No crepúsculo de fevereiro, alvorecer de 2012, a Justiça uruguaia aceitou enfim reabrir o caso dos uruguaios Universindo Rodríguez Díaz e Lílian Celiberti, sequestrados em novembro de 1978 em Porto Alegre, numa ação combinada de policiais do DOPS gaúcho e militares do Exército de Montevidéu. Agiam clandestinamente em território brasileiro no âmbito da ‘Operação Condor’, que caçava opositores das ditaduras do Cone Sul nos turbulentos anos 70 do século passado.

Universindo e Lilian, detida com seus dois filhos – Camilo (8 anos) e Francesca (3) -, foram torturados na sede do DOPS em Porto Alegre e nos quartéis de Montevidéu. Ficaram cinco anos presos, sob a falsa acusação de “invadir o país com armas e material subversivo”. Libertados em 1983, dois anos antes da queda da ditadura uruguaia, foram os primeiros presos políticos a denunciar na justiça o regime de força, já em 1984, quando os militares ainda mantinham o poder.

Nenhum dos militares citados compareceu na época ao tribunal do Juzgado Penal de 7º Turno. O chefe do comando uruguaio em solo gaúcho, capitão Eduardo Ferro, teve a sua intimação judicial jogada no fundo do cofre do então comandante do Exército da ditadura, general Hugo Medina.

E o caso morreu ali. Até que, em julho passado, o presidente José Mujica, um ex-guerrilheiro Tupamaro preso e torturado pelo regime, mandou um decreto à Suprema Corte revogando todos os atos administrativos que impediam o julgamento de violações aos direitos humanos pela caduca ‘Ley de Caducidad’, que os militares se concederam como garantia de impunidade. Mais de 80 casos de lesa-humanidade foram então ressuscitados, entre eles o dos sequestrados em Porto Alegre.

Durante meses, realizou-se uma garimpagem nos arquivos da Justiça para resgatar o processo ‘desaparecido’ pelo regime militar. Reencontrado, enfim, Lilian Celiberti compareceu na terça-feira, 28 de fevereiro, ao Juizado da calle Misiones, na Ciudad Vieja de Montevidéu, onde se concentram os casos contra a ditadura, e formalizou a denúncia, aceita pela juíza Mariana Motta.

Foi ela a dura magistrada que, em fevereiro de 2011, condenou o ex-presidente Juan María Bordaberry a 30 anos de prisão por liderar o golpe de Estado de 1973 que dissolveu o Parlamento e a centenária democracia do país, também responsabilizado diretamente por 14 assassinatos e desaparecimentos forçados durante a ditadura. Bordaberry cumpriu três meses na prisão e foi transferido para casa, por razões de saúde. O ex-ditador morreu dois meses depois, aos 83 anos.

                                                       A lição uruguaia

Lílian Celiberti teve no dia 28 passado sua primeira audiência formal na Justiça e entregou à juíza Mariana Motta um exemplar do livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (editora L&PM). Escrito pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, que testemunhou o sequestro e o denunciou numa série de reportagens da revista Veja, ao longo de 1979-1980, o livro apontou o envolvimento de três policiais do DOPS gaúcho: o inspetor João Augusto da Rosa, codinome ‘Irno’, o escrivão Orandir Portassi Lucas, o ‘Didi Pedalada’, e o chefe brasileiro do sequestro, o delegado Pedro Seelig, o ‘Major’, o nome mais famoso da repressão no sul do país.

Quatro dias depois, na sexta-feira passada, 2 de março, a juíza Mariana mandou uma mensagem a Lílian, para dizer que já estava lendo o livro e para informar que gostaria de ver o jornalista brasileiro em Montevidéu para prestar depoimento em juízo. Lílian foi autorizada por Cunha a informar à Justiça uruguaia que está à disposição para dar o seu testemunho.
Como tudo no campo dos direitos humanos, o Uruguai poderá fazer o que o Brasil não conseguiu ou não quis, diante da imoral blindagem que autoanistia torturadores e o mecanismo da repressão verde-amarela. O trio do DOPS – Seelig, Irno e Didi – chegou a sentar no banco dos réus, caso único da ditadura brasileira, merecendo uma corajosa condenação do juiz Moacir Danilo Rodrigues, da 3ª Vara Criminal de Justiça, a primeira que enquadrava legalmente o aparato repressivo do regime de 1964.
O juiz condenou os dois policiais subordinados, Irno e Didi, que haviam colocado pistolas na cara de Cunha e de seu companheiro J.B Scalco, fotógrafo da revista Placar, quando bateram à porta do apartamento da rua Botafogo, em Porto Alegre, onde Lilian era mantida sob sequestro, na presença de militares uruguaios. Didi ganhou uma pena reduzida de seis meses de detenção, com direito a ‘sursis’. Irno, condenado, e Seelig, absolvido, recorreram contra o recurso da promotoria em segunda instância e foram inocentados “por falta de provas”. Isso só foi possível porque, naquele momento, as “provas” – Lilian e Universindo – sangravam nas masmorras uruguaias, sob as torturas do moribundo regime militar. Libertados em 1983, ambos imediatamente reconheceram Seelig e Irno como seus algozes e torturadores no DOPS gaúcho.
Este acerto de contas com a lei, impossível no Brasil, poderá ser feito nesse momento no Uruguai com os torturadores do Exército que atravessou a fronteira sob a cumplicidade brasileira e a cobertura da Condor. Os então capitães Eduardo Ferro e Glauco Yannone, assim como os majores Carlos Rossel e José Bassani, estão sujeitos agora à inquisição dos tribunais em Montevidéu. Ferro torturou o casal uruguaio na fortaleza de Santa Teresa, no lado uruguaio de Chuy, e Yannone bateu pessoalmente em Universindo numa sala de torturas do DOPS, no segundo andar da sede da polícia gaúcha na avenida Ipiranga, em Porto Alegre.

                                                    O cinismo do sequestrador

Eduardo Ferro, aos 31 anos em 1978, era o temido chefe da seção de operações da Compañia de Contrainformaciones do OCOA (Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas), o braço longo da repressão uruguaia em ações no exterior, especialmente Buenos Aires. Usava os codinomes de ‘Oscar’, ‘Guillermo’ ou ‘Toto’.

Era faixa-preta de caratê, forte, entroncado, um vasto bigode preto, olhos verdes e fama de violento. Foi aluno em 1967, no curso de Cadet Orientation, da afamada Escola das Américas, no Canal do Panamá, que fez a imersão de 60 mil oficiais da elite militar latino-americana na Doutrina de Segurança Nacional que torturou e golpeou a democracia do continente nas décadas sangrentas de 1960 e 1970.

Em 1976, nove anos após Ferro e dois antes do sequestro de Porto Alegre, o então capitão Glauco Yannone seguiu seus passos, matriculado no curso de ‘Inteligência Militar 0-11′ da escola de tortura do Panamá.

Numa manhã de 1984, poucas semanas após ser libertada do cárcere, onde mofou durante cinco anos, Lílian Celiberti topou casualmente com Eduardo Ferro numa esquina próxima de casa, em Montevidéu.

O breve diálogo:

— Como estás? — perguntou o sequestrador.
— Bem, esperando para te ver no tribunal — respondeu Lílian.
— Nunca tiveste medo de ser jogada de um avião? — provocou Ferro.
— Se não tive medo naqueles tempos, menos agora — reagiu a sequestrada.

O que mais irritou Lilian e Universindo, porém, foi a aparição de Ferro, ainda impune, em dezembro de 2007 em um programa nacional de TV, o ‘Código País’, do Canal 12. O militar justificou assim sua súbita loquacidade: “Houve uma estratégia de silêncio austero que se esgotou…

Em todo enfrentamento armado, quando as paixões afloram, se perdem os marcos de referência. O ser humano deixa de ser humano e se cometem atrocidades. A repressão produz mortes e, em algumas pessoas, excessos”.

Sem falar em ‘Operação Condor’, admitiu haver “coordenação com os Exércitos regionais” e jogou sobre o general Gregório Alvarez, último chefe da ditadura, condenado a 25 anos de prisão por 37 homicídios muy especialmente agravados, a responsabilidade final pelos excessos cometidos:

“Todo comandante é responsável pelo que seus homens façam ou deixam de fazer”. Ferro reconheceu ter havido torturas, pero no mucho: “Não foi metódica, nem oficial. Foram atitudes pessoais e não da corporação”.

Como os militares brasileiros, que repudiam a Comissão da Verdade, Ferro rejeita o resgate dos crimes da ditadura que ajudou a construir. “A reconstrução pelo governo do passado recente está enviesada. O Museu da Memória, por exemplo, exibe provas de um lado só e de outro, não”.

Incapaz de negar o sequestro de Lilian e Universindo, a ponto de montar com Seelig a ‘ratoeira’ no apartamento da rua Botafogo, Ferro admitiu: “Eu fiz o translado das pessoas do Brasil para o Uruguai.

Elas foram presas pela polícia e pelo Exército do Brasil. É só o que posso dizer, porque estou sujeito ao segredo militar”, esquivou-se, com o cinismo previsível.

Num ato falho, usou a palavra ‘translado’, gíria da repressão no Cone Sul para o desaparecimento ou assassinato de presos capturados pelas garras da Condor.

O que deu errado, no caso de Porto Alegre, é que a operação de ‘translado’, que deveria culminar com o desaparecimento de praxe da Condor, teve que ser abortada diante da inesperada aparição de testemunhas no apartamento da Botafogo — e, mais grave, testemunhas que atuavam na imprensa, garantindo a repercussão do sequestro.

Até hoje, a operação binacional de Porto Alegre é o único fracasso explícito entre centenas, talvez milhares de ações clandestinas cometidas por esse arremedo de ‘Mercosul do Terror’ das ditaduras do extremo sul do continente na década de 70.

A medida deste fracasso de dimensão internacional está na sobrevivência dos quatro sequestrados – Universindo, Lilian e as duas crianças -, que não puderam ser executados ou desaparecidos a partir da denúncia pública da operação. Nesse caso, o delegado brasileiro Pedro Seelig e o capitão uruguaio Eduardo Ferro são sócios solidários e parceiros inseparáveis deste monumental, inesquecível fiasco da repressão continental.

O decisivo, mas nunca tardio, depoimento do capitão Eduardo Ferro à Justiça uruguaia, 34 anos após a violência binacional da rua Botafogo, é uma lição que atravessa as fronteiras do tempo e da democracia.

Em tempos de luta pela memória e pela justiça, é sempre um alento imaginar que o depoimento do capitão uruguaio em Montevidéu poderá enfim resgatar a verdade que o delegado calado de Porto Alegre insiste em sonegar. Prova de que não existe impunidade, nem imunidade para a mentira.

Fonte: Sul21