Comandante negro das matas
Dissera-me, certa vez, a castigada mulher de pés e mãos endurecidas pelo trabalho sol a sol com a mesma enxada de vários anos que, Osvaldão, havia, há muito, se transformado em lobo. E, mata adentro, uivando, buscava seus companheiros insurretos, esgueirando-se da onda de fogo dos fuzis inimigos.
Osvaldão adormece no fim da pista de pouso onde desciam os búfalos com generais, tropas, torturadores, funcionários das mineradoras e da CIA, em Xambioá. Há muitas lendas de como atuou, nas contendas araguaianas, o Comandante Negro das matas. Acerca de seu desaparecimento em meados de 1974 uma versão ganhou força ao longo dos anos: teria sido um sequaz do Major Curió, Arlindo Piauí?
Decerto que a versão oficial, celebrada pelas vozes da tortura, procurava dar a Arlindo Piauí os louros de matar a mais lendária figura da insubmissão araguaiana. Mas o Comandante Osvaldo fora morto por tiros de FAL, armamento utilizado apenas por militares de carreira. A versão Arlindo Piauí serviu para formar uma espécie de consciência de pistolagem que até os nossos dias continua em voga por todo o Sul do Pará.
O fato é que há muito, o famigerado Major Curió e seu círculo de pistoleiros fez crer, na região do Araguaia, que seu mais confiável bate-pau seria o responsável pelo tiro algoz em Osvaldão: credencial para a covardia do matador de dezenas de lavradores, na maioria composta por lideranças populares do Baixo – Araguaia.
O certo é que o Comandante Negro, filho da mais proletária de todas as raças lutou até apagar os olhos, com a Parabellum na mão, insubmisso, consciente da mata e dos caminhos da história.
Ocorreu em sua morte o mesmo ritual para quem, em regimes terroristas, defende e aspira a liberdade. O negro dos combates teve seu corpo içado por helicóptero e através de auto-falantes diziam ter “tirado a onça do pasto”.
Sabe-se que no dia de sua morte os paraquedistas fizeram uma paranóica festa que ocasionou em sessões de tortura contra um soldado que prestava guarda. Esse mesmo soldado, como penitência, ainda teve que vigiar o corpo insepulto do combatente comunista. Falo isso porque ex-soldados assim me relataram.
Como Tiradentes, ficou exposto sobre a legenda do triunfo dos vencedores.
Tido também por Mineirão, angariou em poucos anos a confiança e a admiração das gentes simples e humildes, da Gameleira à Faveira, de Santa Cruz até Xambioá, de São Geraldo até Apinagés, de São João à São Domingos das Latas.
Conheceu as pedras pontiagudas e esverdeadas do Araguaia, garimpou na Serra das Andorinhas e em Porto Franco. Apreciando os minerais na lua metálica foi profundo como a terra silenciosa.
Foi regatão respeitado por praticar preços justos.
Mata adentro, procurou desvendar os segredos da floresta, ajudou a fazer partos e de sua boca primeira ecoou a poética do “Romanceiro da Libertação”.
Educou o povo e pelo povo fora educado, como o personagem de Lautaro, no poema de Neruda. Fez casas e roças. Teceu belas manhãs com estórias do Partido Comunista.
Fez amigos e namoradas. Caçou, amou, exortou a liberdade, foi justiceiro com aqueles que espoliavam o povo. Fez discursos à hora do crepúsculo, ensinou a arte-militar.
Foi político, mariscador, castanheiro e garimpeiro.
Filho fez também; segundo dizem, dois. Um de seus filhos, o mais novo, fora sequestrado por um militar e levado à Brasilia. Não sabemos, ainda, seu paradeiro. Ainda.
Ao pé da Serra evoluiu como vento. Mergulhou nos banzeiros minerais dos Martírios. Dormiu nas redes e se fez povo, povo da mata.
Não matarão Osvaldão porque seu feito decorre do feito de sua gente e de sua época.
O povo que lhe deu farinha e esperança, hoje lhe dá a vida nos versos e romances camponeses. A plena vida que o coração do homem ilumina.