Viúva de Apolônio de Carvalho relembra trajetória de lutas
“Aqui morou Apolônio de Carvalho, combatente da liberdade.” A placa no portão do prédio antigo no Leblon, homenagem dos vizinhos, leva ao apartamento de quarto e sala onde mora Renée de Carvalho, tenente da Resistência francesa ao nazismo.
Renée, 86, dividiu 62 anos de vida com Apolônio (1912-2005) –militar que aderiu à Aliança Libertadora Nacional nos anos 1930, combateu pela República na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), lutou na Resistência francesa, foi guerrilheiro no Brasil nos anos 1960 e fundador do PT.
Em fevereiro, quando Apolônio completaria 100 anos (dia 9), Renée e os filhos René e Raul doarão documentos e fotos –o que sobreviveu a anos de clandestinidade– ao Arquivo Nacional.
Ela lançará um livro com sua história, resumida no depoimento abaixo.
Nasci em 1925 em Marselha, que não tem grandes atrativos. Houve um cardeal que disse que os monumentos da cidade são seu céu e seu mar. Meu avô materno, Étienne Bezias, era carpinteiro da Marinha mercante, naquela época um operário de ponta.
Ele tinha uma boa voz e cantava ópera, frequentava ópera, teatro de vanguarda. O único livro que sobrou dele era de Victor Hugo, um escritor combativo. A família do meu pai, Louis, era da pequena burguesia.
Meu avó, Thomas Laugery, era dono de um “débit de tabac” [tenda de tabaco], tinha autorização do governo para vender cigarros, selos. Na época ele era um “radical” da política francesa, um pouquinho de esquerda, um pouquinho anticlerical, essas pessoas que lutavam pela instrução universal laica etc.
Meu pai não teve muito sorte porque o pai dele comprou para ele um restaurante, mas veio a Primeira Guerra e ele lutou quatro anos e mais alguns meses, porque foi mandado para combater o governo soviético, que tinha acabado de fazer a revolução. Quando voltou, teve que recomeçar a vida e foi quando se casou com a minha mãe, Juliette.
Naquela época nós crianças não nos dávamos conta de que a 1ª Guerra Mundial tinha terminado pouco antes. Parecia uma coisa longe até que veio a crise de 1929 e a vida se tornou difícil. Havia muito desemprego, e em toda Europa a ascensão do fascismo.
Foi então que meus pais acordaram para a política. Em Marselha a política era dominada por uma máfia, um submundo, e os comunistas começaram a aparecer com um programa, com propostas novas.
Meu pai entrou no Partido Comunista e toda família foi junto. A gente discutia política em torno da mesa, tipo família italiana. Veio o governo da Frente Popular [coalizão de comunistas, socialistas e radicais, no poder entre 1935 e 1938]. Nós desfilávamos no 1º de Maio, havia um entusiasmo que contaminava as crianças de 9, 10 anos.
Foi a época das grandes greves. No fundo de nossa casa havia uma fábrica onde muitas moças trabalhavam costurando saco. Elas entraram em greve e não dormiam, dançavam a noite toda, tinham um gramofone de corda.
A vizinhança toda xingava, e nos ficávamos na janela felizes da vida. Meu irmão Daniel era pequeno, tinha três anos menos do que eu. Nós dois íamos coletar dinheiro para os grevistas.
Meu pai na época deixou o restaurante e foi para a Marinha mercante, onde fez parte da célula comunista. Minha mãe foi militar com as mulheres dos marítimos.
A minha tia que era um pouco intelectual disse: “Não sei se vou entrar para o partido, mas eu vou ler ‘O Capital’ e se me convencer eu entro. Entrou”.
Quando a Frente Popular ascendeu na Espanha [1936], foi outro entusiasmo. Lembro que os empregados dos bares e dos restaurantes viviam das gorjetas. Eles entraram em greve.
Havia umas faixas dizendo: “os empregados deste bar não recebem gorjeta”. Não é bonito, isso? O trabalhador que vive das gorjetas, mas quer viver de um salário decente. Eram coisas que mesmo criança a gente entendia.
A Frente Popular foi se degradando aos poucos, perdendo o fôlego na medida em que fazia uma politica internacional muito ruim, seguindo a Inglaterra nas concessões feitas aos alemães.
Depois veio o pacto germano-soviético, que para o PC francês foi um golpe forte, muita gente deixou o partido porque não entendia como Hitler e os comunistas podiam estar juntos. O PC foi fechado, entrou na clandestinidade.
Depois houve a declaração de guerra da França à Alemanha, mas era uma guerra esquisita. Todo mundo estava mobilizado, mas não havia combate. Na verdade o inimigo sempre foi a União Soviética, não a Alemanha.
O governo francês, mesmo antes da vitória alemã, começou a tomar medidas contra os estrangeiros, que na época incluíam muitos refugiados políticos do fascismo na Alemanha, da Europa Central, muitos judeus e ex-combatentes na Espanha.
Apolônio era um deles [deixou a Espanha em 1939 e, na França, foi confinado em um campo de concentração].
Depois veio a guerra de verdade, meu pai foi mobilizado e mandado para a Noruega para desembarcar soldados contra uma ofensiva alemã.
Depois foi para Dunquerque [cidade do norte da França, palco de batalha vencida pelos alemães em 1940] e ajudou a retirar para a Inglaterra os soldados derrotados.
A França perdeu de uma maneira vergonhosa, pessoas que moravam na zona de ocupação, no norte, vinham para o sul de charrete, a pé. A região ao sul do Loire ficou com o [marechal Philippe] Pétain, que colaborava com o alemães e entregava tudo que pediam, alimentos, armas.
A maioria dos resistentes presos na época foi capturada pela polícia francesa, não pela Gestapo. Minha irmã mais velha, Paulette, que havia entrado para a clandestinidade, foi presa em Lyon em 1942. Foi condenada à morte, mas, como ainda não tinha 21 anos, a pena foi comutada para prisão perpetua. Acabou deportada para a Alemanha e só voltou no fim da guerra.
Eu e meu irmão continuamos em casa e atuávamos como uma espécie de agente de ligação da Frente Nacional, um dos movimentos da Resistência, fundado pelos comunistas. Escondíamos pessoas mandadas pela direção, transportávamos material militar, panfletos, jornais clandestinos.
Como os judeus não podiam pegar os tíquetes de racionamento porque iriam se entregar ao mostrar a identidade, negociávamos esses tíquetes para eles. Em contato com os imigrantes, conheci o Apolônio, que já estava atuando na resistência armada.
Nos casamos em 1943, quer dizer, fomos morar juntos. Eu tinha 18 anos, era quase uma criança. Nós fizemos um plano de promover a fuga da prisão feminina de Marselha, onde estavam minha irmã e minha tia, aquela do “Capital”.
Acabou não dando certo e as prisioneiras foram mandadas para uma outra prisão, em Rennes, na zona ocupada pelos alemães. Então lutamos juntos, e assim foi nossa vida em comum.
Ele sempre pensava que voltaria ao Brasil, porque só dois ex-combatentes na Espanha tinham ficado na França. Ele e um paraguaio, Emiliano Palácios, que foi mandado para lutar na zona ocupada e desapareceu. Depois da Libertação, o Apolônio foi à procura dele, mas não o encontrou.
Para mim vir ao Brasil não foi uma coisa assim tão alegre. Não falava português, já tinha um filho pequeno, o René, e esperava o outro, Raul. Viemos em dezembro de 1946 e logo o Partido Comunista foi posto na clandestinidade. Moramos um pouco no Rio, um pouco em São Paulo. Não passamos mais de seis meses em uma casa.
Nessa época fomos três ou quatro vezes ver filmes franceses, muito bonitos. O companheiro que vivia conosco, João Amazonas [depois fundador do PCdoB] dizia, “eu tomo conta dos meninos, vocês vão ao cinema”. Mas nos sentíamos tão culpados.
Em 1954, antes do suicídio de Getúlio Vargas, o Apolônio foi mandado para estudar na União Soviética, e eu fiquei aqui com os dois meninos.
Mais tarde eu me juntei a ele em Moscou e os meninos ficaram com minha família na França. Lá foram para a escola, tiveram uma vida normal. Voltamos no governo de Juscelino, a família toda, e aí passamos a ter uma vida praticamente normal.
Quando veio o golpe de 1964, o Apolônio foi embora no mesmo dia, desapareceu na clandestinidade. Ele já estava insatisfeito com a política do partido, tinha perdido o entusiasmo muito juvenil que tinha.
O Apolônio foi sempre um militante disciplinado, mas muito independente. Ele sempre teve dúvidas, entende? Os franceses somos muito propensos a criticar, pensar com a própria cabeça. Quando eu despertei, acho que dei uma ajuda para ele despertar também..
Ele começou a divergir e em 1967 saiu, tomando o rumo do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), com Mário Alves, Jacob Gorender. Nessa época eu não estava clandestina, precisava me sustentar, e trabalhava na Embaixada da Hungria.
O AI-5 (Ato Institucional nº 5, de 1968) endureceu a repressão. Eu me preparava para me juntar a ele na clandestinidade quando foi preso, em janeiro 1970, e os meus filhos também foram presos.
O Apolônio foi logo trocado pelo embaixador alemão e foi para a Argélia. Depois o René foi trocado pelo cônsul da Suíça. Na lista que os revolucionários propunham para trocar tinha tanto Carvalho, eles queriam trocar os filhos do Apolônio, mas o Raul acabou ficando aqui, passou três anos na cadeia.
Fui à Argélia visitar o Apolônio, acho que fui a segunda pessoa a chegar, mas voltei e fiquei aqui até Raul sair da prisão. O Apolônio queria ir para a França onde tinha minha família, mas a França não quis recebê-lo.
E olha que ele era coronel do Exército francês, a título da Resistência. Ele foi à Suíça, mas acabou expulso. Também, tinham prendido o cônsul suíço. Acabou ficando na Argélia, onde havia muitos combatentes da África e até dos EUA, os Pantera Negras. Ficavam num antigo centro de férias dos funcionários franceses, da época colonial.
Finalmente, por intervenção de antigos combatentes e de um deputado socialista, o Michel Rocard [depois premiê francês], ele teve permissão para ficar na França, onde já começamos a conhecer o PT.
Voltamos depois da Anistia, em 1979. Fui para São Paulo, vi as greves dos metalúrgicos. Fiquei muito entusiasmada porque eu achei que o PC sempre quis ser um partido de massa mas não conseguiu, e o PT já nasceu de massa.
Depois é claro que a coisa não foi bem assim, o partido se institucionalizou. Não perdeu o atrativo, mas perdeu um pouco aquele entusiasmo. Ele não gostou tanto de certas coisas, mas sempre foi ligado ao PT.
O Apolônio ficou na direção do PT durante sete anos. Na época só havia militantes voluntários e ele pagava as próprias viagens. Nós sempre vivemos muito modestamente. Quando voltamos, ele recebia uma pensão de segundo tenente [posição que tinha quando foi expulso do Exército, em 1936], que era muito pouco.
Só depois, com a Constituição de 1988, ele foi reconhecido como coronel. Fui muito feliz com o Apolônio. Nos queríamos muito. Se tivesse que fazer, começaria tudo de novo.
Fonte: Folha de São Paulo