A volta dos cangaceiros
O fenômeno do cangaço, que esteve na pauta de inúmeros historiadores, cientistas sociais, jornalistas e literatos há décadas atrás, foi sendo abandonado ao longo do último período. Pouco se tem escrito sobre ele. Desde os anos 50 (do século passado), o Brasil vem passando por profundas transformações. Ele não é mais um país rural – onde se pensava existir um forte componente feudal. Assim, o messianismo e o cangaço, típicos daquela sociedade arcaica, já não valiam mais a pena serem estudados. Além do mais, tudo o que poderia ser dito sobre eles já teria sido.

Eis que, de repente, surge o livro “Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica” (Boitempo). Ele propõe jogar novas luzes sobre um fenômeno que marcou decididamente o nordeste brasileiro entre o final do século XIX e início do século XX: o cangaço. A obra contribui para o desvendamento daquilo que alguns intelectuais chamaram de “Brasil profundo”.

Vejam a entrevista exclusiva feita por Augusto Buonicore com o historiador e professor da USP Luiz Bernardo Pericás, autor de Os cangaceiros. .

Buonicore: O historiador marxista Eric Hobsbawm definiu o bandidismo social como “um dos fenômenos sociais mais universais da História, e um daqueles de mais impressionante uniformidade”. É, justamente, nessa categoria que ele enquadrou os cangaceiros nordestinos. Seu livro, no entanto, parece contestar ambas as opiniões. Fale um pouco sobre isso.

Pericás: Eric Hobsbawm é, sem dúvida, um historiador respeitável, que produziu uma obra vasta, ao longo de várias décadas. Muitos de seus livros são, certamente, obras de referência. Mas, especificamente em Bandidos, onde ele discute o cangaço, Hobsbawm parece ter exagerado na dose. Ele tenta construir uma teoria geral sobre o “banditismo social” (já esboçada em Rebeldes primitivos, anos antes), comparando uma grande quantidade de casos de banditismo em todo o planeta, baseando-se em grande medida em lendas e no folclore popular, com escasso uso de documentos e uma bibliografia geral bastante limitada. O grande historiador brasileiro Alberto da Costa e Silva certa vez me contou uma história interessante e significativa.

Disse ele que seu amigo, Celso Furtado, um dia lhe comentou que se Hobsbawm fosse nordestino e tivesse conhecido o sertão, certamente não teria escrito o que escreveu. O fato é que, num livro pequeno (se não me engano, a primeira edição brasileira tem aproximadamente 150 páginas), o autor britânico menciona casos de bandidos na Inglaterra, Espanha, Cárpatos, Nápoles, México, Estados Unidos, Daguestão, Índia, China, Macedônia, Calábria, sertão do Nordeste brasileiro, Turquia, Peru, Bolívia, Colômbia, Hungria, norte da Grécia, Bósnia, Indonésia, Tunísia, Sicília, França, Alemanha, Rússia e Cuba. Eu perguntaria se Hobsbawm conhecia cada um desses países a fundo e cada grupo de bandidos que ele comentou; se leu os livros e artigos sobre estes bandoleiros de distintas nações em obras escritas em suas línguas originais; se esteve pessoalmente naqueles países; ou se entrevistou diferentes personagens ligados ao tema. Em seu Bandidos, por exemplo, ele chega a dizer que em 1926, a Coluna Prestes era “uma formação guerrilheira volante liderada por um oficial rebelde do Exército, que na época se transformava em chefe do Partido Comunista Brasileiro”.

Uma informação básica e totalmente equivocada, anacrônica, como sabemos. Não sei quais nem quantos livros sobre o cangaço Hobsbawm utilizou para escrever sobre Lampião e o sertão nordestino. As únicas referências que encontramos em Bandidos são a versão em francês do livro de Maria Isaura Pereira de Queiroz, o livro de Estácio de Lima e a biografia do Padre Cícero escrita por Otacílio Anselmo. Só isso, ao que consta. Ou seja, três livros. Pode ser que tenha utilizado muitas outras obras, mas não as indica (pelo menos nas edições que consultei). Eu particularmente não conheço em detalhes os casos de banditismo em todos os países que Hobsbawm cita em seu livro, e não arriscaria dar opiniões e veredictos sobre eles. Para cada um dos exemplos apresentados por ele deve haver centenas de livros, teses e interpretações distintas. Acho muito perigoso criar “teorias” tão gerais.

Ele foi certamente ousado, mas não sei se teve êxito, ainda que tenha convencido a muita gente sobre suas idéias. De qualquer forma, a teoria do “banditismo social” parece não corresponder, pelo menos em sua totalidade, ao cangaço. Poderíamos discorrer aqui sobre cada uma das variáveis apresentadas por Hobsbawm para caracterizar o “banditismo social” e mostrar que, de maneira geral, elas não correspondem ao cangaceirismo. Em outras palavras, alguns elementos da teoria podem estar presentes em um ou outro brigand, e pode até haver alguns casos de exceção que estejam em conformidade com suas idéias, mas de maneira geral, não se pode dizer que aqueles bandoleiros se enquadrassem nos pressupostos do historiador britânico. De qualquer forma, para mais detalhes sobre isso, basta ler os muitos exemplos que coloco em diferentes capítulos de meu livro. Deixo isso ao leitor.

Buonicore: Muitos autores afirmam que a miséria e a má distribuição da terra no país – especialmente o predomínio dos latifúndios – estariam na base do surgimento e expansão do cangaço. Isso corresponde à realidade?

Pericás: A estrutura agrária regional certamente teve papel importante na configuração econômica, política e social do sertão nordestino e tem de ser levada em conta, mas poderíamos argumentar que a miséria, a má distribuição de terra, as arbitrariedades das autoridades políticas e policiais, e o latifúndio existiram em outras regiões do país. Nem por isso, surgiram bandos de cangaceiros ou fenômenos de banditismo rural de tal envergadura social e cultural, com escopo temporal tão dilatado e com características tão marcantes no imaginário popular em outras partes do Brasil. Acho perigoso e imprudente dar respostas “conclusivas”, “exclusivistas”, “definitivas”, principalmente quando tratamos de um fenômeno tão complexo como o cangaço. Por isso, tento fazer um estudo abrangente, com o objetivo de entender o desenvolvimento do cangaço a partir de diversas variáveis, como a origem de classe dos líderes dos bandos, sua relação com os “coronéis” e com as comunidades sertanejas, os aspectos militares, a questão “racial”, a participação das mulheres, a estética, as secas, os aspectos arcaicos e modernos do sertão, entre outras.

E fiz um esforço para produzir um estudo a partir de “processos” históricos de longa duração. Há distintas interpretações sobre o cangaceirismo, e achei que valia a pena entender essas variadas formas de ver o tema, fazer uma mediação, apresentá-las ao público e discuti-las de forma mais rica, utilizando para isso também as experiências históricas que persistiam, incrustadas no imaginário social local, desde o período colonial, assim como também levar em conta a questão das mentalidades e os aspectos étnicos e culturais do povo da região. Meu objetivo não foi criar polêmicas, mas apenas lançar novos questionamentos e instigar os leitores e outros estudiosos a dar prosseguimento aos estudos sobre o tema. Neste caso, acho que consegui mostrar diversos aspectos do cangaço ainda pouco explorados ou discutidos por outros pesquisadores. E creio que ainda há muito que pode ser escrito em relação a esse assunto.

Buonicore: Sem dúvida, os cangaceiros foram agentes de inúmeros atos de violência, inclusive contra as populações mais pobres do interior. Criavam um clima de permanente terror nos povoados onde passavam. E que, também, mantiveram relações privilegiadas – até amistosa – com os coronéis locais. Apesar disso tudo, desceu sobre eles uma aura de heróis populares, expressa nos folhetins. O que explicaria isso?

Pericás: Podemos aventar algumas hipóteses sobre essa questão. Primeiro, se por um lado os cangaceiros eram extremamente violentos, o mesmo pode ser dito das forças volantes que os perseguiam. A população que sofria as arbitrariedades e violências dos soldados das volantes poderia, quem sabe, se voltar para os bandoleiros como uma resposta ou vê-los com a contraposição dos “agentes da lei”, que em muitas ocasiões a desrespeitava. Em alguns casos os brigands também distribuíam dinheiro (nem sempre valores altos) aos pobres dos vilarejos. Mesmo que esse tipo de ato não fosse necessariamente o mais comum, que não alterasse a situação social da população mais necessitada e fosse, para todos os efeitos, uma forma de construir uma “boa imagem” perante algumas comunidades, ainda assim, poderia ressoar favoravelmente dentro de um círculo restrito de rurícolas.

Câmara Cascudo já dizia que “o sertanejo não admira o criminoso, mas o homem valente”. Os indivíduos mais desprezados naquele ambiente eram os “pistoleiros” (que matavam escondidos, de tocaia) e os ladrões de cabra e gado (ou seja, aqueles que “furtavam” o principal meio de sustento do homem do interior). Já os cangaceiros, por seu lado, construíram, ao longo do tempo, a imagem de indivíduos injustiçados, que haviam ingressado na atividade criminosa por motivo de vingança. Ainda Câmara Cascudo diz que “o sertão indistingue o cangaceiro do homem valente. Para ele a função criminosa é acidental […] O essencial é a coragem, o desassombro, a afoiteza, o arrojo”… Talvez quem melhor tenha conseguido explicar esse fenômeno foi Frederico Pernambucano de Mello com sua teoria do “escudo ético”, tão bem explicada em seu Guerreiros do sol, hoje em dia, já considerado um clássico sobre o tema.

Buonicore: O poder no nordeste brasileiro era bastante autoritário. Persistia uma relação de tipo servil entre os grandes proprietários de terras e seus agregados. Isso se traduzia no interior da organização dos cangaceiros ou existia um grau maior de “democracia” e “igualitarismo” no interior dos bandos?

Pericás: É possível dizer que havia características bastante peculiares dentro dos bandos de cangaceiros. De um lado, eram estruturas hierarquizadas, com claras distinções entre os estratos “superiores”, ou seja, as lideranças (também autodenominadas de “grandes cangaceiros”) e a “arraia miúda”, bandoleiros de menor expressão, sem voz de comando, em posição claramente subordinada aos chefes. Muitos consideravam os líderes do cangaço como “patrões”.

E muitos desses comandantes dos bandoleiros se viam desta forma, quase como os próprios “coronéis”, com os quais muitas vezes tinham boas relações, colocando-se em posição igualitária com os potentados rurais. Por outro lado, mesmo estando em posição claramente distinta, “superior” hierarquicamente, os líderes viviam e conviviam em todos os aspectos com seus asseclas. Participavam de todas as atividades juntos, como numa verdadeira comunidade nômade ou, quem sabe, um grupo guerrilheiro. Lutavam, caminhavam, dormiam, acordavam, tocavam instrumentos, dançavam, bebiam, se divertiam juntos. Ou seja, havia certamente uma identidade forte e um senso de fidelidade entre os bandidos de menor importância com seus chefes.

Buonicore: A grande figura que se sobressaiu no ciclo do cangaço foi, sem dúvida, Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião. O próprio fim do cangaço foi vinculado à sua morte em julho de 1938, em Angico. O que lhe garantiu tal estatura? O que o diferenciava dos chefes dos demais bandos que assolavam a região naqueles anos?

Pericás: Há quem considere que o cangaço teria terminado com o assassinato de Corisco (o último cangaceiro emblemático), em 1940. Mas o fato é que, realmente, depois da eliminação física de Lampião, o cangaço estava fadado a acabar. Um número grande de bandoleiros se entregou depois do massacre de Angico. Lampião sem dúvida tinha qualidades muito superiores a outras lideranças da época, tanto em termos políticos (ou seja, a construção de uma rede de alianças e apoio logístico de “coronéis”, políticos e até oficiais das volantes) como em termos militares.

Era um indivíduo inteligente, tenaz, hábil, resistente fisicamente, que demonstrava arrojo e ousadia em combate, era excelente organizador, sabia estruturar e comandar com muita habilidade seu bando, conseguiu sobreviver anos e anos em situações por vezes adversas, e se recriar, ou seja, reconstituir seu grupo e continuar dentro das atividades criminosas. Ele também nunca se entregou. Se Sinhô Pereira abandonou o cangaço, e Antônio Silvino foi capturado e preso, Lampião permaneceu até o fim da vida como um combatente. Nunca se rendeu. Terminou a vida como líder cangaceiro. Seu bando atuou numa área muita ampla do sertão e agreste nordestinos, e assim, seu nome e fama cruzaram fronteiras. Em seu bando era possível encontrar indivíduos de diferentes estados nordestinos. E esses bandoleiros, que comandavam subgrupos, também levavam para outras partes da região o nome e a fama de Virgulino.

A competência que Lampião tinha para escolher seus aliados e aqueles que lutariam a seu lado também deve ser lembrada. Em outras palavras, temos aqui um caso concreto de que um indivíduo fez, de fato, a diferença. O cangaço não iria durar muito mais, por certo, mas se Lampião tivesse vivido alguns anos mais, provavelmente continuaria dando trabalho às autoridades. Suas qualidades pessoais, portanto, fizeram uma grande diferença naquelas circunstâncias. É só notar que praticamente não se fala de nenhum outro cangaceiro além dele nos dias de hoje. Houve centenas de bandoleiros que atuaram no sertão e agreste nordestinos antes dele ou no mesmo período em que esteve em atividade, mas praticamente só se comenta sobre a vida de Virgulino. Por mais que os outros fossem importantes, eles tiveram papel secundário se comparados a Lampião.

Ele foi, portanto, sem dúvida nenhuma, o grande protagonista do cangaço. É bom lembrar que nos anos 1920 e 1930 a mídia já estava muito mais desenvolvida que nos períodos anteriores. Fotos de Lampião apareciam em revistas e jornais brasileiros, e imagens filmadas de seu bando foram registradas por Benjamin Abraão. Lojas e produtos utilizavam o nome e imagem de Lampião em seus anúncios. E até a imprensa estrangeira chegou a falar dele. Toda a “estética” e a “imagem” do ator social cangaceiro são do período lampiônico, desde a indumentária até a forma como atuavam os bandos. Esses todos são elementos que, combinados, deram a Lampião uma grande importância e fama não só em sua região, mas em todo o país.