“A ditadura como um todo nos relegou uma cultura do medo instalada no sentido de que determinados assuntos não podem ser debatidos”, afirma o presidente da Comissão Nacional de Anistia e secretário nacional do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Outro legado negativo daqueles anos de chumbo é parcela da atual corrupção brasileira, que conseguiu se instalar naquele tempo em função da censura, uma vez que ninguém poderia “questionar as autoridades públicas”. Segundo Paulo, “a dignidade do perseguido político necessita ser resgatada e restaurada no local onde ela foi ferida no seio daqueles que os estigmatizaram no passado causando sofrimento”. Analisando o motivo pelo qual o espólio das ditaduras do Brasil e seus vizinhos foram conduzidos de forma tão diversa, explica: “É evidente que Argentina e Chile fizeram muito na área de memória, mas o Brasil hoje possui, sem nenhuma dúvida, o maior programa de reparações já empreendido desde o final da II Grande Guerra, além de estar avançando na consolidação de políticas de segurança cidadã. Realmente existem déficits, mas é importante procurarmos olhar para nosso processo como diferente, e não como inferior a de nossos vizinhos”.

Paulo Abrão é graduado em Direito, pela Universidade Federal de Uberlância – UFU, além de mestre e doutor em Direito pela Unisinos e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, respectivamente. Sua dissertação intitulou-se O poder judiciário em busca do Estado Democrático de Direito: crise (diagnóstico e versões) e transição paradigmática. Atualmente, leciona na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. É organizador de várias obras, entre elas Anais do II Congresso Internacional Transdisciplinar Ambiente e Direito (Porto Alegre: Edipucrs, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando e por que surgiram as Caravanas da Anistia, o projeto Marcas da Memória e o Memorial da Anistia do Brasil? O que cada um deles objetiva?

Paulo Abrão –
 Todos estes projetos têm uma raiz comum no ano de 2007, na gestão do ministro Tarso Genro, quando uma nova equipe assume a Comissão de Anistia com a missão de aproximar a temática da juventude e evitar que o processo de reparação, que é por excelência um processo de reconciliação moral e de educação, se transformasse em uma pauta eminentemente econômica. Em 2008 lançamos as Caravanas e começamos a trabalhar no Memorial da Anistia, que deve ser entregue à sociedade no final de 2012. O Marcas da Memória surgiu de uma demanda prática: a Comissão passou a receber e atender muitos pedidos da sociedade civil, até perceber que organizar um edital e fomentar tais projetos de forma orgânica seria o modo mais eficiente de garantir uma difusão democrática das diversas memórias do período, em especial a memória das vítimas.

IHU On-Line – Em que aspectos esses projetos ajudam-nos a recuperar e manter a memória de um dos períodos mais violentos de nosso país?

Paulo Abrão
 – Cada um dos três projetos enfoca a memória desde um ângulo. As Caravanas levam as histórias reais de diversos indivíduos de volta à cena local pública, para que sejam conhecidas e reconhecidas pela sociedade em seu entorno. A dignidade do perseguido político necessita ser resgatada e restaurada no local onde ela foi ferida no seio daqueles que os estigmatizaram no passado causando sofrimento. O Memorial é um local de reparação coletiva, que religa as utopias interrompidas pelo Golpe com a vida política do presente, restabelecendo elos democráticos em nossa história. O Marcas da Memória permite aos próprios perseguidos contarem sua história, com meios técnicos e financiamento apropriado. A vozes caladas no passado autoritário agora têm vez na democracia. O objetivo, sobremaneira, é democratizar a própria memória e permitir que ela seja construída para além dos relatos oficiais constantes nos parcos arquivos da repressão disponibilizados. Esta memória pertence ao país, e não a um ou outro cidadão ou grupo político.

IHU On-Line – Qual é a pior herança deixada pelos torturadores?

Paulo Abrão
 – Principalmente a percepção de que em alguns contextos a tortura é admissível. A ditadura como um todo nos relegou uma cultura do medo instalada no sentido de que determinados assuntos não podem ser debatidos. A estigmatização, até os dias de hoje, das formas de participação dos cidadãos no espaço público, na vida política e nos movimentos sociais é outro legado nocivo. Parcela da corrupção e suas práticas atualmente existentes foram instaladas naquela época onde vigia a censura e que ninguém podia questionar as autoridades públicas. Ainda temos espaços governamentais nas esferas federativas pouco transparentes.

IHU On-Line – Por que o Brasil tem dificuldade em fazer as contas com seu passado autoritário?

Paulo Abrão
 – Cada país tem uma conjuntura e um modo de enfrentar o passado. A cultura política brasileira, da grande conciliação entre as elites, acaba em certa medida induzindo e consolidando uma ideia geral de que alguns temas – por mais relevantes que sejam – saiam de pauta e não sejam discutidos. Somando-se a isso o quadro de conservadorismo do judiciário e a proliferação de centenas de causas para a sociedade civil lutar após a democratização, configurou-se um quadro em que as pautas transicionais levaram muito tempo para emergir. Os direitos da transição tornaram-se secundários diante da explosão de direitos da Carta Cidadã. De todo modo, o tempo é uma variável que pode se tornar em um grande aliado em matéria de justiça de transição.

IHU On-Line – Como podemos compreender nossa democracia se esse acerto de contas ainda não foi realizado?

Paulo Abrão
 – A democracia é um processo em permanente construção. Por isso é que, ao identificarmos déficits, devemos procurar atacá-los. Um dos déficits postos é o de que ainda não conseguimos sinalizar nitidamente a não repetição da mesma violência do passado e o repúdio aos crimes de lesa-humanidade em qualquer tempo, em qualquer circunstância. Estamos em busca do melhor legado ético civilizacional pós-Nuremberg.

IHU On-Line – Por que praticamente todos nossos países vizinhos já abriram seus arquivos e dialogaram com sua história de totalitarismos e nós ainda não o fizemos?

Paulo Abrão
 – Temos que saber relativizar esta afirmação. Cada um de nossos vizinhos abordou seu passado por um ângulo. É evidente que Argentina e Chile fizeram muito na área de memória, mas o Brasil hoje possui, sem nenhuma dúvida, o maior programa de reparações já empreendido desde o final da II Grande Guerra, além de estar avançando na consolidação de políticas de segurança cidadã. Realmente existem déficits, mas é importante procurarmos olhar para nosso processo como diferente, e não como inferior a de nossos vizinhos, de maneira que possamos enfrentá-los (os déficits), considerando não apenas a experiência que eles desenvolveram, mas também aquilo que temos de melhor.

IHU On-Line – Em que sentido é preciso reinterpretar a Lei de Anistia?

Paulo Abrão
 – No sentido de a tornar compatível com nossos compromissos constitucionais e com os tratados internacionais de direitos humanos. O cenário agora é o seguinte: o STF é, de fato, a mais alta corte do nosso Judiciário e declarou a lei válida para todos os crimes do terrorismo de Estado. Porém, a competência para o julgamento dos crimes de tortura sistemática e generalizada – que consistem em crimes internacionais – é da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a dignidade da pessoa humana constitui bem jurídico de proteção transnacional e não mais direito de amparo tão somente interno. A Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou a lei de autoanistia brasileira inválida. A exemplo de outras condenações, esta sentença deve ser cumprida e o Brasil deve investigar e levar a julgamento as violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura. Eis o desafio posto para o poder Judiciário resolver.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios que essa nova interpretação traz? O que mudará em relação àqueles que torturam e os que foram torturados?

Paulo Abrão
 – Nada muda a tortura. O que uma eventual reinterpretação promove é uma sinalização dupla, para o passado e para o futuro: para o passado, é um gesto de reconhecimento em relação às vítimas e seu direito à verdade, à memória e à justiça; para o futuro, um sinal de que a tortura, em nenhuma hipótese, será tolerada.

IHU On-Line – Não se trata de vingança, mas de justiça o fato de se punir os crimes cometidos contra a humanidade no período da ditadura brasileira. Poderia comentar essa diferença de interpretação quanto ao que realmente significa punir os torturadores?

Paulo Abrão
 – Responsabilizar crimes na forma da lei nunca será uma forma de vingança. É isso que diferencia o Estado de Direito das ditaduras. Deixar de apurá-los é que é algo autoritário e excludente para parcela da sociedade. A proposta “vingativa” seria a de submeter os algozes a atos análogos aos que perpetraram. O que realmente os perseguidos políticos buscam é, simplesmente, que o Estado processe os crimes na forma da Lei (até na hipótese de que uma anistia impeça o cumprimento da pena). Ainda, a condenação moral é algo valioso para as vítimas, pois demonstra que a morte, o desaparecimento e a tortura a qual foram submetidos seus familiares ou a si próprios não é um ato que passa despercebido para o restante da humanidade. A percepção de que a democracia é distinta da ditadura e reconhece o direito à proteção judicial das pessoas lesionadas, além de sinalizar que a justiça é a mesma para todos, é uma questão de princípio.

IHU On-Line – A lista dos desaparecidos políticos no Brasil é extensa, mas não contempla os desaparecidos indígenas que opuseram resistência aos militares. Como podemos compreender isso?

Paulo Abrão
 – Muitas formas de perseguição política são pouco registradas. O fato central é que demandas transicionais, assim como demandas por reconhecimento, dependem fundamentalmente da mobilização da sociedade civil. É a sociedade civil quem, no jogo democrático, mais influencia a tomada de decisões transicionais, e isso é verdadeiro para qualquer conjunto de pessoas violadas. Sobre a perseguição política aos povos indígenas tivemos uma reunião com o presidente da Funai para tratar do assunto e teremos novidades sobre isso no futuro. Há muitas outras histórias ainda veladas.

Fonte: IHU On-Line