo CCD Nueva Baviera, um velho engenho de açúcar dotado de heliporto e vários caminhões para transporte de tropas e prisioneiros.

Ele descentralizou a tortura e ampliou suas patotas. Atacou com bombas a universidade local, os partidos, os opositores. Advogados, sindicalistas e políticos foram alvo de sequestro, prisão e tortura. Bussi, como se via, ainda tinha muito que fazer.

Dono de um par de olhos azuis frios como as rajadas que sopravam dos Andes, Bussi mantinha a cara fechada, casmurra, apropriada para aqueles tempos azedos. Seu braço longo cruzou a longa distância até Buenos Aires para alcançar a montonera Azucena minutos antes de alçar voo para a liberdade.

O secretário Alfredo Forti, o garoto sequestrado por ordem de Bussi, abriu um processo contra o general em 2005, depois que o Governo Kirchner revogou as anistias do Ponto Final e da Obediência Devida que deixavam impunes os torturadores.

Assim, outros 800 processos por sequestro, tortura e morte, antes engavetados, voltaram a assombrar o velho general, que passou a frequentar os tribunais como uma caricatura de seu decrépito poder, envelhecido, enfraquecido por doenças dos pulmões e do coração, com uma sonda de oxigênio sempre enfiada no nariz.

Acossado também por denúncias de contas clandestinas no exterior, respondia ao melhor estilo Maluf: “Não nego, nem afirmo”. Em 2003, eleito para a prefeitura de San Miguel, a cidade que ele aterrorizou na ditadura, foi impedido de assumir o cargo, acusado pelo desaparecimento e morte do senador peronista Guillermo Vargas Aignasse.

Foi acusado de crimes de lesa humanidade e pelo desaparecimento de outras 72 pessoas, o que lhe rendeu a prisão perpétua em agosto de 2008. O chefe temido da repressão foi destituído com desonra do Exército. Não conseguiu ver as outras condenações iminentes, porque o coração enfim falhou, em novembro passado, determinando o seu translado irremediável aos 85 anos.

Um único deputado de Tucumán animou-se a pagar o anúncio de falecimento num jornal local, assim mesmo com o estrito cuidado de citar o nome do filho vivo, não do pai morto: “O deputado Alberto Colombres Garmendía participa com dor o falecimento do pai do deputado Ricardo Bussi”.

O secretário de Assuntos Internacionais da Defesa, Alfredo Waldo Forti, não viu o sequestrador de sua mãe apodrecer no cárcere, como imaginava.

O filho de Azucena viu coisa pior: o general Antônio Bussi, como acontece com os criminosos de todas as ditaduras, apodreceu em vida, chupado pela memória de seus abusos, cravado pela lâmina aguda dos tribunais e da Justiça.

Como ensinava Azucena a seus filhos, é a maneira correta de resolver as coisas num país que respeita sua história, sua memória, seu povo.

Fonte: Sul21